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Narrativa na adaptação da literatura em cinema


 NARRATIVA NA ADAPTAÇÃO DA LITERATURA EM CINEMA


Ao que se deve na literatura e a base linguística dada por Saussure (1969), a pesquisa em comunicação de massa tem a tradução/adaptação de uma obra literária dada por forma de circuitos dicotômicos: emissor, mensagem, receptor; por sua densidade na troca de mensagens e seus veículos de “possíveis” expressões, Stuart Hall (2003), diz que o “objeto” de tais práticas é composto por significados e diálogos sob a forma de signo-transportador, onde, pela operação de correntes sintagmáticas, as práticas de reprodução aparecem estruturadas em regras especificas de linguagem.
Isto demonstra que as traduções de tais obras são em primeira forma limitadas por seu próprio recurso específico (CAMPOS, 2003). Baseando, sobretudo na intertextualidade, o que leva o cinema a ter uma incapacidade em apanhar aquilo que está no livro e colocá-lo, de forma literária, no filme (Avellar 2003). E que a insistência de fidelidade é um falso problema porque ignora a dinâmica do campo de produção ao meio em que estão inseridos.
A literatura e o cinema possuem campos sintagmáticos distintos cuja relação pode se tornar possível quando é possível ter visualidade nos textos literários, dessa forma cria-se liberdade para a produção que leva consigo novos meios para expressar de forma variada os valores subjetivos, culturais e políticos da obra. Dessa forma, ao se verificar as relações existentes entre o texto literário e o cinematográfico, deve se levar em consideração as condições peculiares de cada uma, dessa forma, a interação midiática entre os diferentes recursos torna-se possível um espaço para interpretação, apropriações e redefinições de sentido. (Xavier 2003)
Bazin (1999) defende que os textos literários não devem ser tratados como “sinopses bem desenvolvidas”, porque “seguir o livro página por página é algo diferente e outros valores estão em jogo e que o objetivo do cineasta não deve ser o de transcrever para a tela uma obra cuja transcendência ele reconhece a priori”. É importante salientar, contudo, que “a diferença dos dois meios não se reduz entre a linguagem escrita e visual” (Johnson, 2003:42), mas àquilo que é próprio de cada um deles. Assim, se o cinema, com todo aparato que dispõe, tem “dificuldade em fazer determinadas coisas que a literatura faz”, o inverso também é verdadeiro.



Este tipo de conceituação para a adaptação está alicerçado nas ideias do dialogismo de Bakhtin. Por dialogismo, entende-se que qualquer texto estabelece um diálogo com obras antecessoras a ele ou coexistentes numa mesma época, e que formam o arcabouço cultural e artístico do seu autor. Num filme adaptado, ainda que seja evidente a relação com a obra literária fonte, se encontrarão ecos de outras influências presentes nesta criação. Outras influências, significando, aqui, outros textos, de qualquer natureza artística, e sob quaisquer meios de comunicação. Na adaptação, o transformador torna-se, ele próprio, também um criador, e essa função expande a visão autoral, desqualificando hierarquizações ou modelos estanques de primazia entre as formas de arte.

O prestígio aural do original não vai contra a cópia, mas é criado pelas cópias, sem as quais a própria ideia de originalidade perde o sentido. O “original” sempre se revela parcialmente “copiado” de algo anterior. (STAM, Robert, 2006, p. 4)

Pelas palavras de Francis Vanoye podemos afirmar que a adaptação é um ato de aproximação e reinterpretação ainda que se mantenha intacto o enredo, contexto, intrigas, e os personagens da obra originais. Há uma mudança de perspectiva na aplicação nos termos estéticos e o contexto ideológico da produção—filme e livro. o roteiro de um filme implica numa transição do teor do livro para um tempo presente. É a indicação do que se vê e se escuta a cada momento. Vanoye ainda reitera sobre as possibilidades de produção, sendo a primeira delas a obediência ao livro em trama e estrutura, respeitando ao máximo a ordem das ações. A segunda seria apreender apenas as cenas-chave do livro, trabalhando livremente entre estes termos. A terceira possibilidade é ater-se a alguns elementos do livro, como um (ou mais) personagem, da intriga, ou de situações, e a partir do enfoque neles, elaborar um roteiro desprendido do livro.

Diz Steiner que nos mantemos criativamente em razão de nossa capacidade de fugir da realidade, de construir as ficções de alteridade, de outro sonho querido para que esse possa substituir a condição fragilizada da nossa consciência. É essa utopia messiânica que impulsiona a tradução. Assim, ao transportar uma obra original para outra gramática, tentará o tradutor preencher o intervalo entre as línguas. Refletindo a partir do lugar da passagem, da tradução, é que o tradutor poderá chegar mais próximo da originalidade da obra, ao buscar reconhecer o selo do original, onde está a autenticidade desta. Para isso, aproximar-se do verdadeiro sentido da obra não significa garantir um sentido último ou absoluto a ela. Há sempre um "quase" cobrindo o espaço onde, na tradução, a obra silencia e fala, pois o originário.

Não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado (BENJAMIN, 1984, Origem, p. 68).

Desta forma o tradutor busca lacunas enlaçadas na obra para que por este espaço complete e enriqueça seu original. Da mesma forma que recriar uma obra perfeita em outro veículo se torna, impossível. E sobre a perspectiva da narrativa a própria Clarice Lispector diz que,

Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta (LISPECTOR, 1984, p.38).


Mostrando dessa forma sobre o trabalho de tradução onde se sobrepõe uma visão parcial por sobre a tela, onde o cineasta (G. Betton) pode contentar-se a inspirar e seguir passo-a-passo. Mas eis que a fidelidade é rara, senão, inviável e impossível. Pois que não há como transcrever visualmente significados verbais, ou expressar em linhas o que se expressa em formas e cores. Como também é presente que a imagem conceitual que a leitura faz nascer no espírito, é fundamentalmente diferente da imagem fílmica, baseada em um dado real que nos é oferecido imediatamente para se ver e não para se imaginar gradualmente, são tempos e dimensões completamente diferentes.

A própria Susana Amaral que adaptou A Hora da Estrela de Clarice Lispector para o cinema diz que mesmo seus professores já indicavam que quando fossem adaptar uma obra para o cinema, deveriam escolher o livro mais fino, o livro grosso seria muito difícil. Ela mesma diz que na adaptação é possível mudar os fatos, porém não se pode mudar o espírito da obra, a alma, a espinha dorsal da coisa em si. Quando fez tal adaptação ela reiterou as próprias palavras de Clarice “o que me importa não são as palavras, é o sussurro por trás das palavras”. A preocupação fundamental da diretora ao reproduzir a obra de Lispector para as telas.

Betton sobre adaptações também diz que não se pode sugerir ou mesmo, revelar temperamentos e nem provocar imagens mentais, posto que só se abstenha das imagens para revelar todo o desenvolvimento psicológico dos personagens. Tal dificuldade ainda revela obras de iminência psicológica, que como disse Clarice, os livros—grossos—mostram uma complexidade impossível de ser desenvolvida para a arte visual. (BETTON, 1987, p. 116). Uma tradução de obra literária à tela necessita, o máximo possível, fazer intercessão entre os pontos de origem da obra, para realizar a sua narrativa dentro da compressão temporal que o cinema dita. E isto ocorre no difícil intervalo de tradução que ligará para sempre a obra escrita às imagens que se movimentam na tela.

Cinema trás uma linguagem que reproduz de forma direta e física os objetos da realidade, ligando ao padrão oral de significação. É importante dizer a distinção entre cinema e filme, estabelecida por Pasolini, aproveitando-se do conceito linguístico Saussuriano de langue e parole (língua e fala), embora a maioria das vezes utilizemos um e outro indiscriminadamente. Assim como a língua, o cinema é abstrato, um objeto de estudo que se concretiza a partir de um código, de uma gramática e de um pacto social. Do mesmo modo que a parole, ato concreto e vivo da langue, faz a língua vigorar, o cinema não existiria sem o filme.


Sobre filme, o cinema só se torna filme, quando, em um laboratório, realiza-se a montagem do mesmo. Quando se torna uma linguagem vista e ouvida no seu acontecer e, portanto, sempre presente. Se o advento da escrita nos forçou a conhecer a oralidade da linguagem verbal, com o advento do cinema pudemos tomar conhecimento do real. Real que é realidade apresentada na contiguidade de imagens-sons que acumulam significados, na sucessão temporal em que se passam. Linguagem que tem parentesco
com a literatura, possuindo em comum com ela o uso da palavra, das personagens
e a finalidade de contar histórias (COSTA, 1989, p. 27).

Podemos dizer que A Hora da Estrela- obra escrita - traduz, por evocação, a Linguagem da Realidade. Tradução da tradução, A Hora da Estrela- filme- escreverá essa Linguagem da Realidade, dita por Pasolini, reproduzindo-a através da representação evocada pela literatura. Essa Linguagem da Realidade, irredutível a qualquer classificação ou segmentação racionalista-linguagem que naturalmente é - toma forma cinematográfica através de suportes técnicos de nossa sociedade industrial, revelando a ação humana sobre a realidade. Sendo o homem em carne e osso quem faz e quem decifra a realidade como representação e, portanto, o centro da ação representada.

Por sobre a lente da literatura, as figuras estilísticas são um ato linguístico. No cinema, dois atos concomitantes e suplementares entram na produção da imagem cinematográfica:
A) Junto com tudo que se expõe à filmagem, há a máquina que filma. Pasolini relaciona essas operações com termos da gramática da língua escrito-falada: a escolha do tipo, da face, das roupas, dos lugares, das luzes são elementos isolados: léxicos. São substantivos, adjetivos, advérbios, locuções.
B) Enquanto a escolha dos movimentos da máquina, do enquadramento, etc. são a verdadeira sintaxe: a reunião rítmica de vários elementos lexicais isolados em uma frase.

Cinema e literatura são linguagens convergentes, porém com circunstâncias bem distintas. Tendo como o ponto chave dessa distinção seja o fato de o cinema, como prosa narrativa visual-musical, não excluir analfabetos, como as palavras inspiradas de Carriere notam bem: "ao contrário da escrita, em que as palavras estão sempre de acordo com um código que você deve saber ou ser capaz de decifrar (você aprende a ler e a escrever), a imagem em movimento estava ao alcance de todo o mundo. Uma linguagem não só nova, como também universal: um antigo sonho (CARRIERE, 1995, p. 19).

A obra A Hora da Estrela, tal qual Amar, Verbo Intransitivo, pode ser visto como é apresentado por uma visão gradual de cenas que captam, no presente em que ocorre, a criação da personagem pelo narrador. Trata-se de uma escrita visual que nos faz lembrar a representação cinematográfica e o movimento de câmera, ora como foco alheio, ora como foco comprometido. Temos o narrador como figura potencial nesse processo fazendo inúmeras digressões para esclarecer e interpretar os fatos que ele mesmo constrói. Muitas vezes essas intervenções do narrador vêm aprisionadas entre parênteses, inseridas no fluxo narrativo, como se fosse uma nota mental que correlata à imagem e a complementa. Este romance também não apresenta divisão em capítulos, como Amar, Verbo Intransitivo. O espacejamento gráfico mais alargado entre as partes, ao mesmo tempo em que as separa, justapõe as sequências narrativas, como uma história que fosse sendo montada diante dos olhos que leem. Colando som à cena, diversas vezes o substantivo explosão aparece entre parênteses, em meio a uma frase, para anunciar uma circunstância grave acontecendo ou por acontecer. Como se a escrita visual desejasse também ser audiovisual.

Um som catalisador provoca reação no fluxo da leitura, como um som no filme colocaria em suspensão a atenção do espectador. Outro índice dessa construção literária que sorve aspectos do cinema está em um dos treze títulos do romance pelo qual este ficou conhecido - A Hora da Estrela. Estrela pode significar o astro luminoso cintilante que habita os céus. Pode ainda significar fado, destino, sorte. Aqui, interessa-nos a palavra no sentido da atriz notável, conhecida pelo público, superstar do cinema. Tanto o título propicia essa associação com estrela de cinema,

“(...)Diante de meus olhos, encontro, ilustrada na capa da 11' edição, editora Nova Fronteira, a mitológica imagem platinada e sensual de Marilyn Monroe, por detrás da mocinha franzina, em branco e preto. Debruçada no parapeito da janela entreaberta. Poderia agora perguntar se o filme A Hora da Estrela trouxe, para a tela, a dimensão alegórica do romance, que faz o texto escrito pairar entre o real e o (que chamo) mais-que-real das imagens. Em outras palavras, perguntar se a tradução fílmica realizou o mergulho necessário na interioridade do texto escrito, carregando para as imagens-sons os pontos de origem deste. Susana Amaral diz ter pretendido fixar - através, não dos diálogos, mas das atitudes dos personagens – o sussurro que está atrás das palavras do texto escrito. E os filmes, pela sua natureza, realizam-se como expressões alegóricas do momento de sua produção ou como alegorias em movimento.” (ALMEIDA, 1999, p. 32)

A Hora da Estrela, romance, traduz um momento agônico de Clarice Lispector, produzido em período de quase total isolamento da autora do convívio social e em fase da doença que a levaria à morte. Momento em que, mais do que nunca, a autora está liberta, distante de compromissos aprisionadores da criatividade. Foi concebido simultaneamente a Um Sopro de Vida (1978), livro com o qual guarda traços comuns. A aurora ainda pôde ver publicado A Hora da Estrela, porém Um Sopro de Vida é de publicação póstuma. Ambos caracterizam-se como uma espécie de plano-seqüência final da obra e vida da autora. Carregam uma funda ironia trágica, despontando, às vezes, no texto, um quase humor negro, como quando Macabéa, ao ser levantada ao ar por Olímpico de Jesus, seu namorado, cai de cara na lama, o nariz sangrando e ainda se desculpa, constrangida pelo transtorno que causara. É um livro que canta a morte e interroga a vida. Posso dizer tratar-se de um épico moderno semelhante a Macunaíma, de Mário de Andrade. Clarice Lispector foi reconhecida pela crítica desde o início de sua carreira como um caso extremo de criação e é sabida sua resistência para lidar com as regras e exigências do mercado editorial'.

Já Susana Amaral tem uma história bastante diferente. Havia feito alguns documentários para a televisão e esteve ligada à ECA da USP, quando foi para Nova York, aprofundar estudos em cinema e direção de filmes. Aos 54 anos, de volta ao Brasil, oito filhos, um casamento recém-desfeito, lançou-se na produção de seu primeiro longa-metragem: A Hora da Estrela, com a urgência de alguém que tem consciência do tempo escoando. Não podia apenas experimentar, tinha de produzir e acertar. Com um orçamento minúsculo, um tempo recorde de filmagem - 28 dias, e uma disposição pragmática de fazer o filme para ser consumido6 pelo público, optou pelo que sabia fazer: uma forma simples, colada à camada diretamente legível do texto escrito, que conta a rápida passagem de Macabéa, uma estranha nordestina, pela grande metrópole, onde trabalha como datilógrafa, até sua morte. Ter prescindido da poderosa figura e palavreado do narrador, foi uma escolha decisiva da diretora para, libertando-se da obra escrita, moldar outra existência no cinema. (COSTA, 1989)

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