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Resenha: Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, de Zygmunt Bauman


APRESENTAÇÃO

O mundo que habitamos é cada vez menos capaz de oferecer segurança; mas há um paraíso onde estamos a salvo das ameaças externas, um ?lugar aconchegante?: a comunidade. Ao mesmo tempo em que oferece proteção, a vida em comunidade apresenta um dilema, com suas restrições à liberdade individual. Por isso, a comunidade é um conceito-chave para a compreensão da natureza e o futuro das sociedades. Para Zygmunt Bauman, trata-se de um paraíso perdido, provavelmente longe de ser alcançado. Nesse livro, o sociólogo se volta para o tema da busca por segurança em detrimento da liberdade individual, analisando como conciliar a preservação dos direitos do indivíduo e a vida em comunidade.? "Bauman deseja que a crítica social tenha um papel mais ativo, e indica uma direção ao mostrar como as relações entre indivíduos e sociedade e entre as esferas privada e pública podem ser rearticuladas, restaurando o espírito da ágora à vida social e política." ?British Journal of Sociology


RESENHA

Ao descrever seu cotidiano ou o lugar onde vivem, os moradores de favelas do Rio de Janeiro, como as inúmeras que compõem grandes complexos como o do Alemão, da Maré, Vidigal, Mangueira e Rocinha, raramente usam o termo "favela". São ainda mais raras as ocasiões em que usam a palavra "morro". Ao falar de si mesmos e expor sua realidade, o substantivo que empregam é outro. Quando reclamam dos governantes, dizem que falta saneamento na "comunidade"; que a falta de transporte na "comunidade" é um absurdo; que houve troca de tiros com traficantes quando a Polícia Militar invadiu a "comunidade". Os moradores se veem como parte integrante desta "comunidade", uma organização viva e fechada, onde, apesar dos pesares, sentem-se seguros e são capazes de defender custe o que custar, contra possíveis invasores ou outros fatores que possam abalar sua estabilidade. E é desse conceito, entre outras acepções atribuídas à palavra, que Zygmunt Bauman trata no livro "Comunidade - a busca de segurança no mundo atual".

Neste trabalho, lançado aqui em 2003, o sociólogo polonês desconstrói a ideia formada, que atravessa o imaginário coletivo, de que "comunidade" é o paraíso perdido, um lugar quente e aconchegante onde estamos protegidos e seguros: em suas 138 páginas, o autor mostra que, na verdade, "ser em comunidade" é uma tarefa complicada, pois está em permanente conflito com a liberdade. Bauman narra as pressões que o conceito de comunidade vem sofrendo desde a "Modernidade sólida", com a construção do Estado-Nação, até agora, a "Modernidade líquida".

Logo no primeiro dos nove capítulos que compõem a obra, intitulado "A agonia de Tântalo", Bauman usa para abrir sua reflexão sobre a comunidade o mito grego que narra a história de Tântalo, filho de Zeus e Plutó, que ousou compartilhar um conhecimento que não deveria chegar aos mortais. Como punição, foi mergulhado até o pescoço num regato e, sobre ele, havia um cacho de frutas; a crueldade dos deuses se fazia presente porque, ao baixar a cabeça para matar a sede, a água desaparecia e, ao esticar a mão para alcançar a fruta, um vento batia e afastava o cacho. Fica a lição: "só se pode ser verdadeiramente feliz enquanto não se sabe quão feliz se é". Ou seja: a perda da inocência não tem volta. Bauman passeia por conceitos de comunidade que visam a essa volta à inocência, à ingênua e desinteressada união entre os homens - hoje apenas possível, segundo ele, em sonhos. O autor lembra Ferdinand Tönnies, que convocava a "comunidade" a voltar a ser um "entendimento compartilhado por todos os seus membros", que permite que as pessoas fiquem unidas a despeito de tudo, em oposição à sociedade em ascensão. Traz à tona ainda um estudo do sueco Göran Rosemberg, de 2000, que batizou de "círculo aconchegante" essa crença na união humana. E cita, além disso, um trabalho de Robert Redfield que descreve a comunidade como distinta (por ser visível onde ela começa e onde termina, com claras fronteiras entre "nós" e "eles", não importa quais sejam esses atores); pequena (com comunicação facilmente alcançada por todos os indivíduos que a compõem); e auto-suficiente (atendendo a seus integrantes de forma completa e proporcionando total isolamento com relação a "eles").

Essas definições compartilham a ideia de que a "comunidade" é caracterizada principalmente pela homogeneidade e uniformidade. Esta uniformidade é ameaçada quando as interações entre os membros internos e externos da comunidade se intensificam. Em um mundo onde a informação se propaga em uma velocidade sem precedentes, torna-se cada vez mais desafiador controlar o fluxo de informações entre os membros internos e externos da comunidade. Como resultado, a linha que separa esses dois grupos se torna cada vez mais tênue, e qualquer unidade precisa ser artificialmente construída. Para manter essa comunidade (um acordo entre seus membros), é necessário vigilância e defesa. Torna-se "uma fortaleza sitiada", como Bauman coloca, e "trincheiras e baluartes são os lugares onde aqueles que buscam o conforto, a simplicidade e a tranquilidade comunitária terão que passar a maior parte do seu tempo" (ibidem, p.19).

Seguindo esse raciocínio, Zygmunt Bauman aborda a questão que permeia todo o livro: o paradoxo de que, para a comunidade existir com segurança, é necessário que os indivíduos renunciem à liberdade, que, por sua vez, só pode ser ampliada à custa da segurança. Este dilema gera um conflito infinito na vida e é uma fonte inesgotável de questionamentos para os intelectuais, pois "a segurança sacrificada em nome da liberdade tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros".

No segundo capítulo, "A reinserção dos desenraizados", Bauman discute a Modernidade, um período da História em que a individualização foi valorizada e a liberdade era oferecida em troca de segurança, embora nem todos pudessem desfrutar dessa liberdade. O arranjo moderno capitalista tinha duas faces: uma emancipatória, para os poderosos; e uma coercitiva, destinada às massas. A emancipação de alguns exigia a supressão de outros, afirma Bauman, e o ápice dessa afirmação entrou para a História como "Revolução Industrial": as massas de artesãos e camponeses eram retiradas de suas rotinas comunitárias, ligadas ao hábito, e inseridas nas rotinas das fábricas, presas a tarefas.

A guerra foi declarada às comunidades autossustentáveis e autoreprodutivas, que se tornaram "líquidas" com o advento do capitalismo moderno, de acordo com a teoria de Marx e Engels. Para suprimir qualquer manifestação de livre arbítrio dos camponeses transformados em operários, os proprietários e gerentes das indústrias recorriam ao poder da vigilância contínua, através do modelo panóptico, com o objetivo de garantir a manutenção da disciplina. Subordinados e supervisores, governados e governantes estavam, portanto, presos uns aos outros por meio desse sistema de controle. Aquela foi uma época de engajamento, em que os poderosos e os subjugados tinham uma relação de interdependência. Quando isso foi percebido, Bauman aponta, percebeu-se a inconveniência do modelo panóptico: tentou-se resgatar o conceito de comunidade dentro da fábrica, com a "humanização" das relações de trabalho.

Assim, a Modernidade foi um período marcado por duas tendências: uma que buscava substituir a comunidade por uma rotina artificialmente produzida, que tinha as fábricas como cenário e culminou nas linhas de montagem do século XX; e outra que corria paralelamente, visando fazer o operário "sentir-se bem", que atingiu seu ápice na década de 1930, com a valorização das "relações humanas" no trabalho e o reconhecimento de que a promoção de uma atmosfera amigável nas fábricas aumentava a produtividade.

No entanto, Bauman reconhece que, após o desaparecimento das instituições autoregenerativas da sociedade pré-moderna, a Modernidade foi, em sua maior parte, uma época de manejo, em que a única ordem concebível era uma ordem projetada e mantida pelo monitoramento.

Após o período de engajamento moderno, entrou-se na era do "desengajamento". No capítulo "Tempos de desengajamento... ou a grande transformação, segundo tempo", Zygmunt Bauman descreve a era da "desregulamentação": décadas após o terror das guerras e a reconstrução pós-guerra, os poderosos perceberam que não queriam ser regulados por ninguém; e menos ainda queriam regular os outros. Em meio à incerteza de não ter alguém no controle da vida e dando ordens, aqueles que costumavam obedecer se encontraram livres, mas mantiveram a disciplina. "A desmontagem dos panópticos anuncia um grande avanço no caminho da maior liberdade do indivíduo" (ibidem, p.43), afirma Bauman.

No mundo do século XXI em que vivemos, as muralhas estão longe de serem sólidas e não foram fixadas de uma vez por todas. O primeiro exemplo que Bauman cita como representativo dessa desmontagem é o que aconteceu com o "trabalho". Se na Modernidade o trabalho era uma referência para a vida, o eixo em torno do qual ela girava, atualmente esse eixo está danificado. A rigidez dos empregos está abalada: postos antes considerados indispensáveis deixam de existir de uma hora para a outra. É o que temos ouvido nos noticiários e percebido no mercado de trabalho brasileiro e internacional nas últimas décadas: é a era de conceitos como flexibilização e reengenharia, de prestação de serviços no lugar de contratos de trabalho.

Mas não é apenas o trabalho que está desmoronando. O conceito de "lugar", onde se espera estar seguro e passar toda a vida, também está mudando. No "lugar", nada permanece igual por muito tempo a ponto de criar a sensação de familiaridade e transformar este local em algo digno do que se espera de uma comunidade. Bauman cita exemplos cotidianos para corroborar essa ideia: os marcos do nosso cotidiano, dos mercadinhos da esquina aos bancos locais e aos carteiros, deixam de existir... Na família e em casa, as coisas também estão piorando, explica o sociólogo: a estrutura do casamento está abalada. Enfim, a maioria dos pontos firmes e sólidos que sugeriam uma situação social duradoura se foi. E, com eles, vai-se também o sentimento de comunidade, ou a "experiência de comunidade", como o autor afirma. Não há mais relações bem tecidas entre as pessoas, que caracterizariam a comunidade. E, ele diz, tomado de desesperança, "a decadência da comunidade nesse sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que foi rompido" (ibidem, p.48).

No quarto capítulo, "A secessão dos bem-sucedidos", Bauman relata que essa decadência do espírito comunitário é reforçada. Os "bem-sucedidos" a que o autor se refere são membros das "comunidades cercadas" de hoje, altamente protegidas e guardadas com armas e dispositivos eletrônicos: pessoas que têm recursos financeiros para se manterem distantes da confusa realidade do lado "de fora". São comunidades apenas no nome, pois tudo o que desejam é manter-se à distância e viver livres de intrusos. Exemplos? Há muitos, e eles não estão longe. Diante de uma recente onda de assaltos a residências na Zona Sul do Rio de Janeiro, moradores de bairros como Leblon, Gávea e Jardim Botânico têm recorrido à instalação de portas e janelas de vidro blindadas à prova de disparos de fuzis AR-15 e pistolas, e supercondomínios na Barra da Tijuca têm apelado para sistemas sofisticados de alarmes, câmeras de vídeo e sensores para detecção de movimento, com o objetivo de afastar intrusos.

No entanto, como Bauman explica, o mundo habitado pelas elites não se limita, espacialmente, apenas a essas "comunidades cercadas", tão valorizadas no mercado imobiliário. As elites alcançaram um status extraterritorial, são globalizadas, e não pertencem, portanto, a um único local. Estão, na verdade, em uma "bolha sociocultural isolada das diferenças mais ásperas entre as diferentes culturas nacionais... São certamente cosmopolitas, mas de maneira limitada e isolada" (ibidem, p.54), segundo avaliação de pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados da Cultura da Universidade da Virgínia, citada por Bauman. Esses bem-sucedidos cosmopolitas celebram a irrelevância do lugar, uma condição a que os pobres pés-no-chão, de padrão de vida mais ordinário e simples, não podem se dar ao luxo. Essa "secessão de bem-sucedidos", define Bauman, não passa de uma fuga da comunidade.

Mas mesmo os ricos e poderosos sentem necessidade, de vez em quando, de pertencer a algo - por mais que valorizem sua autonomia individual - para que tenham algum conforto e saibam que não estão sozinhos. Imaginam-se pertencentes a uma comunidade dos sonhos, formada pelo "mesmo", ou seja, por pessoas semelhantes na mente e no comportamento, com lutas pela identidade parecidas. No entanto, a identidade é um processo sem fim e que deve sempre continuar flexível para poder ser adaptada ou substituída quando deixar de ser útil. E, como a "comunidade" dos poderosos tem como deveres principais confirmar que aquele grupo é coeso justamente por ter feito as mesmas escolhas de identidade, ela deve ter as mesmas características da identidade: isto é, deve ser flexível e fácil de se decompor e reconstruir. E, em nenhum caso, o vínculo e o compromisso da comunidade com seus integrantes devem ser irrevogáveis ou indissolúveis. Escolhas novas e diferentes não devem ser impedidas.

No capítulo 5, “Duas fontes de comunitarismo”, o autor faz uma analogia com o conceito de Kant sobre a comunidade estética, afirmando que “como a beleza, a identidade não tem outro fundamento que não o acordo amplamente compartilhado, explícito, ou tácito, expresso numa aprovação consensual do juízo ou em conduta uniforme” (ibidem, p.62). Como exemplos dessa comunidade estética que serve à construção e à destruição da identidade, ele cita a indústria do entretenimento - particularmente o mundo das celebridades. As estrelas da mídia formam, na verdade, uma comunidade de solitários, que enfrentam publicamente os problemas de suas vidas sozinhos e servem de exemplo a outros indivíduos, mas sem ter com eles o menor laço ou envolvimento que pudesse caracterizar uma comunidade. Quando se vê um artista lamentando o fim de seu casamento, ou narrando a dificuldade por que passou por ter se envolvido com drogas ou bebidas - ambos casos corriqueiros de que revistas de fofocas à venda nas bancas do país estão lotadas - o público enxerga nessas situações um exemplo de como sair sozinho de seus problemas, sem o apoio comunitário. O que os ídolos fazem é invocar a “experiência de comunidade”, mas sem que haja uma comunidade real: apenas reforçam a autonomia individual.

Mas nem todas as comunidades estéticas estão centradas em celebridades, e Bauman cita outros exemplos. Às vezes, a “celebridade na ribalta” pode ser qualquer outro assunto que mereça destaque: um inimigo público como a violência urbana ou um pedófilo à solta, ou um grande evento que una a população por um tempo, como a Copa do Mundo, que costuma parar o Brasil. Por comunidade estética, então, Bauman entende aquela com laços transitórios e superficiais entre seus integrantes, isentos de responsabilidades de uns com os outros e de compromissos de longo prazo. No entanto, esses indivíduos continuam mantendo, dentro de si, o desejo de integrar uma comunidade de verdade, que tenha o sentido de coletividade. A comunidade que desejam é uma comunidade “ética”, quase o oposto da “estética”: que tenha compartilhamento fraterno e ofereça segurança a todos seus integrantes. No discurso comunitário, tão em voga hoje, esses dois conceitos distintos de comunidade misturam-se e causam confusão e questionamentos.

Na Modernidade líquida, a demanda é pelo reconhecimento. Se a Modernidade em seu estado “sólido” tinha como característica primordial a certeza de uma “sociedade justa e estável”, a atual Modernidade “líquida” prima pela ausência de assertivas e pelo estímulo a que as pessoas encontrem seus próprios destinos. O centro das discussões migra da busca da “justiça social” para a luta pelos “direitos humanos”. As batalhas atuais são em busca do reconhecimento e resultam num constante retraçar de fronteiras. É isso que se discute no sexto capítulo, “Direito ao reconhecimento, direito à redistribuição”. A nova elite global, de poder extraterritorial, desiste de impor uma nova ordem: na decadência do modernismo, sobram as diferenças e as fronteiras entre elas erigidas. E é da natureza dos direitos humanos um interessante paradoxo: tais direitos visam a possibilitar a garantia de ser diferente e manter-se assim e, no entanto, só podem ser assegurados perante a sociedade por meio de uma luta coletiva. Isto é, para se tornar um direito que respeite a individualidade, a diferença tem que ser compartilhada por um grupo.

Essas demandas pelo mero reconhecimento da diferença, ou seja, para simplesmente reforçar a distinção cultural, acabam estimulando uma divisão e uma separação, em vez de fortalecer laços que pudessem resultar numa comunidade. No entanto, essa demanda por reconhecimento deveria ser um momento para um diálogo em que fossem discutidos os méritos e os deméritos dessa diferença, diferindo, simultaneamente, do fundamentalismo universalista que se recusa a reconhecer a pluralidade de formas que a humanidade possa abarcar, e da tolerância promovida por “certas variedades de uma política dita ‘multiculturalista’, que supõe a natureza essencialista das diferenças e, portanto, também a futilidade da negociação entre diferentes modos de vida” (ibidem, p.75), como diz Bauman.

Mas, na contemporaneidade, enquanto se observa o desmantelamento das comunidades, encontra-se pelo menos uma exceção a essa regra de desintegração: as “minorias étnicas”, em que o sentimento do pertencimento comunal permanece entre seus integrantes. Entretanto, esse sentimento não é espontâneo, muito menos uma livre escolha dos participantes da comunidade. No capítulo 7, “Da igualdade ao multiculturalismo”, Bauman mostra que as pessoas são designadas como pertencentes a uma minoria étnica sem que lhes seja pedido consentimento, uma vez que essas minorias são determinadas por quem está do lado “de fora”, isto é, pelas “comunidades poderosas”, fortes, dominantes. As diferenças que fazem desses grupos “minorias” não derivam de seus atributos ou particularidades culturais, mas de um contexto social que forçou a imposição desses limites.

Bauman atribui o fortalecimento do fenômeno das “minorias étnicas” à passagem do período moderno de construção da nação para a atualidade, isto é, o estágio pós-estado-nacional. Na Modernidade, para que se moldasse uma unidade, era preciso que a nacionalidade compartilhada abarcasse todo o Estado e legitimasse a união do território. Para tanto, a identidade nacional era construída por meio de uma narrativa histórica, e a prática da construção da nação tinha duas faces: a nacionalista (avessa às comunidades étnicas ou locais que impedissem a homogeneidade nacional, muitas vezes até de forma belicista) e a liberal (a favor do individualismo, ou seja, a favor da liberdade total de escolha e, por isso mesmo, também contrária às comunidades que pudessem cercear essa liberdade). Ambas as facetas do Estado-Nação, portanto, tendiam a aniquilar a comunidade, à qual cabia ser assimilada pela nação, privando os “outros” de sua alteridade; ou perecer.

No entanto, na atualidade, com o enfraquecimento do poder do Estado-nação, a “segurança existencial se fragmentou” e “as velhas histórias recontadas para restaurar a confiança na filiação” e numa identidade nacional perderam sua credibilidade. O vazio normativo deixado pelo fim da rigorosa regulamentação estatal abriu espaço para mais liberdade e para o fortalecimento de identidades antes enfraquecidas ou mesmo esquecidas. Para que essas identidades recém-reconhecidas persistam e sejam preservadas, muitas vezes os indivíduos que as “constroem” caem no exagero e tornam-se conservadores (insistindo na volta às origens) e exclusivistas (reiterando a divisão nós x eles).

Frequentemente, essa postura radical acaba sendo adotada pelas “minorias étnicas”, como cita Bauman, referindo-se à relação de imigrantes e nativos em grandes países, como ocorre hoje em dia. Muitas vezes, explica o autor, os imigrantes não têm escolha e acabam tornando-se minoria étnica no país de adoção. Mas essa proximidade dos “estranhos étnicos” com os nativos, em vez de aproximar e integrar, afasta ainda mais: imigrantes disparam nos nativos seus instintos étnicos e os fazem desejar isolar os “invasores” cada vez mais; estes, por sua vez, sentindo-se agredidos, fecham-se em sua “comunidade”. E, em vez de contribuir para reduzir esta distância, as classes dominantes, ou “forças poderosas”, como define Bauman, até estimulam essa separação e favorecem a construção de barricadas. Fazem uso do princípio de “dividir para reinar” (ibidem, p.95). Deixam que os menos poderosos, ou pobres, briguem e disputem entre si para que sua representatividade e seu poder se esvaziem. A pulverização do espaço público, favorecida pelos conflitos intercomunitários, é o tipo de estrutura social que agrada à nova hierarquia do poder, de acordo com o autor. A ideia é que todas as diferenças são boas e dignas - mas simplesmente porque são diferenças e favorecem este momento de desengajamento que se vive hoje.

Bauman vai além e critica ainda a utilização do “multiculturalismo” de forma interessada pelos detentores do poder. Segundo ele, muitas vezes o multiculturalismo é um descaso com relação à diferença. Na teoria, diz-se que o multiculturalismo é orientado pela tolerância liberal, pela preocupação com o direito das comunidades à auto-afirmação e com o reconhecimento público de suas identidades. Porém, na prática, ele funciona como instrumento para uma força conservadora, pois transforma desigualdades incapazes de obter aprovação pública em “diferenças culturais” reconhecidas. Afasta e não integra. Numa interessante citação, o autor refere-se a Alain Touraine. Para Touraine, o multiculturalismo deveria respeitar a liberdade de escolha do indivíduo entre uma variedade de possibilidades e não ser confundido com o “multicomunitarismo”, segundo o qual a liberdade do indivíduo é vetada a partir do momento em que ele está preso a uma comunidade, sem direito a uma negociação. E enquanto essa confusão de termos e conceitos perdura persiste também a divisão cada vez mais radical entre as diferentes comunidades, que leva, inclusive, à guetificação, tema de que o autor trata a seguir.

No capítulo “O gueto voluntário: a comunidade do ‘bairro seguro’”, o autor discute como, na era da globalização, o espaço perdeu sua importância, mas ganhou significado. De um lado, é possível contatar e alcançar locais distantes sem sair do lugar. De outro, pouco se pode saber e prever sobre o próprio lugar em que se vive, por mais vigilantes que sejamos. O valor do lugar aumentou, pois seu sentido não está em pertencer a uma “sociedade” abstrata, mas a um lugar específico. Essa abstração da sociedade já era sentida, mas agora é mais evidente. No auge do Estado-nação, a sociedade era o pai rigoroso e implacável, mas a quem se poderia recorrer quando se sentisse inseguro. Com o desmantelamento do Estado, um vazio se instalou onde antes havia as totalidades às quais as pessoas acreditavam pertencer, onde antes estava a sociedade. Esse termo já representou o Estado, armado de meios de coerção e de formas para corrigir injustiças. Mas, na ausência de um Estado e uma sociedade fortes, quem poderá garantir a segurança? Num mundo em que tudo é privatizado e, como Bauman já apresentou, individualizado, garantir a segurança cabe a cada um. A defesa do lugar é uma luta solitária. Tornou-se um assunto comunitário: dos bairros, das ruas, dos condomínios. A segurança pública torna-se privada. O que se procura é um abrigo que se possa chamar de identidade: um local onde se possa isolar do resto (sendo esse resto = os outros que representam ameaças), e sirva de “abrigo nuclear pessoal”, como define o autor no penúltimo capitulo, batizado de “O nível mais baixo: o gueto”.

É isso que acontece, por exemplo, em ruas residenciais de bairros como Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes, onde moradores desafiam as autoridades públicas fechando, sem autorizações legais ou alvarás para tal, o acesso às ruas, transformando-as em vias sem saída, com entrada controlada por guardas armados em guaritas. Em nome de uma segurança sonhada e de uma comunidade idealizada, os indivíduos tomam as rédeas da privatização do espaço público. É o que Bauman definiu como “política do medo cotidiano”, num dos pontos por ele abordados mais interessantes para se aplicar à realidade brasileira. O espectro das ruas inseguras afasta as pessoas dos espaços públicos. E é nesse cenário que se molda a nova concepção de comunidade. Segundo essa noção, detalhada de forma bastante interessante pelo autor, comunidade significa mesmice, e a mesmice significa ausência do outro, “especialmente um outro que teima em ser diferente, e precisamente por isso capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos” (ibidem, p.104). Esse estranho, ou alien, é reinventado e construído diariamente pela vigilância do bairro, pelo sistema de monitoramento de câmeras das grandes empresas, pelas cercas de arame farpado… É o mendigo, o bêbado da esquina, o bando de pivetes no sinal de trânsito. Uma constante ameaça. A chamada comunidade do bairro seguro é, como explica Zygmunt Bauman, um mutante bizarro do gueto voluntário, pois tem a característica básica de um gueto, que consiste na separação entre a homogeneidade dos de dentro e a heterogeneidade dos de fora.

No entanto, na atualidade, com o enfraquecimento do poder do Estado-nação, a “segurança existencial se fragmentou” e “as velhas histórias recontadas para restaurar a confiança na filiação” e numa identidade nacional perderam sua credibilidade. O vazio normativo deixado pelo fim da rigorosa regulamentação estatal abriu espaço para mais liberdade e para o fortalecimento de identidades antes enfraquecidas ou mesmo esquecidas. Para que essas identidades recém-reconhecidas persistam e sejam preservadas, muitas vezes os indivíduos que as “constroem” caem no exagero e tornam-se conservadores (insistindo na volta às origens) e exclusivistas (reiterando a divisão nós x eles).

Frequentemente, essa postura radical acaba sendo adotada pelas “minorias étnicas”, como cita Bauman, referindo-se à relação de imigrantes e nativos em grandes países, como ocorre hoje em dia. Muitas vezes, explica o autor, os imigrantes não têm escolha e acabam tornando-se minoria étnica no país de adoção. Mas essa proximidade dos “estranhos étnicos” com os nativos, em vez de aproximar e integrar, afasta ainda mais: imigrantes disparam nos nativos seus instintos étnicos e os fazem desejar isolar os “invasores” cada vez mais; estes, por sua vez, sentindo-se agredidos, fecham-se em sua “comunidade”. E, em vez de contribuir para reduzir esta distância, as classes dominantes, ou “forças poderosas”, como define Bauman, até estimulam essa separação e favorecem a construção de barricadas. Fazem uso do princípio de “dividir para reinar” (ibidem, p.95). Deixam que os menos poderosos, ou pobres, briguem e disputem entre si para que sua representatividade e seu poder se esvaziem. A pulverização do espaço público, favorecida pelos conflitos intercomunitários, é o tipo de estrutura social que agrada à nova hierarquia do poder, de acordo com o autor. A ideia é que todas as diferenças são boas e dignas - mas simplesmente porque são diferenças e favorecem este momento de desengajamento que se vive hoje.

Bauman vai além e critica ainda a utilização do “multiculturalismo” de forma interessada pelos detentores do poder. Segundo ele, muitas vezes o multiculturalismo é um descaso com relação à diferença. Na teoria, diz-se que o multiculturalismo é orientado pela tolerância liberal, pela preocupação com o direito das comunidades à auto-afirmação e com o reconhecimento público de suas identidades. Porém, na prática, ele funciona como instrumento para uma força conservadora, pois transforma desigualdades incapazes de obter aprovação pública em “diferenças culturais” reconhecidas. Afasta e não integra. Numa interessante citação, o autor refere-se a Alain Touraine. Para Touraine, o multiculturalismo deveria respeitar a liberdade de escolha do indivíduo entre uma variedade de possibilidades e não ser confundido com o “multicomunitarismo”, segundo o qual a liberdade do indivíduo é vetada a partir do momento em que ele está preso a uma comunidade, sem direito a uma negociação. E enquanto essa confusão de termos e conceitos perdura persiste também a divisão cada vez mais radical entre as diferentes comunidades, que leva, inclusive, à guetificação, tema de que o autor trata a seguir.

A visão dessa indeterminação é, sem dúvida, desanimadora, ele diz. Pode levar ao total desengajamento, à total desunião. Mas, por outro lado, pode ser vista também como uma luz no fim do túnel. Nunca a busca de uma humanidade comum foi tão ardente e imperativa como hoje. É fazendo uma referência a Amin Maalouf que Bauman comprova isso: segundo o escritor franco-libanês, que trata das pressões culturais sofridas por imigrantes nos países de escolha, quanto mais o imigrante souber que seus costumes de origem são respeitados no novo país, mais aberto ele será às oportunidades neste local e menos se aferrará à sua própria cultura, distanciando-se. Essa é uma maneira de ver que há um diálogo possível entre as culturas, e que a troca é uma possibilidade. Citando a conclusão de Bauman a respeito disso: Maalouf “aponta mais uma vez para o que já percebemos antes: para a relação próxima entre o grau de segurança, de um lado, e a ‘desativação’ da questão da pluralidade cultural, com uma superação da separação cultural e a aceitação de fazer parte da busca por uma humanidade comum, de outro”.

É a insegurança que tende a converter o multiculturalismo num multicomunitarismo, como vimos antes. Diferenças culturais, sejam grandes ou irrisórias, são usadas na construção de “muralhas defensivas ou plataformas de lançamentos de mísseis”. Cultura é sinônimo de uma fortaleza sitiada. A segurança, conclui Bauman, é inimiga da comunidade cercada de muros e protegida por cercas. Mas deveria, ao contrário, ser uma condição necessária ao diálogo das culturas. Sem essa segurança, há pouca chance de que as comunidades se abram para trocas umas com as outras. Com a segurança, diz o autor, agora tomado pelo otimismo, “as perspectivas da humanidade parecem brilhar”.

E, no parágrafo que encerra esse último capítulo – seguido de um posfácio que reitera a relação conflituosa entre comunidade e segurança – Zygmunt Bauman faz uma espécie de desabafo e alerta quanto à luta contra a insegurança, ao dizer que em lugar de mirar às fontes de insegurança, [a construção de comunidades] afasta delas a atenção e a energia. Nenhum dos contendores ganha em segurança na guerra contínua entre ‘nós’ e ‘eles’; todos, porém, viram alvos fáceis para as forças globalizantes – as únicas forças que se beneficiam com a suspensão da procura por uma humanidade comum e com o controle conjunto sobre a condição humana. (ibidem, p.128)

Sobre o autor

Sobre o autor

ZYGMUNT BAUMAN (1925-2017) foi o grande pensador da modernidade. Perspicaz analista de temas contemporâneos, deixou vasta obra — com destaque para o best-seller Amor líquido. Professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, tem mais de quarenta livros publicados no Brasil, todos pela Zahar. Bauman nasceu na Polônia e morreu na Inglaterra, onde vivia desde a década de 1970.

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