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[RESENHA #536] Seleta, de João Anzanello Carrascoza



APRESENTAÇÃO: Um mundo de brevidades, nas palavras de João Anzanello Carrascoza. Nesta Seleta estão reunidos contos e fragmentos de romances do premiado escritor.

Uma pequena amostra da vasta produção literária deste autor que elegeu as histórias breves como forma privilegiada de expressão – mesmo quando falamos de seus romances. Cada trecho aqui é um efêmero episódio de alma própria, um recorte de vida.

Carrascoza é um escritor das miudezas cotidianas, das pequenas ternuras e angústias que são ao fim do dia as grandes formadoras das subjetividades. Esse olhar perspicaz permite esmiuçar a intimidade com uma prosa lírica, mas precisa. Os instantes simples da memória infantil, dos laços familiares, dos silêncios doces ou das ausências amargas são fonte para narrativas que deságuam em epifanias e transfigurações.

Esta Seleta reúne contos de livros premiados como O vaso azulAquela água todaTempo justo e Catálogo de perdas, além de fragmentos de romances como o Caderno de um ausenteMenina escrevendo com o pai e A pele da terra, da recente e elogiada Trilogia do Adeus. A seleção foi feita pelo próprio autor, a pedido da editora. O que para Carrascoza foi um minucioso exercício de visitação, para o leitor e a leitora é uma forma resumida de acesso a grandes histórias de um dos nossos maiores prosadores.


Carrascoza, João Anzanello, 1962. Seleta:um mundo de brevidades / João Anzanello Carrascoza, -1ºed. - Rio de Janeiro: José olympio, 2023. ISBN978-65-5847-114-1


O poeta Carrascoza sabe captar os momentos simples da vida cotidiana, a transformá-los em tramas que tocam os leitores. Sua obra "Seleta" é uma compilação de contos e fragmentos de romances, escolhidos pelo próprio autor, de obras como o premiado "O Vaso Azul" e o "Caderno de um Ausente", entre outras. Esta é uma oportunidade única de visitar o mundo deste grande prosador, acessando as suas pequenas ternuras e angústias, que são, ao fim do dia, as verdadeiras formadoras dos nossos pensamentos.

Seleta é uma obra poética sem igual. Carrascoza nos brinda com sua genialidade ao abordar à pequenez dos momentos e a ternura (ou ausência) dela no nosso cotidiano. Esta obra reune em sua essência um emaranhado de narrativas que ligam-se entre sua nobreza e seus aspectos narrativos únicos e breves, tão breves quanto os momentos descritos pelo autor. A obra é dividida em repartições que casam-se entre título e tópico, entre outras palavras, são divididas por tópicos que exemplificam a essência da narrativa naquele instante.

Com influências literárias poderosíssimas: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Raduan Nassar, o autor nos traz a tona toda sua essência e estilo narrativo em microcontos e narrativas que nos transportam de um universo para outro em uma sequência de narrativas que envolvem e instigam o leitor por mais, sempre cada vez mais.

Na nota de abertura da obra, o autor nos traz detalhes de sua produção literária e reflexões sobre a leitura e as notas vivenciadas durante a seleção das obras que compõe seleta.

Estas páginas contêm um conjunto de textos selecionados de toda a prosa de ficção que produzi em trinta anos de trajetória literária. São, portanto, contos de tamanho médio, minicontos, microcontos (de uma linha só), além de trechos de romances - fragmentos com vida própria, ainda que dissociados de suas nascentes. [in abertura brevíssima, pag. 15]

Deixo aqui destacado uma reflexão imposta pelo autor sobre a materialização de suas narrativas quase sempre serem curtas:

Esta percepção definitiva - da fugacidade de nossas vivências - pauta a minha escrita, materializada quase sempre em narrativas curtas. Como se me dedicando a uma história maior, me faltasse, a qualquer instante, tempo de terminá-la, já que a finitude nos rodeia sem cessar, e está cada minuto mais próxima.

Nesta seleta, há alguns fragmentos que nos marcam por uma vida, este, é o caso de caderno de um ausente, que, segundo o autor, é um texto que possuí vida própria, e talvez por este motivo seja tão breve como a vida, e tão doce a ponto de podermos desfruta-lo em sua essência. A narrativa é uma carta de um pai para filha, um relato sincero sobre como a vida pode ser breve, sobre como a essência do agora e dos momentos ecoam pela eternidade em nós como memórias e como passagens, como breves momentos ligados à nós que se desfazem em um passe de mágica.

Há ausência em cada linha, mas não de afeto, mas de alguém. Há lembranças, desejos e vontades, mas todas menores que a ausência. Carrascoza nos brinda com sua inteligência poética e emocional em uma narrativa que nos cativa e convida à refletir.

Eu ia te ensinar como desviar das trilhas tortas que vão se colar na sola de tuas sandálias, e como te manter em calmaria quando os ventos acusatórios te açoitarem, eu ia te ajudar a fugir das circunstâncias que nos arrastam aos abismos, eu ia te treinar a destinguir os diferentes verdes da paisagem, eu ia te explicar por que a chuva lavra a pele do solo e revolve as profundezas [...] (in caderno de um ausente, p.123)

outra parte tocante que me têm em todos os momentos em que leio esta obra é cerâmica, presente na página 177. Eu poderia descrever um bilhão de menções à quem se possa interessar sobre como eu me senti atraído em diversos aspectos pela descrição impetuosa de um momento narrado em três laudas que me marcou para uma vida inteira. Cerâmica narra-nos o encontro de almas entre ele, e ela. Não, não é só isso. Cerâmica é a descrição do encontro de almas ocasionado pelo caminho que trilhamos de nome vida.

Ela estava no gramado, aguando as plantas, em frente à casa que dava diretamente na estrada por onde eu vinha. O sol da tarde figurava em seu rosto como se nele encontrasse a moldura perfeita, e euforia dos pássaros, pressentindo a noite iminente, me bicava a consciência

[...]

Ele vinha pela estrada de terra, a mesma que margeia o gramado de casa e segue pela linhas de eucaliptos, e apesar de ignorar tudo de sua vida, eu sabia, como todo dia nasce do ventre de uma noite, que ele vinha da olaria. (in cerâmica, p.177)

João Carrascoza tem em si todos os elementos fundamentais e indispensáveis de um escritor que não se cansa de prosear, de produzir, de pensar, de refletir e de escrever em uma conjuntura tão singela, tão sublime e tão doce as brevidades da vida.

E para finalizar, deixo aqui um pequeno poema intitulado ruínas:

Vê? Um dia, tudo isso será seu (in ruinas, p.180)

Leitura indispensável para todo leitor amante da escrita nacional, de narrativas leves e curtas e transformadoras.


O AUTOR

JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA nasceu em Cravinhos (SP). É autor de Trilogia do Adeus, Aos 7 e aos 40, Elegia do irmão e Aquela água toda, entre outros livros. Suas histórias foram traduzidas para diversos idiomas. Recebeu os prêmios Jabuti, APCA, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Fundação Biblioteca Nacional e os internacionais Guimarães Rosa e White Ravens.

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