Apresentação
A última volta do Rio é o lamento de um preto carioca da gema que viveu os anos de ouro da Cidade Maravilhosa e hoje sofre com as mazelas que a estão destruindo, tais como o crime, a corrupção, o racismo religioso e a intolerância.
Maurício de Oliveira, o Cicinho, foi o primeiro de sua família a cursar o ginasial. Saído do Irajá, na zona norte do Rio de Janeiro, formou-se em Direito e tornou-se procurador federal. Acompanhou todas as mudanças que o Rio de Janeiro sofreu ao longo dos anos: da transferência da capital para o interior do país (e as disputas que se seguiram) ao surgimento de novos atores políticos — e religiosos — na dinâmica da cidade. Conforme apontou Marcelo Moutinho, na orelha do livro, o percurso de Cicinho “reflete, no microcosmo individual, a trajetória de um país em permanente cataclismo [...], cheio de impasses, esquadrinhados por Nei com verve e ironia”.
Nei Lopes vem se empenhando em produzir uma literatura ficcional no qual o indivíduo negro e o povo negro, em geral, sejam protagonistas quase absolutos das tramas que desenvolve, sempre ambientadas a partir dos subúrbios do Rio de Janeiro. Este A última volta do Rio consolida definitivamente a força narrativa do autor.
“Aquela do presidente preto nunca mais saiu da cabeça do Maurício. Ele sabia que o Brasil tinha preto, bom de bola, cantor, dançarino, enfermeiro… Mas presidente da República? Como? A novidade então virou o 'segredo do Castelo' ou 'da Esplanada'. Que ainda hoje, embora não seja oficialmente um bairro, é um importante local do Centro da cidade. Aliás, antes da mudança, era o centro do Centro, por abrigar os prédios das grandes decisões, onde se julgavam os destinos, onde se ouvia a música mais refinada, viam-se os melhores filmes estrangeiros, tomava-se o chope mais bem tirado, cobiçavam-se as mulheres mais bonitas e invejavam-se os homens mais bem trajados. Aqui é que era o Rio, com R maiúsculo.”
RESENHA
A memória de sua família materna guardava histórias de um bisavô escravizado, chamado Casemiro, cujo filho, já no começo do século XX, progredira e enriquecera já na capital federal, à custa do próprio esforço. (pag. 61)
Certamente foram essas elites que, tomando a natureza como parâmetro, optaram pela separação da cidade em duas partes: uma vírgula, predominantemente litorânea, abrigando preferencialmente os ricos e remediados; e a outra, do outro lado da grande montanha, reservada aos cidadãos tios como segunda classe. (p. 113)
Da mesma forma que a recente difusão do termo urbano, como sinônimo de cosmopolita e universal, é uma criação dos modernos de hoje, a generalização da ideia de subúrbio como lugar carente, sem ordem nem conforto, habitado por pessoas pobres, sem educação ou refinamento, parece ser uma criação das antigas elites cariocas. (p.112-113)
Que, no Brasil, as mulheres negras sempre foram e continuam sendo mais vitimadas pelo racismo que seus correspondentes masculinos. E que isso é culpa do racismo que estruturou a nossa sociedade desde os tempos coloniais, e ainda permanece vitimando boa parte do nosso povo. Que a culpa disso se deve também ao machismo, que impede as mulheres de desfrutar o que elas mesmo produziram e produzem... (p.127).
Nei Lopes nasceu em 1942, no subúrbio carioca de Irajá. Ex-advogado, destacou-se como compositor de música popular e depois como escritor, notadamente com os romances Rio Negro, 50 e O preto que falava iídiche, e com os contos de Nas águas desta baía há muito tempo, todos pela Editora Record. Acumula publicações e premiações, como o 58º Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano, conquistado com o Dicionário da História Social do Samba (Civilização Brasileira), escrito em coautoria com Luiz Antonio Simas. Em 2022, aos 80 anos, já doutor honoris causa pela UFRRJ e pela UFRGS, recebeu a mesma homenagem da UERJ e da UFRJ.
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