Foto: Divulgação / Acervo Pessoal / Bárbara Mançanares |
“este livro carrega uma linguagem ancestral. a língua: essa memória da palavra! nele, o mundo gira em seu próprio ritmo, alheio aos dicionários e enciclopédias, tendo como criadora a dança das plantas, dos bichos, das rochas.”
Carolina Hidalgo Castelani, escritora e psicanalista
“A voz incauta das feras” (92 págs.), terceiro livro da escritora e bordadeira Bárbara Mançanares (@bamanzanares) reúne poemas que escapam do entendimento de uma mensagem imediata e provocam quem lê a partir da linguagem e das interessantes imagens alcançadas. A obra, publicada pela Editora Patuá, conta com a orelha e o posfácio assinados pela escritora e psicanalista Carolina Hidalgo Castelani e prefácio escrito pela poeta e influenciadora literária Aline Aimée.
Nesse livro, o mundo natural encontra as palavras fora do dicionário, subvertendo uma suposta utilidade da língua. Dessa forma, a palavra, per si, ganha força de criação. Se elas foram pensadas, proferidas ou escritas, elas passam a existir e a agir. As imagens elaboradas pela poeta são oníricas, selvagens e profundas, indo além do que parece real e cotidiano, evocando, assim, o próprio poder da linguagem. A palavra, nos versos de Bárbara, não são meras ferramentas, elas são protagonistas e se comportam como seres naturais e partes fundamentais de um universo que se expande a cada verso. Em “A voz incauta das feras”, a linguagem é criador e criatura.
Na orelha, Carolina Hidalgo Castelani explica: “É como uma oração construída sílaba atrás de sílaba. A natureza como compositora do alfabeto que transcende o tempo. Entramos em contato, nestas páginas, com a selva indômita de nossos sonhos”.
Já Aline Aimée, que também é mestre em Literatura Brasileira, destaca no texto de apresentação, o que, na poesia de Bárbara, permite que ela consiga o feito de embrenhar no ato de criação, misturando paisagens, sonhos e a própria palavra. Segundo ela, a desnaturalização do olhar junto, a expressividade das imagens evocadas e a sofisticação metafórica permitem que ela alcance esse efeito. “A poeta manuseia a linguagem como um tecido no bastidor: perfura, colore, desenha, revira, reforça a trama e, por vezes, desfaz, recomeça e trabalha as rebarbas”, complementa.
Segundo a autora, esse efeito de suspensão da realidade é intencional. “Meu livro convida não a uma resposta sobre algo, mas a adentrar o enigma. Como lidamos com aquilo que nos escapa?”.
A partir de conceitos expostos por María Negroni em “A arte do erro” (100/cabeças, 2022), Bárbara Mançanares explica que sua intenção é fugir da ideia de precisar passar uma mensagem linear. Segundo ela, “A voz incauta das feras” trabalha a constituição da palavra, do idioma, acompanha, atravessa e às vezes subverte os ciclos naturais e da natureza. “Nos poemas, a densidade das imagens é o foco, não buscando propor uma interpretação e entendimento linear, mas sim a “persistência do enigma”, complementa.
A poeta confessa que esse livro foi para ela uma grande experimentação artística. Para escrevê-lo, ela precisou aliar seus processos antigos a novas ferramentas de criação, como a escrita automática, método utilizado por escritores do movimento surrealista. Bárbara não escreve a partir de projetos pré-estabelecidos, mas sim de palavras que a mobilizam. Essa busca pelas palavras a trouxe para a obra.
“Nos últimos anos passei a perceber que essas palavras se repetem na minha escrita, criando uma espécie de território poético no qual eu mergulho. Fui criada na roça, no convívio com a terra, com o barro, com o verde, com os açudes, com o isolamento. Hoje vejo que esse território da infância, da adolescência e de parte da vida adulta influenciam os temas e as imagens presentes na minha escrita”, reflete.
Bárbara Mançanares e a escrita como algo fundante de si
Bárbara Mançanares é poeta e bordadeira. Nasceu no sul de Minas Gerais e vive, atualmente, no sul da Bahia. Possui graduação em História (UFOP) e mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO). É autora do livro Maio (Quintal Edições, 2018), Cartografias do corpo que canta (Editora Patuá, 2021) e A voz incauta das feras (Editora Patuá, 2024). Seu segundo livro foi vencedor do Prêmio Nacional Mozart Pereira Soares de Literatura na categoria Poesia em 2023. Atualmente escreve seu primeiro romance com o apoio do Itaú Cultural (Edital Público Rumos 2023-2024).
Ainda no Ensino Médio, Bárbara começou a publicar seus poemas em um jornal local de Alfenas, o Jornal dos Lagos, por incentivo da professora e jornalista Patrícia de Oliveira, mas sua escrita começou ainda antes, também por incentivo de uma professora: “Me lembro de ainda na infância ter uma professora de português, chamada Maria do Carmo, que era poeta e nos incentivava a escrever também, inclusive, lançamos uma coletânea com poemas da turma nesse período”.
As responsáveis pelo primeiro grande impacto da literatura na poeta foram Adélia Prado e Clarice Lispector. “Elas inauguraram em mim o sem-nome, aquilo que nos toca e nos escapa em uma leitura.” Depois foi a vez de García Márquez, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Alejandra Pizarnik, Ana Martins Marques e Herberto Helder.
Já as influências diretas e indiretas que ajudaram a construir a “A voz incauta das feras” foram Alejandra Pizarnik, Ana Paula Tavares, Herberto Helder, Mónica Ojeda, Mell Renault e Al Berto.
Seus próximos projetos incluem um novo livro de poemas a ser publicado em 2025 pela Editora Toma aí um poema (TAUP) e a publicação de seu romance de estreia, escrito com o apoio do Itaú Cultural.
Confira um poema do livro (página 80):
eu sou a que navega sobre a devastação das pedras
perceba o rio violento
a dissolução das falésias
perceba a voz distante dos penhascos
há uma extensão de cardumes sob meu casco
nossos nomes recobertos por lençóis de água e lodo
eu sou a que navega
e profana com a língua o murmúrio das nascentes
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