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Resenha: Poor things: A novel [Pobres criaturas], por Alasdair Gray


APRESENTAÇÃO

Na década de 1880, em Glasgow, Escócia, o estudante de medicina Archibald McCandless fica encantado com a intrigante criatura conhecida como Bella Baxter. Supostamente produto do diabólico cientista Godwin Baxter, Bella foi ressuscitada com o único propósito de cumprir os caprichos de seu benfeitor. À medida que seu desejo se transforma em obsessão, os motivos de Archibald para libertar Bella revelam-se tão egoístas quanto os de Godwin, que reivindica seu corpo e alma.

Mas Bella tem suas próprias paixões para perseguir. Paixões que a levam a cassinos aristocráticos, à Alexandria da vida baixa e a um bordel parisiense, atingindo um clímax interrompido em uma igreja escocesa. Explorando a sua posição como mulher à sombra do patriarcado, Bella sabe que cabe a ela libertar-se – e decidir que significado, se houver, o verdadeiro amor tem na sua vida.

RESENHA

Contrariando seu título sóbrio, o texto revela a amizade peculiar entre um estudante de medicina e o enigmático Godwin Baxter, uma figura colossal e genial, que remete tanto a Frankenstein quanto ao Homem Elefante. Segundo McCandless, Baxter teria realizado um experimento transgressivo, transplantando o cérebro de um feto para o corpo de sua mãe falecida, dando origem a Bella, uma criatura de beleza e inocência infantil. McCandless, um homem de rigorosa castidade, se vê prometido a Bella, mas antes do casamento, ela embarca em uma aventura com um conhecido sedutor, deixando seu mentor e noivo em desespero. A narrativa de McCandless é adornada com elementos visuais típicos da estética de Gray: ilustrações que imitam o estilo eduardiano, reproduções de cartas lacrimosas e desenhos anatômicos que parecem sair das páginas de uma versão alternativa do ‘Gray’s Anatomy’, incluindo duas imagens que ilustram as cartas apaixonadas de Bella e seu cansado conquistador.

Entretanto, ‘Memórias Juvenis de um Médico Sanitarista Escocês’ é apenas uma fração da tapeçaria que compõe ‘Pobres Criaturas’. A introdução de Gray brinca com a descoberta do manuscrito, alegadamente encontrado em meio a entulhos pelo curador do Palácio do Povo de Glasgow. As ‘Notas Históricas e Críticas’ que acompanham o texto, com suas 40 páginas de comentários que oscilam entre o humor e o pedantismo, forçam a cultura britânica dos últimos cinquenta anos a se dobrar às fantasias de Gray: poemas autênticos de Tennyson e falsificações de Kipling são atribuídos a personagens secundários, e Beatrice Webb é inserida na narrativa como testemunha dos “escândalos amorosos da heroína com Wells e Ford Madox Hueffer”. A capa do livro é um mosaico de sinopses alternativas, análises prontas e uma errata fictícia, completando o intricado jogo literário proposto por Gray.

No cerne da obra, apresenta-se uma carta póstuma de Victoria McCandless, antes conhecida como Bella, que, com uma ironia mordaz, desmonta a narrativa sensacionalista de seu esposo. Ela se reinventa, não mais como a criatura renascida de seu marido, mas como uma mulher de vanguarda, uma médica em 1914, uma Fabiana, sufragista e pioneira na luta pelo direito ao aborto. Com uma voz firme e moderna, ela rejeita a imagem distorcida que lhe foi atribuída, criticando o estilo vitoriano da obra de seu marido, comparando-o a estruturas góticas falsificadas e ao odor sufocante de crinolinas em um dia de verão no Palácio de Cristal.

Ela vê o livro como um pastiche vitoriano, um exercício que, embora perspicaz e divertido, mergulha em detalhes como a descoberta de Sir Colin, a captura de uma vida, a curiosidade sobre a utilidade dos coelhos peculiares, a astúcia inútil e o conhecimento dos antigos gregos, culminando com um ‘adeus’, o buldogue de Baxter e uma mão terrível. Victoria se posiciona como uma figura séria e progressista, distante da personagem simplória que McCandless tentou retratar.

No epicentro da obra, encontramos o rascunho inicial de McCandless, uma composição que entrelaça a sombria melancolia escocesa com o exagero do melodrama e a ousadia da ficção científica. Baxter emerge como uma figura grotesca e multifacetada, um símbolo da era vitoriana que Gray utiliza para explorar a complexidade da vida e da morte através da medicina. A narrativa se desdobra com a carta de Bella, enviada de terras distantes, revelando um entendimento ainda fragmentado e excêntrico da realidade. Gray, com sua imaginação fértil, tece uma visão do império britânico que, apesar de sua grandiosidade passada, é retratado com um futuro distópico onde os descendentes de grandes estadistas buscam moedas no Tâmisa, sob o olhar divertido de turistas tibetanos.

Gray não poupa esforços em sua busca por ironia e sátira, e embora a jornada possa ser exaustiva, é justamente essa extravagância que confere à obra “Coisas Pobres” seu charme peculiar e suas recompensas literárias, repletas de humor e crítica social.

Resenha: Assassino da lua das flores, David Grann

Foto: Arte digital

 

APRESENTAÇÃO

Nos Estados Unidos dos anos 1920, as pessoas com maior renda per capita do mundo eram membros do povo indígena Osage, de Oklahoma. Até que, um a um, os Osage começaram a ser mortos. As primeiras vítimas são a família de Mollie Burkhart. E isso era apenas o começo, pois logo mais e mais homicídios contra nativos americanos aconteceriam, sempre em condições misteriosas. Nessa parcela remanescente do Velho Oeste, habitada por malfeitores como Al Spencer, conhecido como "o terror fantasma", e onde magnatas e homens do petróleo, como J. P. Getty, fizeram fortuna, muitos dos que ousaram investigar os assassinatos em massa também perderam a vida.

Com o aumento do número de vítimas, o recém-criado FBI assume o caso, e o jovem diretor, J. Edgar Hoover, convoca um antigo Ranger texano chamado Tom White para ajudá-lo. White reúne uma equipe secreta ― que inclui um agente indígena infiltrado na região  ―  e, junto com os Osage, expõe uma das conspirações mais assombrosas da história dos Estados Unidos.

RESENHA


No alvorecer do século XIX, em 1804, o presidente Thomas Jefferson acolheu uma comitiva de líderes Osage que haviam deixado suas terras tradicionais — terras essas que Jefferson acabara de adquirir dos franceses na Compra da Louisiana, e não dos próprios Osage. Os dignitários Osage, imponentes em estatura, muitos ultrapassando um metro e oitenta, destacavam-se entre os presentes na Casa Branca. Jefferson, admirado, referiu-se a eles como “os mais nobres homens que já encontramos”. Ele assegurou-lhes justiça e amizade da nação americana daí em diante.


Contudo, nas duas décadas seguintes, os Osage viram-se privados de seu território, abdicando de quase 100 milhões de acres e sendo relegados a um confinamento no sudeste do Kansas, uma área de aproximadamente 50 por 125 milhas. O governo dos EUA prometeu que essa terra seria deles eternamente. Mas, conforme David Grann revela em seu livro intrigante e perturbador, “Os Assassinos da Lua das Flores”, essa promessa foi igualmente desfeita. Colonos brancos invadiram as terras Osage, conflitos eclodiram e, por fim, a tribo foi coagida a vender seu território por meros US$ 1,25 por acre. Em busca de um novo começo, os Osage se estabeleceram em uma região indesejada do futuro estado de Oklahoma, caracterizada por seu terreno acidentado e solo infértil. Eles adquiriram essa terra por cerca de um milhão de dólares e, astutamente, asseguraram os direitos sobre “petróleo, gás, carvão ou outros minerais” encontrados no subsolo, garantindo assim a posse não apenas da superfície, mas também das riquezas enterradas.


Naqueles dias, a terra dos Osage era um segredo bem guardado, escondendo sob sua superfície rochosa um tesouro negro e viscoso. Apenas os Osage sabiam do petróleo que fluía nas profundezas, um conhecimento que logo transformaria suas vidas. Em 1923, a fortuna jorrou da terra, e a tribo Osage viu uma riqueza de mais de 30 milhões de dólares, uma soma que hoje ultrapassaria os 400 milhões. Eles se tornaram, per capita, os mais abastados do planeta, erguendo mansões e adquirindo carros luxuosos. A riqueza era tão vasta que um escritor da época proclamou: “A cada novo poço perfurado, os Osage enriquecem exponencialmente… Eles estão acumulando tanta riqueza que algo precisa ser feito.”


E algo foi feito, mas não para o benefício dos Osage. O governo federal, sob o pretexto de proteger os Osage de sua própria prosperidade, impôs guardiões para gerenciar suas finanças, rotulando muitos como “incompetentes”. Os de sangue puro eram frequentemente subjugados a essa tutela, enquanto os de sangue misto mantinham sua autonomia. Não demorou para que os Osage se tornassem presas de esquemas de corrupção e casamentos por interesse. Uma mulher branca chegou a oferecer-se em casamento ao Osage mais abastado, prometendo fidelidade e virtude.


David Grann narra esses eventos através dos olhos de Mollie Burkhart, uma Osage de linhagem pura, cuja fortuna atraiu um marido branco. Mas a riqueza não trouxe paz; sua família foi assolada por mortes misteriosas. Sua irmã Minnie sucumbiu aos 27 anos a uma doença enigmática. Anna, sua outra irmã, desapareceu após uma noite de indulgência, mais tarde encontrada morta em um barranco, vítima de um tiro. Charles Whitehorn, outro Osage, teve o mesmo destino. As mortes foram declaradas assassinatos, e a mãe de Mollie, Lizzie, logo seguiu o mesmo caminho, vítima da mesma doença inexplicável que levou Minnie.


O terror não parou por aí. Outra irmã de Mollie pereceu em um incêndio suspeito, deixando-a como a única sobrevivente de sua família imediata. A comunidade Osage estava sob ataque, uma série de assassinatos que ficou conhecida como o Reinado do Terror Osage, e que eventualmente chamou a atenção do recém-formado FBI.


A tragédia continuou com a morte de William Stepson, um campeão Osage, e mais dois membros da tribo, todos suspeitos de terem sido envenenados. Um casal foi assassinado com uma bomba enquanto dormia. Entre 1920 e 1924, mais de duas dezenas de Osage e aqueles que tentaram ajudá-los foram mortos, um período sombrio que manchou a história com a ganância e a violência contra um povo que apenas desejava viver em paz com a riqueza que a terra lhes concedera. Na década de 1920, a aplicação da lei nos EUA era um mosaico de autoridades locais e caçadores de recompensas. Entre eles, o xerife de Osage, Harve M. Freas, era conhecido por sua inércia diante dos crimes contra os Osage. Em busca de justiça, a tribo recorreu a Barney McBride para pedir ajuda federal, mas sua missão terminou tragicamente com seu assassinato brutal.


O FBI, fundado em 1908, ainda engatinhava naquela época, com poucos agentes e uma reputação questionável. A chegada de J. Edgar Hoover em 1924 marcou uma virada, impondo rigor e métodos científicos na investigação. Os assassinatos dos Osage se tornaram o primeiro grande desafio do FBI sob a liderança de Hoover. Tom White foi o escolhido por Hoover para liderar a investigação. Crescido na lei, White e sua equipe disfarçada mergulharam na comunidade Osage, cada um assumindo uma identidade única, desde um criador de gado até um curandeiro indígena.


David Grann, em sua obra, tece essa história com a maestria de um romancista, embora seja um relato verídico. Seu talento como jornalista e escritor brilha ao dar vida aos eventos e personagens, mesmo os mais sombrios, com uma narrativa que captura a essência da época e a complexidade da investigação.


Quando a resolução dos crimes de Osage se desenrola e os verdadeiros culpados são desmascarados, a narrativa não se encerra com a revelação. A surpresa do leitor é apenas o prelúdio para as últimas páginas, onde Grann transcende a narrativa histórica e, com o auxílio dos Osage contemporâneos, expõe uma trama ainda mais sinistra que se estende além daqueles anos de terror. A indignação que se segue é um testemunho da injustiça atroz cometida contra os Osage, um dos atos mais vis perpetrados contra os povos originários deste continente. “A terra está impregnada de sangue”, lamenta Mary Jo Webb, uma Osage que busca entender os crimes de outrora. Grann, com sua escrita incisiva, nos lembra que a história é um tribunal implacável, julgando os atos da humanidade.

Resenha: Zona de interesse, de Martin Amis

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

A Zona de Interesse, em Auschwitz, era o local onde os judeus recém-chegados passavam pela triagem, processo que determinava se seriam destinados aos trabalhos forçados ou às câmaras de gás.

Este romance se passa nesse lugar infernal, em agosto de 1942. Cada um dos vários narradores testemunha o inominável a sua maneira. O primeiro é Golo Thomsen, um oficial nazista que está de olho na mulher do comandante. Paul Doll, o segundo, é quem decide o destino de todos os judeus. E Szmul, o terceiro, chefia a equipe de prisioneiros que ajudam os nazistas na logística do genocídio.

Neste romance, Martin Amis reafirma seu lugar entre os mais argutos intérpretes de nosso tempo.

RESENHA

Discutir a obra de Martin Amis é um desafio intrigante. Por um lado, parece simples: há uma abundância de material, uma riqueza de temas e estilos que saltam das páginas de seus livros. Por outro lado, é uma tarefa complexa, pois cada análise de suas obras recentes inevitavelmente se transforma em um exame do próprio Amis, uma avaliação do estado atual de sua carreira literária e do legado que ela representa.


A pergunta que se impõe é: este novo livro marca um retorno triunfal às suas raízes literárias ou é apenas mais um passo em um suposto declínio? Essa questão é frequentemente acompanhada por outras, derivadas de declarações polêmicas que Amis possa ter feito publicamente, abordando temas como religião, etnia, gênero e política.


Imaginei uma crítica escrita em um universo alternativo, onde “Zona de interesse” fosse a primeira obra de um autor britânico desconhecido, cuja única lembrança seria um guia de videogame estiloso dos anos 80. Nesse cenário imaginário, eu poderia analisar o livro sem as influências externas que cercam Amis.


No entanto, essa abordagem se mostrou falha. É impossível ignorar o contexto mais amplo da carreira de Amis ao considerar “Zona de interesse”. Este romance não é apenas uma das suas melhores obras desde “The Information”, mas também representa o ápice de um projeto que ele vem desenvolvendo há anos. “Zona de interesse” é a mais recente tentativa de Amis de confrontar o sombrio legado do século XX. Seus trabalhos anteriores, como o inovador “Time’s Arrow” de 1991, que inverteu a cronologia do Holocausto, e “Koba the Dread” de 2002, sobre Stalin, apesar de suas qualidades, não conseguiram capturar completamente o que Amis tem buscado ao longo de sua carreira: uma harmonização bem-sucedida de seu talento inerentemente cômico com a gravidade da história europeia recente. “Zona de interesse”, ao abordar o Holocausto - um tema notoriamente difícil de ser tratado com humor - chega mais perto do que nunca de alcançar esse equilíbrio, desafiando os críticos que acreditam que Amis perdeu o rumo de seu talento. Como Julie Birchill, jornalista inglesa, comentou de forma controversa: “Se Martin Amis tivesse continuado a escrever sobre fumar, sexo e sinuca, talvez pudesse ter sido o próximo Nick Hornby.”


A narrativa se inicia com Angelus “Golo” Thomsen, um dos três narradores da história, capturado por um fascínio erótico ao observar uma mulher de vestido alvo, passeando sob a sombra de árvores de bordo junto a suas filhas. A voz que emerge dessas linhas é inconfundivelmente astuta e singular, uma assinatura inimitável de Amis: “Não me era estranho o estampido do trovão; não me era alheio o fulgor do relâmpago. Com uma experiência notável nesses fenômenos, eu estava bem familiarizado com as tempestades torrenciais — as chuvas avassaladoras, seguidas pelo sol e pelo arco-íris.” Tal repetição retórica é uma marca registrada do estilo de Amis, um recurso estilístico que ele explora com maestria, tal como Joan Didion. (E, como é de se esperar, os críticos não deixam de apontar essa característica repetidamente. Era exatamente isso que eu buscava evitar com a ideia do universo paralelo.)


A cena descrita evoca inicialmente um idílio pastoral: “Numa tarde de verão, com mosquitos dançando ao crepúsculo… Meu caderno repousava sobre um tronco, as páginas agitadas por uma brisa caprichosa.” Poder-se-ia imaginar que estamos em um campus universitário, na presença de um acadêmico jovem e elegante — ele próprio se descreve com “modos floridamente elegantes”, trajando “um blazer de tweed sob medida e calças de sarja”.


Contudo, a realidade é outra; não estamos em Oxford ou qualquer lugar semelhante. Rapidamente nos damos conta de que o cenário do romance — a “zona de interesse” que lhe dá nome — é Auschwitz. Thomsen é um nazista de alta patente, sobrinho fictício de Martin Bormann. A mulher que desperta seu interesse é Hannah Doll, esposa de Paul Doll, o comandante do campo de concentração, inspirado, em certa medida, em Rudolf Höss.


Ao longo do livro, o bastão da narrativa é passado entre Thomsen, Paul Doll e um judeu polonês chamado Szmul, membro do chamado Sonderkommando – os eleitos dos condenados que foram encarregados de se livrar dos corpos de seus companheiros judeus. . Amis lida com as mudanças de registro com compostura suave. É Thomsen quem ocupa a posição estilística, apresentando sua parte do livro com delicado prazer e auto-estima nabokovianos. Ele descreve seu próprio corpo, por exemplo, com uma extensão impressionante, desde a “cauda flamenga do nariz, a prega desdenhosa da boca” até o “pênis extensível, classicamente compacto em repouso (com prepúcio pronunciado)”. Thomsen parece ocasionalmente perturbado pela natureza do seu trabalho como gestor intermédio numa burocracia de matança, descrevendo-se a certa altura como um Schreibtischtater – “um assassino de escritório ”; especificamente, ele supervisiona o projecto baseado em Auschwitz, gerido pela gigante química IG Farben e tripulado por trabalho escravo judeu, para desenvolver combustível sintético e borracha para o esforço de guerra. Durante grande parte do livro, porém, Thomsen está muito preocupado em tentar demitir a esposa do Comandante. Ser sobrinho do secretário pessoal de Hitler dá-lhe uma certa licença nesta área, uma certa margem de manobra para a insubordinação, embora mesmo na casa das máquinas do Holocausto as normas sociais continuem a vigorar. A noção de delito sexual parece indescritivelmente trivial no contexto do cenário do livro, um absurdo do qual Thomsen parece terrivelmente consciente. No início do livro, durante um momento a sós com Hannah na entrada de uma estufa, ele se pergunta se seria “tão estranho, realmente, incentivá-la a entrar e me inclinar para ela e reunir em minhas mãos caídas as dobras brancas de o vestido dela? Seria? Aqui? Onde tudo era permitido?

Entre os três personagens que narram a história, somente Thomsen possui a chave para o reino dourado da narrativa de Amis. As passagens de Szmul são um mergulho constante na escuridão, breves e intensas — como se as palavras lhe faltassem ao descrever o palco de atrocidades onde foi colocado para dirigir. “Nossa rotina”, ele relata, “é cercada pela morte, manuseando tesouras pesadas, alicates, marretas, baldes de gasolina, pás e trituradores”. Já a voz de Doll é limitada de outra forma: pelas barreiras de seu raciocínio e imaginação limitados. Amis tece as falas de Doll com um tecido de lugares-comuns. Ele surge após um episódio tenso, lidando com a chegada de um trem lotado, e confessa que isso lhe causou “uma dor de cabeça insuportável”. Ou seja, o que temos é uma encenação completa da trivialidade do mal — um conceito que, obviamente, já é um clichê no discurso nazista. Doll evita olhar para sua própria vileza e para o horror inédito do “Projeto” que ele comanda. Sobre o trabalho que Szmul e os outros Sonderkommandos realizam — a transferência, entrega e descarte de corpos, ou “Stücke” (pedaços) — ele diz: “É impressionante a profundidade da miséria moral que alguns seres humanos podem alcançar”.


A ignorância voluntária é o que mais chama atenção em Doll, o núcleo oco de sua corrupção. Ele é um personagem vívido, uma caricatura cancerígena que é, ao mesmo tempo, um dos maiores assassinos em massa da história e um burocrata notoriamente ineficaz, apelidado pelos colegas de “o velho bêbado”. Amis captura com precisão a incapacidade de Doll de perceber o horror que ele próprio representa. Em um momento, repugnado pelo odor da morte que permeia o campo — das chaminés, da fumaça, dos cadáveres — ele se sente “como se estivesse preso em um daqueles pesadelos fétidos que todos experimentamos — sabe, aqueles em que você se vê como um gêiser borbulhante de imundície, como um jorro impressionante de petróleo, e tudo continua a brotar e se espalhar, sem que nada possa ser feito”. Não são apenas as imagens que perturbam, mas a aceitação banal de Doll — sua convicção — de que isso é normal, que é um sonho que “todos nós” compartilhamos.


A miopia de Doll não é apenas uma metáfora para sua moralidade turva, mas também revela uma limitação mais técnica na construção do personagem: Amis, com sua veia satírica, às vezes exagera na dramatização. Seus personagens mais icônicos são retratos exagerados do grotesco: Keith Talent de “London Fields”, John Self de “Money” e até mesmo o “Martin Amis” fictício, protagonista de uma sátira que se desenrola há décadas na imprensa anglófona.


Doll é movido pela ironia dramática: estamos sempre cientes de que sabemos mais sobre ele do que ele mesmo, destacando sua inabilidade de se enxergar como realmente é. Em um momento revelador, ele declara: “Cheguei à conclusão de que tudo foi um erro trágico”. Ele não se refere ao Holocausto, mas ao seu casamento: “Refletindo, sim, acredito que foi um erro trágico me unir a uma mulher tão imponente”. (Ele não pode subjugá-la fisicamente, pois “Ela é muito grande.”) Essa ironia é claramente manipulada pelo autor, fazendo com que Doll pareça menos um ser complexo e mais um manequim para a crítica editorial. Amis o faz expressar opiniões que servem ao seu escárnio. Por exemplo, Doll elogia uma citação de “Mein Kampf” sobre o marxismo entregando o mundo aos judeus, e então afirma: “Bem, não se pode discutir com uma lógica tão impecável. Não: quod erat demonstrandum. Próxima pergunta.” Aqui, a linha entre a voz de um personagem tosco e a voz editorial do autor se confunde; a concordância de Doll soa como se estivesse em um tom irônico que está além de sua compreensão. Da mesma forma, o romance “Lionel Asbo” sofre com a insistência do autor em lembrar ao leitor o sotaque proletário de Lionel, até mesmo especificando a pronúncia de “paddock” com um “k” explosivo no final.


Essas falhas não são meros deslizes, nem falhas fundamentais; optei por negligenciá-las, interpretando-as como reflexos do embate de Amis com as normas do realismo literário. É raro encontrar um autor tão persistentemente vívido e exato em suas descrições do mundo, e ao mesmo tempo tão desapegado da construção de personagens psicologicamente plausíveis. Uma crítica recorrente à sua obra é que seus imensuráveis dons cômicos e estilísticos são subutilizados em sua exploração de temas sérios e profundos, e que ele frequentemente se estende além de seu domínio ao abordar esses vastos e sombrios assuntos históricos. De fato, há verdade nisso: Amis não produziu nada tão impactante quanto “Money”, sua ácida sátira sobre a avareza insana dos anos 80. (Mas, afinal, quem conseguiu algo semelhante? Gostaria genuinamente de saber.)


No entanto, essa crítica não considera como o talento dickensiano de Amis, sua obsessão pelos aspectos mais brutais e degradantes da humanidade, encontra um paralelo adequado nas atrocidades mais nefastas do século passado. Paul Doll é uma versão distorcida de Lionel Asbo ou Keith Talent de “London Fields” - um homem mesquinho e cruel que, neste caso, é engrandecido pela terrível adaptação de seu grotesco pela história.


Apesar de seus ocasionais desacertos, poucos escritores contemporâneos têm a habilidade de retratar tais personagens, que encarnam violência e ignorância com tal estilo e inteligência afiada. Em “A Zona de Interesse”, o nome Hitler nunca é mencionado; ele é apenas aludido indiretamente, através de eufemismos ou rodeios. Contudo, temos um vislumbre dele quando Bormann questiona seu sobrinho, Thomsen, se ele já observou o Führer de perto. Thomsen recorda que esteve na mesma sala que ele uma única vez, no casamento de Bormann em 1929. Ele o descreve como “um maître pálido, rechonchudo e sobrecarregado, diante do qual todos os presentes pareciam esforçar-se para não dar gorjeta”. É uma observação perspicaz; se eu possuísse uma máquina do tempo, certamente gostaria de voltar aos anos 30 e recitar essa descrição para o próprio Hitler.


Essa ironia se revela mais instável e profunda do que as sátiras mais contidas e manipuladoras de Amis. Não se trata de diminuir Hitler, o que seria um exercício fútil, mas de realçar o mistério de como uma figura tão insípida e mesquinha pôde devastar um continente e obter um poder tão destrutivo. Essa tentativa de caracterização apenas ressalta o quão inútil é tentar entender sua essência. Ao fechar “A Zona de Interesse”, somos confrontados com a fotografia de Hitler; o vilão quase esquecido da narrativa, com seu olhar vazio, bigode insignificante e expressão contida, encarando-nos com uma humanidade enigmática. Permanece o desconhecido, e ele ainda resiste. Nem a arte nem a história conseguiram, ou conseguirão, lançar luz sobre essa figura obscura.

Resenha: Temporada de huracanes [temporada de furacões], de Fernanda Melchor (Spanish edition)

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Um grupo de crianças encontra um cadáver flutuando nas águas turvas de um canal de irrigação próximo à fazenda La Matosa. O corpo acaba por ser o da Bruxa, uma mulher que herdou esta profissão da sua falecida mãe, e que os moradores daquela zona rural respeitavam e temiam.

Após a descoberta macabra, as suspeitas e fofocas recairão sobre um grupo de meninos da cidade, que um vizinho viu dias antes enquanto fugiam da casa da bruxa, carregando o que parecia ser um corpo inerte.

A partir daí, os personagens envolvidos no crime nos contarão sua história enquanto nós, leitores, mergulhamos na vida deste lugar atormentado pela miséria e pelo abandono, e para onde convergem a violência do erotismo mais sombrio e das sórdidas relações de poder.

RESENHA


Em “Vozes do Vendaval”, a narrativa se desdobra como um coro polifônico, onde cada personagem é um sopro que se une ao vento da história. A trama começa com o relato de crianças que testemunharam um corpo flutuando no canal, e suas vozes se multiplicam, ecoando as experiências e segredos da cidade de La Matosa. Após um devastador vendaval em 78, uma nova tempestade surge, carregada de desolação e desespero, culminando na tragédia da Bruxa. O corpo encontrado torna-se o epicentro da narrativa, um ponto fixo em meio ao caos, capturando as histórias entrelaçadas que o precederam.


Os capítulos avançam com a força de um vendaval, sem dar trégua ao leitor, enquanto as vozes dos personagens se entrelaçam, revelando suas vidas, seus medos e seus desejos mais íntimos. A cada nova perspectiva, a história ganha camadas, e o que parecia ser verdade se desdobra em novas revelações. As personagens são apresentadas em toda a sua complexidade, e suas ações reverberam através das páginas, como raios em uma tempestade.


Fernanda Melchor, em “Temporada de Furacões”, tece uma tapeçaria de vozes que refletem a desesperança e a indiferença de uma sociedade marcada pelo horror. A narrativa é um mosaico de vidas que se cruzam na iminência da destruição, onde a perda da esperança leva ao abismo da violência e da morte. É um retrato cru da condiidade humana, um vendaval de emoções que arrasta o leitor para o olho da tempestade.


“Temporada de furacões” é uma obra que se tece através de um mosaico de vozes, cada uma narrando fragmentos da realidade que se entrelaçam para formar a história de uma cidade marcada pelo destino. Como um vendaval que cresce em intensidade a cada capítulo, as vidas dos personagens são desvendadas, culminando na imagem de um cadáver que simboliza o ápice do desalento coletivo. As vozes subsequentes, como ecos de um coro trágico, revelam as ações e sentimentos que conduziram ao desfecho fatal.


À medida que a narrativa avança, a perspectiva se eleva, retrocedendo no tempo para apresentar os personagens e os laços que tecem a trama, fechando o círculo que, embora selado, parece destinado a continuar girando. No segundo capítulo, a identidade do cadáver é revelada, e somos introduzidos à figura da Bruxa. A partir daí, a história se desdobra em uma colcha de retalhos de relatos: um personagem fala sobre outro, compartilhando fofocas conhecidas por toda a cidade, e as vozes se alternam abruptamente, assumindo a narração com vigor.


O que poderia ter sido apenas uma nota de rodapé sensacionalista transforma-se em uma exploração profunda das vidas dos personagens, mergulhando nas rachaduras de suas existências e desvendando as motivações por trás do assassinato da Bruxa. O terceiro capítulo nos leva ao “dia” do crime, revelando que as histórias e impulsos dos personagens orbitam em torno dos detalhes que os levaram ao momento fatídico.


Cada capítulo destaca um personagem, desdobrando sua biografia, caráter e os eventos que o moldaram, como se abrindo uma caixa chinesa, onde cada nova revelação dá voz aos envolvidos e seu papel na história. A narrativa começa com o cadáver, depois explora a infância da Bruxa, o mito do tesouro, e segue com Yesenia, Luismi, sua avó, e a confissão de Munra. Norma surge como um ponto de inflexão para Luismi, e a trama se complica até o trágico desfecho na casa da Bruxa.


As vozes narrativas se acumulam, formando um vendaval de histórias que se tornam furacões, alimentados pelas crenças e emoções dos personagens. Se não fosse pelo crescente desespero, talvez o desfecho pudesse ter sido diferente. Mas o desespero se transforma em desesperança, e o acúmulo de fracassos cria um vórtice que arrasta para a morte, deixando um corpo na vala comum, símbolo da desolação que permeia “Temporada de furacões”.


No romance, o epicentro é o enigma do cadáver da Bruxa, entrelaçado com a essência de La Matosa, uma localidade que evoca as memórias de Comala e Santa María. É um lugar onde a esperança parece ter se esvaído, deixando apenas os campos de cana, as mangueiras e o rio serpenteante. A reconstrução de La Matosa surge com a estrada que conecta o porto à capital, trazendo um novo fôlego econômico, mas a morte da Bruxa lança uma sombra de estagnação sobre a cidade.


A narrativa começa pelo fim, com o avô recebendo o corpo da Bruxa, e a história se desenrola em retrospectiva, revelando as vidas entrelaçadas dos habitantes. Cada capítulo é um redemoinho de emoções e desespero, que, apesar de suas tragédias individuais, unem os personagens em um destino comum. O capítulo final oferece um lampejo de luz, uma homenagem às crenças mexicanas sobre a morte, onde, mesmo após o fim mais sombrio, as almas são guiadas para o descanso eterno.


Uma obra dividida em oito segmentos, onde os personagens emergem e reivindicam sua existência em um universo que frequentemente os ignora. Eles lutam com resiliência e determinação para serem vistos e ouvidos. A Bruxa, o Lagarto, Munra, Norma, Luismi e Brando são algumas das figuras que se movem entre a tangibilidade e a penumbra, entrelaçando seus destinos em uma trama de desejos e acasos. Eles habitam um cenário que molda suas tragédias pessoais, que, apesar de sua natureza dolorosa, representam uma celebração da vida e da luta pela existência.


A jornada dos personagens nos leva por caminhos tortuosos, enfrentando desafios como dependência química, abuso sexual, misoginia, discriminação, homofobia e pobreza, até os labirintos do tráfico de drogas e corrupção. “Temporada de furacões” se destaca como um retrato fiel e multifacetado dos problemas sociais, oferecendo uma visão ampla do estado de nossa sociedade sem simplificações.


“Temporada de Furacões” de Fernanda Melchor é uma obra notável por sua autenticidade e valor literário. Com uma narrativa crua e sensível, o livro captura a realidade trágica de um país e das vidas que o compõem. Sem cair no moralismo, desafia o leitor a abandonar o cinismo e a indiferença, convidando-nos a compreender a perspectiva daqueles que mais sofrem. É uma tragédia moderna que se afasta do heroísmo épico, focando-se nas pessoas comuns, cujas histórias de dor e realidade são tão intensas que ofuscam os heróis épicos tradicionais.


O vento atravessava a planície e agitava as folhas das amendoeiras das copas e formava redemoinhos de areia entre as sepulturas distantes. A água está chegando, disse o avô aos mortos, enquanto contemplava com alívio as nuvens gordas que enchiam o céu. Deus o abençoe, a água está chegando, repetiu, mas não tema (p. 221).


Resenha: Oppenheimer, de Kai Bird

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO 

Oppenheimer é a primeira biografia completa do “pai da bomba atômica”. J. Robert Oppenheimer foi o brilhante e carismático físico que liderou os esforços para desenvolver uma arma nuclear em favor de seu país durante a guerra. Logo após o bombardeamento de Hiroshima, tornou-se o cientista mais famoso de sua geração ― uma das figuras icônicas do século XX, a personificação do homem moderno que enfrenta as consequências do progresso científico.

No entanto, Oppenheimer em seguida se opôs ao uso de bombas nucleares e, em especial, da bomba de hidrogênio. Na hoje quase esquecida histeria do início dos anos 1950, as ideias dele contrariaram poderosos defensores de um avanço nuclear maciço, e, como consequência, foi considerado indigno de confiança para lidar com os segredos do governo dos Estados Unidos.


RESENHA


Aborde a leitura desta obra com calma e atenção, pois ela desvenda a complexidade de uma figura enigmática cuja vida se entrelaça com a ciência e os dilemas morais de sua época. As análises de física apresentadas são claras, porém ricas em detalhes, e a exploração das contradições e ambiguidades da vida de Oppenheimer exige uma reflexão cuidadosa. Sherwin, consciente da densidade do tema, uniu forças com Kai Bird para coautoria, refletindo a profundidade e a seriedade com que abordaram a biografia de 25 anos de J. Robert Oppenheimer. O “caso” Star Chamber revela um homem de paixões e pesadelos, um cientista que oscilava entre o amor pela ciência e o temor pelo futuro da energia nuclear. Em uma era marcada pela paranoia da Guerra Fria e por um presidente hostil, Truman, Oppenheimer se viu em um terreno instável.


Oppenheimer, uma figura de contradições, admitiu sua proximidade com o comunismo em seus anos de formação, influenciado por relacionamentos íntimos com Jean Tatlock e, posteriormente, Kitty Peuning, bem como a influência de seu irmão Frank, todos ligados ao Partido Comunista. Sua história é um reflexo das tensões e complexidades de um período turbulento da história.


A narrativa de “Oppenheimer” transcende o momento icônico da explosão atômica, mergulhando nas complexidades do pós-Trinity, onde a fidelidade de Oppenheimer é posta à prova. Lewis Strauss, o antagonista tanto na literatura quanto na tela, emerge como uma figura multifacetada, cuja obsessão em desmantelar Oppenheimer é palpável. Einstein, com sua característica perspicácia, apelidou a AEC de uma conspiração mortal, e o desfecho do livro ecoa mais um lamento eliotiano do que um estrondo apoteótico, refletindo a predileção de Oppenheimer pela poesia de TS Eliot. A trajetória shakespeariana de Oppenheimer é delineada em cinco atos, revelando a ascensão e queda de um cientista cuja herança inspirou uma miríade de expressões culturais.


Oppenheimer, descrito como um homem de estóica presença e olhar penetrante, é lembrado por sua generosidade e calor humano. Admirado pelas mulheres e respeitado por seus pares, ele se destaca não apenas por suas contribuições científicas, mas também pela complexidade de suas interações pessoais. O livro ganha vida com as descobertas dos autores, que vasculharam relatórios e transcrições, incluindo escutas telefônicas ilegais, revelando um custo pessoal e financeiro para Oppenheimer que superava seu salário em Los Alamos.


“Oppenheimer” oferece um olhar introspectivo e emocionante sobre um período crítico na intersecção entre ciência e política, e um lembrete solene da importância de proteger os princípios democráticos que sustentam nossa sociedade.

Resenha: Se a rua beale falasse, de James Baldwin

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APRESENTAÇÃO

Lançado em 1974, o quinto romance de James Baldwin narra os esforços de Tish para provar a inocência de Fonny, seu noivo, preso injustamente. Livro que inspirou o filme homônimo dirigido por Barry Jenkins, vencedor do Oscar por Moonlight.Tish tem dezenove anos quando descobre que está grávida de Fonny, de 22. A sólida história de amor dos dois é interrompida bruscamente quando o rapaz é acusado de ter estuprado uma porto-riquenha, embora não haja nenhuma prova que o incrimine. Convicta da honestidade do noivo, Tish mobiliza sua família e advogados na tentativa de libertá-lo da prisão.Se a rua Beale falasse é um romance comovente que tem o Harlem da década de 1970 como pano de fundo. Ao revelar as incertezas do futuro, a trama joga luz sobre o desespero, a tristeza e a esperança trazidos a reboque de uma sentença anunciada em um país onde a discriminação racial está profundamente arraigada no cotidiano. Esta edição tem tradução de Jorio Dauster e inclui posfácio de Márcio Macedo.

RESENHA


Em meio ao caos de nossa era, muitos escritores se veem em um dilema: tornar-se um porta-voz de causas ou refugiar-se na estética pura. No entanto, é justamente essa turbulência que oferece um terreno fértil para a criatividade literária, com uma diversidade de estilos e perspectivas à disposição do autor comprometido. Aqueles que buscam uma única métrica para avaliar a literatura podem não perceber que a uniformidade estética leva a uma expressão literária monótona e desinteressante.


James Baldwin, um escritor cuja trajetória nunca foi linear, enfrentou tanto aclamação quanto crítica, muitas vezes por razões equivocadas. Como escritor negro, ele navegou entre a condescendência e a pressão para representar uma experiência coletiva, quando, na verdade, cada voz é um símbolo único. Em alguns espaços, sua obra é louvada sem ser verdadeiramente lida, o que pode ser considerado um destino cruel para um escritor. E há aqueles que nunca aceitarão sua voz, independentemente de sua intenção de representatividade.


“Se a rua beale falasse”, o décimo terceiro livro de Baldwin, retrata uma comunidade negra em Nova York, lutando contra as adversidades sem o apoio dos movimentos radicais da época. Apesar de parecer um retrato de uma era passada, a narrativa ressoa com atualidade, destacando os laços emocionais que unem seus personagens. O romance celebra o amor em suas várias formas, incluindo o amor familiar que demanda sacrifícios.


Narrado por Tish, uma jovem de 19 anos, “Se a Rua Beale Falasse” é uma obra multifacetada, construída com economia e poesia. A história de Fonny, um escultor negro injustamente acusado, e sua luta pela justiça, é uma alegoria da incerteza dos destinos humanos. A gravidez de Tish simboliza a esperança e a determinação pela liberdade. No final, Fonny é libertado sob fiança, e o romance conclui com uma reflexão sobre a natureza provisória de nossas vidas, um testemunho silencioso e poderoso da experiência humana compartilhada.


James Baldwin, ao escolher Tish como narradora de sua complexa tapeçaria de personagens, fez uma aposta audaciosa que pagou com uma autenticidade surpreendente. Através de Tish, conhecemos uma alma jovem que nos guia por reflexões íntimas sobre amor, preconceito e a experiência da gravidez. Baldwin não romantiza essas emoções; ele as apresenta como alicerces psicológicos que podem determinar a sobrevivência ou a ruína de um indivíduo. Fonny, protegido pelo amor inabalável de Tish e pela luta incansável de sua família, escapa da desolação mental que aflige muitos encarcerados injustamente. No entanto, o pai de Tish, incapaz de suportar a pressão, encontra um fim trágico.


O romance se desenrola com uma tensão que é mais psicológica do que física, retratando seus personagens como seres humanos complexos, não apenas vítimas de uma divisão racial. Baldwin humaniza todos os envolvidos, incluindo figuras brancas simpáticas, como o advogado de Fonny, e até mesmo a mulher que o acusou, revelando camadas de desespero e desamparo que transcendem a cor da pele. A injustiça enfrentada por Fonny é um reflexo de uma verdade maior para Baldwin: a opressão é uma arma psicológica devastadora, e a dignidade humana é frequentemente o preço pago. O romance, contudo, termina com uma nota de esperança, destacando a importância dos laços familiares e comunitários em tempos de adversidade. À medida que a sociedade se fragmenta, esses laços se tornam o refúgio final e a fonte de força para enfrentar o futuro incerto.


“Se a Rua Beale Falasse” ressoa com a essência da experiência humana, uma narrativa que transcende o tempo com sua autenticidade e profundidade emocional. A história, enraizada na realidade, dispensa artifícios estéticos e modismos exagerados, destacando-se como uma obra de arte atemporal que toca o coração com sua verdade crua e sua representação vívida da humanidade.

Resenha: A sociedade da neve, de Pablo Vierci

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APRESENTAÇÃO

Em outubro de 1972, um avião fretado da Força Aérea do Uruguai que rumava para o Chile se choca contra uma montanha nos Andes. Das 45 pessoas a bordo - a maioria fazia parte de um time de rúgbi amador -, 29 sobrevivem ao impacto, mas apenas dezesseis serão resgatadas, depois de improváveis 72 dias.
Durante esse longuíssimo período, os sobreviventes ficam cercados por rocha e gelo, sem roupas apropriadas, sob temperaturas de até trinta graus negativos, abrigados no que restara da fuselagem depois da colisão. Famintos, lançam mão de um recurso extremo: alimentar-se dos corpos dos amigos mortos.
Dez dias depois do acidente, a primeira notícia que ouvem do mundo exterior por um radinho recém-consertado é que as buscas pelo avião foram abandonadas. Como se não bastasse, uma avalanche soterra a fuselagem partida. Os que conseguem sobreviver ficam enterrados vivos durante três dias. Sem outra alternativa, decidem sair de lá por si mesmos. Mas para isso será preciso escalar o paredão de gelo que os separa de um horizonte desconhecido - que pode ser a salvação ou a desesperança final.

RESENHA

Nas páginas deste relato, as vozes dos dezesseis resilientes ecoam, narrando a odisséia vivida após o desastre nos Andes em 1972. Jovens na flor da idade, enfrentaram o frio cortante e a ausência de recursos básicos em uma altitude que desafia a própria vida. Cada sobrevivente compartilha sua perspectiva única sobre os setenta e dois dias de provações, a luta pela sobrevivência, o confronto com a morte e o impacto duradouro dessa experiência em suas existências.


Este livro transcende a simples cronologia dos fatos, oferecendo um mergulho profundo nas transformações indeléveis que marcaram essas dezesseis almas e as memórias eternizadas na montanha e nos corações dos que ficaram.


Pablo Vierci, mais do que um autor, é um testemunho vivo, um ex-colega dos sobreviventes que, um ano após a tragédia, iniciou a jornada de registrar essa história. A precisão com que reconstitui os eventos, desde os momentos que antecederam o acidente até as consequências que se seguiram, reflete uma conexão íntima com a narrativa e seus protagonistas. O epílogo não é apenas um fechamento, mas um testamento pessoal do significado dessa obra para ele. Os relatos são pontuados por reflexões profundas sobre a honestidade brutal que a situação impôs, a recusa em mascarar a verdade mesmo após o resgate e a angústia da possibilidade de ser o último a perecer, privado do consolo dos companheiros nos momentos finais. Essas são as histórias de sobrevivência, verdade e humanidade entrelaçadas no tecido da história.


Em meio ao branco imaculado e ao silêncio dos Andes, um grupo de jovens forjou uma comunidade resiliente, a “Sociedade da neve”, para enfrentar o inimaginável. Sua saga, agora eternizada na tela, é um testemunho da tenacidade humana e um espelho fiel das emoções e provações vividas por seus membros. “A Sociedade da neve” não é apenas um relato; é uma jornada visceral através dos olhos daqueles que a viveram. É uma celebração da vida, uma homenagem aos que persistiram e aos que se foram, um hino à coragem e à esperança que toca a alma. Este livro é uma recomendação incontestável, uma narrativa que transcende a ficção pela sua crua realidade.


Pablo Vierci, um observador atento e ex-colega dos sobreviventes, nos guia por esta história desde o seu início em 1973. Com uma reconstrução meticulosa dos eventos, desde a tragédia inicial até a luta pela sobrevivência e o impacto duradouro nas vidas dos envolvidos, Vierci nos aproxima de uma verdade que vai além dos fatos, transformando o acidente em um mosaico de experiências humanas.


Este livro é o fruto de uma história que amadureceu com o tempo, ensinando-nos que, mesmo diante da adversidade extrema, é possível forjar uma sociedade regida pela compaixão e pela capacidade de superar o impossível. O desastre nos Andes partiu a existência desses jovens, mas suas histórias se tornaram um marco na vida dos leitores. “A Sociedade da neve” reúne os dezesseis sobreviventes, permitindo que suas vozes ressoem através do tempo e deixem um legado indelével na história.

Resenha: Doze anos de escravidão, de Solomon Northup

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APRESENTAÇÃO

Considerada a melhor narrativa já escrita sobre um dos períodos mais nebulosos da história americana, Doze anos de escravidão narra a história real de Solomon Northup, um negro livre que, atraído por uma proposta de emprego, abandona a segurança do Norte e acaba sendo sequestrado e vendido como escravo. Depois de liberto, Northup publicou o relato contundente de sua história, que se tornou um best-seller imediato. Hoje, 160 anos após a primeira edição, Doze anos de escravidão é reconhecido como uma narrativa de qualidades excepcionais. Para a crítica, o caráter especial do livro deve-se ao fato de o autor ter sido um homem culto que viveu duas vidas opostas, primeiro como cidadão livre e depois como escravo. “O livro nos encantou: a dimensão épica, o detalhamento, a aventura, o horror, a humanidade. Lia-se como um roteiro de cinema, pronto para ser filmado. Eu não podia acreditar que nunca ouvira falar nele. Pareceu-me tão importante quanto O diário de Anne Frank, só que publicado quase cem anos antes.” - Steve McQueen, diretor do filme 12 anos de escravidão “O primeiro filme que torna impossível continuar vendendo mentiras e mistificações sobre a escravidão.” - The New York Times. O livro pode levar sobrecapa relacionando o livro ao filme.

RESENHA

O livro, doze anos de escravidão, é a narrativa de Solomon Northup, um homem que, embora nascido livre, foi capturado e subjugado à vida de um escravo. Originário do condado de Saratoga, em Nova York, Solomon era um homem de família, casado com Anne e pai de três filhos. Sua liberdade foi abruptamente roubada por dois homens, Brown e Hamilton, que o sequestraram e o venderam como escravo em Washington. Durante doze longos anos, Solomon foi propriedade de vários senhores, entre eles Edwin Epps, um homem cruel e desumano, conhecido por sua brutalidade e por tirar prazer em castigar seus escravos até a morte. Solomon descreveu as cicatrizes em suas costas como testemunhas silenciosas do seu clamor por liberdade. Mais do que sua liberdade, foi-lhe roubada a identidade e tudo aquilo que ele representava. Qualquer tentativa de revelar sua verdadeira história resultava em punições severas. Seu nome foi mudado para Platt, e ele foi forçado a aceitar um destino cruel em terras desconhecidas, mantendo sua verdadeira identidade em segredo para sobreviver.


Solomon sabia que qualquer menção à sua liberdade anterior poderia resultar em sua morte. Assim, ele suportou o trabalho árduo e os castigos físicos como qualquer outro escravo. Embora todos os escravos temessem seus senhores, Solomon enfrentou-os em várias ocasiões, arriscando sua vida inúmeras vezes. No entanto, ele nunca perdeu a esperança de reconquistar sua liberdade e retornar ao seio de sua família. Ele elaborou planos de fuga e buscou se comunicar com amigos e familiares, mas foi traído, e a cada dia que passava, sua esperança diminuía.


A virada em sua sorte veio com a chegada de um indivíduo que se comprometeu a ajudá-lo, fazendo contato com a família de Solomon para organizar seu resgate. Em janeiro de 1853, Solomon Northup finalmente reconquistou sua liberdade e, no mesmo ano, compartilhou sua história através de um livro, que se tornou uma das mais importantes obras sobre a escravidão. O relato oferece uma perspectiva crítica sobre a prática da escravidão, o sistema judiciário de diferentes estados e as punições cruéis impostas aos negros. Solomon também reflete sobre o tratamento dispensado aos outros escravos, cujos sofrimentos ele testemunhou durante os doze anos de escravidão.


“12 Anos de escravidão” é uma obra-prima da literatura de não-ficção, onde Solomon Northup compartilha sua experiência angustiante com uma autenticidade que rivaliza com a ficção clássica. Sua narrativa detalha o período em que, apesar de ser um homem livre de Nova York, foi forçadamente submetido à escravidão. A história de Northup é única e ele a relata com uma clareza impressionante. Suas palavras fluem com a suavidade da seda, e sua franqueza ressoa com sinceridade. Ele inicia seu relato com uma premissa clara: “Minha exposição sobre a escravidão se limita ao que presenciei pessoalmente”, estabelecendo um compromisso com a verdade que permeia toda a obra.


“12 Anos de escravidão” é um documento histórico inestimável. Northup descreve a escravidão de maneira que transcende a simples discussão. Ele enfatiza a palavra “Escravidão” com um ‘E’ maiúsculo, sinalizando o profundo impacto que esses eventos tiveram em sua vida. Separado de sua família por uma dúzia de anos, ele viveu na incerteza de não saber se cada novo dia poderia ser o seu último. Contudo, o que mais cativa em Northup é sua recusa em atribuir a culpa aos proprietários de escravos por suas ações. Sua fé inabalável é evidente em suas palavras: “A crueldade do proprietário de escravos não é uma falha pessoal, mas sim uma consequência do sistema em que está inserido”. Essa perspectiva é surpreendente, considerando tudo o que ele testemunhou.


Northup destaca a figura de William Ford, um proprietário de escravos que o tratou com dignidade. Ele não o vê como um dos vilões de sua história, o que demonstra sua capacidade de discernimento. Curiosamente, Northup consegue superar seus opressores através de sua eloquência. Em um confronto verbal com um deles, ele é desafiado: “Maldito seja, pensei que você tivesse algum conhecimento”. A habilidade de Northup em detectar a gramática falha é patente em sua escrita impecável.


Um dos momentos mais marcantes da obra é quando Solomon Northup se dá conta de sua captura. Sua descrição é arrebatadora, expressando incredulidade diante da injustiça: “Como poderia um cidadão livre de Nova Iorque, que jamais transgrediu a lei ou causou mal a alguém, ser submetido a tamanha desumanidade?” Essa reflexão revela uma triste ironia da vida: frequentemente, as adversidades recaem sobre os inocentes. A autodescrição de Solomon infunde emoção profunda na narrativa, permitindo-nos conhecer intimamente quem ele é: um homem livre, um amante do violino, um nova-iorquino que não merecia o sofrimento imposto a ele. O capítulo se encerra com Solomon em lágrimas, adicionando uma camada de emoção à sua vulnerabilidade já palpável. Solomon Northup não se omite, ele não teme expressar suas emoções ou falar sua verdade. É essa honestidade que confere a “12 Anos de Escravidão” sua força e veracidade.


A escravidão, para muitos, pode ser simplificada como a condição de ser mantido como escravo. No entanto, para Solomon Northup, essa definição é insuficiente. Após ler “12 Anos de Escravidão”, essa visão superficial também se torna inadequada para nós. Para ele, escravidão significa ser testemunha diária do sofrimento humano: ouvir os gritos lancinantes, ver o corpo se contorcer sob o açoite cruel, ser dilacerado por cães, morrer sem cuidados e ser enterrado sem cerimônia. É difícil imaginar testemunhar tais horrores ou suportar o que Solomon enfrentou. Seus relatos mostram que a escravidão o forçou a agir de maneiras que jamais consideraria em circunstâncias normais. Devido à sua inteligência, Solomon era constantemente provocado por seus senhores. Em um confronto, ele descreve um deles com “olhos serpentinos que destilavam veneno”, evocando a imagem de uma serpente ou entidade demoníaca. A habilidade de Solomon em tecer tais imagens em sua história sobre a escravidão é notável, e é evidente seu desprezo pelas figuras que menciona, sem receio de retratá-las negativamente.


“12 Anos de Escravidão” é uma obra que transcende o gênero da não-ficção, oferecendo um relato visceral e profundamente humano da experiência de Solomon Northup. A narrativa de Northup é uma jornada de resistência e resiliência, contada com uma honestidade que corta a alma. O livro não é apenas um testemunho da crueldade da escravidão, mas também um retrato da força do espírito humano diante da adversidade. A habilidade de Northup em descrever sua experiência, mantendo-se fiel aos fatos sem perder a sensibilidade literária, é notável. Ele não apenas relata os eventos, mas os infunde com uma emoção crua que permite ao leitor sentir a profundidade de seu sofrimento e a intensidade de sua esperança. O compromisso de Northup com a verdade é inabalável, e sua narrativa é um lembrete poderoso de que a história é composta por vozes individuais, cada uma com sua própria história para contar.

O que torna “12 Anos de Escravidão” particularmente impactante é a perspectiva de Northup sobre o sistema de escravidão. Ele não se limita a condenar os indivíduos, mas sim o sistema que permite tais atrocidades. Sua capacidade de ver além da maldade individual e reconhecer a falha sistêmica é uma lição de empatia e compreensão.


A obra é um documento histórico essencial que ilumina não apenas o passado, mas também o presente, desafiando-nos a refletir sobre as injustiças que persistem em nossa sociedade. “12 Anos de Escravidão” é, sem dúvida, uma leitura obrigatória para todos aqueles que buscam compreender a complexidade da experiência humana e a importância da luta pela dignidade e pelos direitos humanos.

Resenha: The Help (A resposta), por Kathryn Stockett

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APRESENTAÇÃO

Aibileen é uma empregada negra de Jackson, Mississippi, em 1962, que sempre atendeu ordens em silêncio, mas ultimamente não consegue conter sua amargura. Sua amiga Minny nunca segurou a língua, mas agora precisa de alguma forma manter segredos sobre seu empregador que a deixam sem palavras. A socialite branca Skeeter acabou de se formar na faculdade. Ela é cheia de ambição, mas sem marido é considerada um fracasso. Juntas, essas mulheres aparentemente diferentes se unem para escrever um livro que conta tudo sobre o trabalho como empregada negra no Sul, que pode alterar para sempre seus destinos e a vida de uma pequena cidade.

RESENHA


Ambientado em 1962, em meio ao Movimento dos Direitos Civis em Jackson, Mississippi, “The Help” entrelaça as vozes de três mulheres distintas. Skeeter, uma aspirante a escritora branca, busca sua voz em uma sociedade que a cerca. Aibileen, uma empregada doméstica, e Minny, sua franca colega, são as narradoras afro-americanas que revelam uma realidade muitas vezes ignorada. O romance desafia a percepção de que as vidas das mulheres negras e brancas são desconhecidas entre si, mostrando que, na verdade, há uma profunda consciência compartilhada, uma sabedoria transmitida de mãe para filha.


O livro apresenta uma divisão racial clara entre seus personagens, com a linguagem servindo como um marcador da diferença. No Mississippi retratado por Stockett, somente os personagens negros falam um inglês vernacular, simbolizando a segregação linguística. A representação física dos personagens negros também é significativa, muitas vezes descritos de maneira estereotipada, enquanto os homens negros são marginalizados, exceto por Leroy, o marido de Minny, que se destaca na narrativa.


A trama central do livro gira em torno da iniciativa de Hilly Holbrook, que sugere banheiros segregados para as empregadas domésticas, refletindo as tensões raciais da época. A ironia é palpável, pois as mesmas mulheres negras são convidadas a entrar nas casas brancas para realizar tarefas íntimas. As vidas das mulheres da cidade, negras e brancas, são intrinsecamente conectadas, e o romance explora os limites sociais da época e as consequências de transgredi-los. Stockett, ao escrever, parte de suas próprias memórias de infância e da relação próxima com a empregada de sua família, conferindo ao livro um toque de autobiografia.

A narrativa desdobra a relação entre Skeeter Phelan, uma jovem branca, e as empregadas afro-americanas de sua cidade. Retornando à sua cidade após a universidade, Skeeter busca reencontrar Constantine, a empregada que marcou sua infância com momentos memoráveis. Como colunista, Skeeter aborda a vida das empregadas domésticas, o que a aproxima de Aibileen, Minny e outras mulheres afro-americanas que servem às famílias locais. Aibileen, dedicada babá na residência dos Leefolts, nutre um vínculo especial com a pequena Mae Mobley, que a adora. Skeeter, amiga da mãe de Mae Mobley, e Minny, que enfrenta o preconceito ao recusar-se a usar instalações segregadas, são figuras centrais na trama.


Hilly Holbrook, figura proeminente e velha conhecida de Skeeter, personifica a resistência ao progresso racial em Mississippi. Líder da Liga Júnior, Hilly propõe um projeto segregacionista de banheiros para as empregadas, ideia que Skeeter rejeita veementemente. Em busca de mudança, Skeeter se alia secretamente a Aibileen, desencadeando uma série de eventos que culminam na publicação de um projeto que desafia as normas sociais de Jackson.


O lançamento do livro e sua adaptação cinematográfica por Tate Taylor geraram debates acalorados. “The Help” permaneceu por 100 semanas na lista de best-sellers do New York Times e o filme se destacou como uma das produções mais marcantes de 2011. Ambos evocam e questionam representações culturais passadas, dando voz às experiências das mulheres afro-americanas. A obra e sua adaptação enfrentaram críticas por focarem na era dos Direitos Civis sob a perspectiva de uma escritora branca narrando as histórias de empregadas afro-americanas, um enfoque considerado por alguns como estereotipado e limitador.


A narrativa desvenda a realidade e os desafios cotidianos vividos por mulheres afrodescendentes. Predominantemente empregadas no setor doméstico, essas mulheres se dedicavam intensamente ao trabalho, muitas vezes sem o devido reconhecimento ou dignidade. A relevância do romance se mantém atual, refletindo a persistência do racismo na sociedade contemporânea. Através dos olhos das personagens femininas negras, o leitor é convidado a compreender uma perspectiva distinta, frequentemente invisibilizada. Composto por trinta e quatro capítulos, o livro reserva a narração de todos, exceto o vigésimo quinto, às vozes de Aibileen, Minny e Miss Skeeter. “The Help” traz à tona a história de uma jovem branca e educada que se propõe a amplificar as vozes de um grupo de empregadas negras em meio ao movimento pelos Direitos Civis em Jackson. A obra de Stockett tem sido objeto de debate, com críticos apontando que, apesar das boas intenções, há um equívoco histórico na representação dos negros, perpetuando estereótipos e mal-entendidos raciais. Tal prática literária, ao adotar perspectivas brancas para retratar personagens negras, acaba por reforçar constrangimentos e distorções sobre a identidade negra.

“The Help” é uma obra que captura a essência de uma época marcada por intensas lutas sociais e raciais, oferecendo uma perspectiva íntima e reveladora sobre as vidas das empregadas negras no Sul dos Estados Unidos. A habilidade da autora em tecer uma narrativa que entrelaça as histórias de Aibileen, Minny e Skeeter é notável, criando um mosaico de experiências que ressoa com autenticidade e profundidade emocional. Aibileen e Minny, com suas vozes distintas e poderosas, trazem à tona as realidades muitas vezes silenciadas das mulheres negras que serviram em lares brancos, enfrentando não apenas o racismo, mas também a desvalorização de seu trabalho e humanidade. Skeeter, por outro lado, representa uma ponte entre dois mundos, desafiando as normas sociais e buscando justiça para aquelas cujas histórias foram ignoradas.


O romance é um testemunho da coragem e da resiliência dessas mulheres, que, apesar das adversidades, encontram força na solidariedade e na esperança de um futuro mais justo. A narrativa não apenas destaca as injustiças da época, mas também celebra o espírito indomável das personagens, que se recusam a ser definidas pelas circunstâncias. Além disso, a obra de Stockett é um lembrete poderoso de que as questões de raça e classe ainda são pertinentes na sociedade contemporânea. Ao dar voz às empregadas negras, “The Help” desafia os leitores a refletir sobre o passado e a considerar o impacto duradouro das estruturas de poder e preconceito.


Em suma, “The Help” é uma contribuição valiosa para a literatura, oferecendo uma perspectiva necessária e enriquecedora que amplia nossa compreensão sobre a complexidade das relações humanas em meio a um período turbulento da história americana. É uma leitura essencial para aqueles que buscam entender melhor as dinâmicas raciais e sociais que moldaram e continuam a influenciar a sociedade.

Resenha: Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque

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APRESENTAÇÃO

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