APRESENTAÇÃO
No consultório de um certo dr. Seligman, em Londres, uma jovem realiza um procedimento sobre o qual temos apenas pistas. A paciente está de pernas para o alto enquanto narra em detalhes sua vida e seus desejos, em especial as lutas que trava com a própria identidade sexual, de gênero e nacional. Nascida e criada na Alemanha, ela vive na Inglaterra há vários anos, determinada a libertar-se de suas origens familiares e do fardo de pertencer a uma pátria assombrada pelas atrocidades cometidas na guerra. A morte recente do avô e uma herança inesperada, entretanto, deixam claro que não se pode fugir facilmente à própria vergonha, seja ela física, familiar, histórica, pátria, ou todas as opções anteriores. Ou será que pode? Com a ajuda do dr. Seligman, é o que procura descobrir nossa narradora. Nesta espécie de O complexo de Portnoy às avessas, ela confessa ao médico judeu seu fascínio pelas vítimas do Holocausto, ao mesmo tempo em que admite a profundidade das feridas por ele abertas: “nunca estivemos de luto; no máximo, interpretamos uma nova versão de nós mesmos, histericamente não racista sob qualquer perspectiva, e negando qualquer diferença sempre que possível.” Num monólogo que retoma a melhor tradição do romance neurótico, ela nos conduz por uma jornada verborrágica que vai de mães controladoras e fantasias sexuais com Hitler até as propriedades medicinais da cauda do esquilo, passando pela inusitada ideia de que as mudanças anatômicas podem servir de reparação histórica. Hilário e mordaz, implacável e profundamente honesto, A consulta é uma estreia literária audaciosa, que desafia nossas noções do que é fluido e do que é imutável, provocando-nos a pensar sobre as formas de fazer as pazes com os outros e conosco no século 21.
RESENHA
"A Consulta" (2020), o romance de estreia da escritora alemã Katharina Volckmer, apresenta ao leitor uma narrativa fascinante e complexa que se desenrola durante uma sessão de terapia. A protagonista, uma mulher alemã sem nome, relata ao seu terapeuta, o Dr. Seligman, suas experiências de vida marcadas por conflitos identitários, sexualidade reprimida e uma profunda solidão. Ao longo da consulta, a narradora expõe suas memórias, fantasias e obsessões, revelando uma psique tortuosa e multifacetada.
O enredo de "A Consulta" é essencialmente construído em torno dessa sessão terapêutica, na qual a protagonista compartilha com o Dr. Seligman uma série de relatos autobiográficos, memórias e devaneios. Desde o início, fica claro que a narradora luta com questões profundas relacionadas à sua identidade de gênero, sexualidade e lugar no mundo. Ela revela ter tido sonhos perturbadores nos quais se identifica com a figura de Adolf Hitler, refletindo uma complexa relação com a história alemã e sua própria imagem corporal.
À medida que a narrativa avança, a protagonista aborda temas como seu relacionamento conturbado com os pais, especialmente a mãe, e sua frustração com os padrões de beleza e feminilidade impostos pela sociedade. Ela também relata sua breve, porém intensa, relação com um artista enigmático chamado K., que a levou a explorar sua própria sexualidade de maneiras não convencionais. Esses episódios são narrados de forma não linear, com a narradora transitando livremente entre memórias, fantasias e reflexões sobre sua condição existencial.
Um aspecto notável do enredo é a maneira como a protagonista se posiciona em relação à sua herança alemã e ao legado do Holocausto. Ela expressa uma profunda ambivalência, oscilando entre sentimentos de culpa, repulsa e desejo de redenção. Essa tensão é evidenciada em sua fascinação por um homem judeu imaginário, chamado Shlomo, com quem ela fantasiava ter um relacionamento que a ajudaria a superar o fardo do passado alemão.
Ao longo da consulta, a narradora também revela sua obsessão por um método não convencional de lidar com sua solidão e insatisfação sexual: a aquisição de um robô sexual projetado por um inventor japonês. Essa ideia é explorada de maneira complexa, refletindo suas ansiedades sobre a desumanização e a perversão da sexualidade.
A estrutura do romance é marcada pela alternância entre os relatos da protagonista e os comentários e intervenções do Dr. Seligman. Essa estrutura dialógica cria uma dinâmica intrigante, na qual o leitor é convidado a acompanhar não apenas a narrativa da personagem, mas também as reações e questionamentos do terapeuta.
O estilo narrativo de Volckmer é denso, introspectivo e repleto de divagações filosóficas. A narradora se expressa de maneira eloquente, com uma prosa rica em imagens poéticas e reflexões profundas sobre a condição humana. Sua voz é marcada por um tom confessional, que confere autenticidade e vulnerabilidade à narrativa.
O enredo de "A Consulta" é uma jornada introspectiva e perturbadora, na qual a protagonista confronta seus conflitos identitários, sexualidade reprimida e solidão existencial. Ao longo da sessão terapêutica, a narradora revela camadas complexas de sua psique, desafiando os limites da normalidade e explorando temas universais como a busca pela identidade, a luta contra os padrões sociais e a necessidade de conexão humana. O resultado é um romance profundamente enraizado na experiência humana, que convida o leitor a mergulhar na psique de uma personagem singularmente complexa.
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