"Ler o mundo" é um dos termos de Freire - como "diálogo", "relação professor-aluno", "conscientização", "conhecimento experiencial" - que se expandiram para se tornar um pilar conceitual ou argumento relevante no infinito. trabalhos e propostas pedagógicas tanto para a educação quanto para os movimentos sociais. Uma rápida busca na web com a palavra-chave "ler o mundo" revela dezenas de obras em que o termo aparece em conexão com diversos temas, muitos dos quais sequer mencionam Freire ou tratam pouco da obra do autor. em que o termo é usado.presents.
Esses estudos muitas vezes trabalham com a ideia geral de “ler o mundo”1 como a percepção da realidade, experiência de vida, compreensão ou significado de algo, com base na afirmação – explícita ou não dita – generalizada de que “ler o mundo precede a leitura da palavra" (FREIRE, 1982a, p. 9). Na consulta que fizemos, em que rapidamente identificamos mais de vinte textos, notamos que os estudos que utilizam esse argumento abrangem temas tão diversos como alfabetização infantil, educação de jovens e adultos, formação de leitores, meio ambiente, comunicação, ensino de química, geografia, ciências , arte. Eles geralmente se baseiam em uma certa ideia de educação interdisciplinar e formativa, bem como em uma rejeição da educação instrucional sem considerar adequadamente o que é educação crítica.
Entendemos que, apesar do entusiasmo pedagógico e da demonstração de um desejável compromisso com a educação, a fácil aquisição de conceitos e seu uso quase ingênuo, senão epistemologicamente caótico, gera equívocos tanto sobre o que é ler quanto sobre o próprio conceito de leitura. limitado à sanidade. Neste artigo, exploramos - por meio de um estudo extenso e cuidadoso da obra de Paulo Freire - os significados e aplicações que podem ser apreendidos de "ler o mundo" e apontamos os limites do uso do termo.
Organizámos a exposição em duas secções: na primeira, procurámos centrar-nos na emergência do pensamento de Freire e na sua contextualização no campo da pedagogia crítica; na segunda examinamos a compreensão de Paulo Freire sobre "ler o mundo" e como ela se insere em seu pensamento e como interage com a própria questão da leitura.
A proposta de educar de Freire aparece no cenário político e pedagógico da década de 1960, quando o mundo vivia um forte movimento libertário, incluindo um importante movimento cristão que se consolidou na teologia da libertação, além da Guerra Fria e do predomínio de dois poderes totalitários. Ao mesmo tempo, as humanidades - educação, psicologia, sociologia, antropologia - têm criado novos paradigmas que indicam o papel do sujeito no processo de aprendizagem e propõem metodologias de ensino que desafiam os modelos tradicionais baseados na aquisição de conhecimento por exposição e repetição ostensiva . .
Paulo Freire destacou-se no cenário político-educativo da época com uma proposta de educação de adultos – a alfabetização – que subordinava o ensino e a aprendizagem da escrita à tomada de consciência dos “educados” de si e do mundo, proposta na qual assumiu categoricamente o reconhecimento de que o propósito de aprender algo – no caso, alfabetizar-se – está intrinsecamente relacionado ao propósito de poder atuar no mundo para transformá-lo. Opôs a educação para a dominação ("educação bancária") à educação para a libertação - realizada com os oprimidos: "Quero aprender a ler e escrever para mudar o mundo" [é] a afirmação de um paulista analfabeto. para quem conhecer corretamente significa intervir na realidade conhecida” (FREIRE, 1967, p. 112).
O seu pensamento – e este é o sinal que cruzou o seu caminho – rejeitou fortemente qualquer fantasia idealista e assumiu a concretude histórica da condição humana. Em sua obra mais influente, Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1968), escrita durante o exílio no Chile de 1967 a 1978, ele observa que
[...] a educação como prática de liberdade, em oposição àquela que é prática de dominação, implica a negação do homem [e mulher] abstratos, isolados, relaxados, desligados do mundo, bem como a negação do o mundo. como uma realidade ausente de homens [e mulheres]. A reflexão que ele propõe, porque autêntica, não é sobre essa abstração masculina [e feminina], nem sobre esse mundo sem masculino [ou feminino], mas sobre homens [e mulheres] em suas relações com o mundo. Relações em que co-ocorrem a consciência e o mundo. Não há consciência antes e mundo depois e vice-versa.(FREIRE, 1968, p. 45).
Na tentativa de compreender homens e mulheres - o homem em sua história -, bem como na tentativa de fundamentar teórica e epistemologicamente sua ideia de "consciência", Freire tenta compreender a própria consciência que cada indivíduo - mas também classes sociais - possui de si mesmo e do mundo.
E se no estado de estranhamento histórico em que os camponeses ("áreas altamente atrasadas do país") se encontram, isolados e presos na história, Freire (1967, p. 58) reconhece uma consciência não transitiva - que " representa quase nenhum compromisso entre o homem [e a mulher] e sua existência" porque ele está vinculado "a um plano de vida mais vegetativo com áreas estreitas de interesse e preocupação" para que ele escape "da preocupação com problemas que estão fora de sua esfera biologicamente vital" — ao considerar o estado da vida urbana e industrial, ele postula um estado de consciência transitória que
[...] amplia sua capacidade de perceber e responder às sugestões e questionamentos que vêm do seu entorno e aumenta seu poder de diálogo não só com o outro homem [mulher], mas com o seu mundo [...]. Seus interesses e preocupações agora se estendem a esferas mais amplas do que a simples esfera vital. (FREIRE, 1967, p. 59).
Nesse estado, um novo e profundo paradoxo se manifesta: a mudança no estado e no ser da sociedade, que resultaria da expansão da consciência decorrente de uma maior mobilidade e condições de existência, produz uma alienação ainda mais severa. A consciência transitiva, limitada a si mesma e aos modos de vida cotidianos do mundo moderno, manifesta-se como “predominantemente ingênua”, caracterizada pela “simplicidade na interpretação dos problemas” e “tendência a julgar que já passou o melhor momento”. Graças à massificação, essa transição representa uma "forte tendência à sociabilidade", "impenetrância à investigação", que corresponde a "um gosto exacerbado por explicações de contos de fadas", "fragilidade na argumentação" e "forte emotividade". Nesse sentido, não cria exatamente um diálogo, mas uma polêmica, voltando-se para "explicações mágicas".
É justamente essa distorção da transitividade ingênua - se não elevada à crítica, conduz ao tipo de consciência que Marcel chama de "fanatizada" [...]. Este é um dos grandes perigos, das grandes ameaças a que nos conduz o irracionalismo sectário. (FREIRE, 1967, p. 59) 3
Essa forma de consciência - que está de acordo com a escola e educação adequada ao modo de produção e às relações de poder estabelecidas pelo capitalismo na atualidade - não eleva a pessoa a um estado de liberdade ("a verdadeira matriz da democracia" ). Além disso, mostra que a consciência crítica não surge espontaneamente, mas apenas por meio de uma ação política consistente, que inclui a educação. Freire tem plena consciência de que o estado de opressão não mudará por causa da educação revolucionária, embora tenha um papel a desempenhar.
Para nós, crítica significa apropriação crescente de sua posição no contexto. Significa sua inserção, sua integração, a representação objetiva da realidade. A consciência é, portanto, o desenvolvimento da consciência. É por isso que não será algo resultante apenas de mudanças econômicas, por maiores e importantes que sejam. A crítica, como a entendemos, deve estar fundamentada no trabalho pedagógico crítico, amparada em condições históricas favoráveis (FREIRE, 1967, p. 60).
No ensaio "Ação Cultural pela Libertação", elaborado no mesmo período (1969) e publicado no Brasil alguns anos depois como capítulo do livro Ação Cultural pela Liberdade e Outras Escritas (FREIRE, 1976a), a pedagoga dá continuidade a essa análise com os termos “consciência semi-não transitiva”, “consciência transitiva ingênua” e “consciência crítica”, correspondendo a consciência crítica ao estágio em que os oprimidos se veem como uma “classe em si mesmos”.
Baseada em mitos, a ação cultural de dominação não problematiza a realidade. Na ação cultural problematizadora [de libertação], a realidade anunciada é o projeto histórico a ser realizado pelas classes dominadas, em cujo processo a consciência semi-intransitiva e ingênua é superada pela consciência crítica - a "consciência máxima possível" (FREIRE, 1976a, p. 67).
Alguns anos depois, já em outro momento histórico, embora não menos dominado pelo autoritarismo, Freire retoma a questão da consciência em Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 1996) e examina o princípio da "curiosidade" humana.
Novamente, existem, por assim dizer, diferentes estados de consciência. Para tanto, segue novamente o princípio do não fechamento do ser humano - já presente na Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1968) e fortemente confirmado na Pedagogia da Esperança - Encontro da Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1992) - segundo a qual homens e mulheres estão "em constante movimento de busca". A "curiosidade", condição inerente à existência, implica o movimento de questionamento e autoquestionamento, "fenômeno vital" sem o qual "não haveria criatividade" porque é "a curiosidade que nos move e nos torna pacientemente impacientes com um mundo não fizemos, acrescentamos algo que fazemos” (FREIRE, 1996, p. 15).
Isso não quer dizer que não sejam diferentes quando se trata de modos de estar no mundo. Assim, dependendo das formas como os indivíduos vivenciam a vida, a curiosidade pode tornar-se 'ingênua', tornar-se 'crítica' como resultado da própria ação questionadora e alcançar sua plena realização como 'epistemológica' quando o 'epistemológico' é fundamentado. objeto', de modo que 'quanto mais criticamente se exercita a capacidade de aprender, mais se constrói e desenvolve a 'curiosidade epistemológica'" (FREIRE, 1996, p. 13).
Freire insiste na observação de que, em ambas as formas, a curiosidade é expressão de um mesmo movimento constitutivo da subjetividade: “a curiosidade ingênua [...] curiosidade epistemológica". Assim, ele enfatiza que a diferença entre eles é uma diferença de "superação" e não de "ruptura", realizada por meio da "crítica" daquilo que "ao ser criticado torna-se uma curiosidade epistemológica, metodicamente se "rigoriza" na abordagem o objeto significa com maior precisão seus achados” (FREIRE, 1996, p. 15).
Essa forma de perceber como criamos, nos colocamos e nos percebemos no mundo mostra uma visão que quer ser sensível à vida comum e sua expressão no senso comum - "conhecimento da pura experiência feita" - característica da curiosidade ingênua, reforçando a incompletude da seres humanos e sua abertura de conhecimento. A aposta pedagógica é que o aluno, provocado pela reflexão que surge numa relação verdadeiramente dialógica, amplie a sua percepção do mundo e aborde primeiro a curiosidade crítica e depois a curiosidade epistemológica.
A verdadeira dialogicidade, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a ela, é um modo de ser coerentemente exigido por seres que, no inacabado, considerando-se como tal, tornam-se radicalmente éticos. (FREIRE, 1996, p. 31).
Portanto, não há como ignorar suas experiências de conhecimento no estabelecimento e desenvolvimento de “relações político-pedagógicas com grupos populares; sua explicação do mundo, da qual faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo" (FREIRE, 1996, p. 42), sempre com a aguda percepção de que isso exige esforço e que "uma leitura do mundo feita a partir dos sentidos não basta a experiência” (FREIRE, 1997b, p. 21).
Freire assumiu a mesma posição já em Pedagogia do Oprimido quando observa que “nossa tarefa não é falar com as pessoas sobre nossa visão de mundo ou tentar impô-la a elas, mas dialogar com elas sobre sua visão. e nosso" (1968)., p. 55); e voltou a fazê-lo na Pedagogia da Esperança, quando sublinha que o princípio do diálogo pressupõe a confirmação da voz e da experiência dos interlocutores, de modo que no diálogo um não se reduz ao outro, mas, pelo contrário, se afirmam de modo que "a relação de conhecimento não se esgota no objeto, [mas] se estende a outro sujeito e se torna essencialmente uma relação sujeito-objeto-sujeito" (FREIRE, 1992, p. 61).
Refira-se que o aspecto quase poético com que Freire se referia ao senso comum ("saber da pura experiência criada"), aliado à afirmação da tarefa pedagógica do professor respeitando o saber do aluno, encanta o conhecimento espontâneo e um conhecimento muito comum sentido, como se autorizasse uma certa interpretação idealista e subjetivista da cultura popular e das formas de conhecer e valorizar cada pessoa. No entanto, o próprio autor, com a mesma frequência com que adverte contra o imperativo do respeito ao outro, à sua compreensão do mundo e aos seus desejos e necessidades como única forma de concretizar a educação para a liberdade, assinala que
[...] a prática docente crítica que implica o pensamento correto envolve um movimento dinâmico, dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que uma prática pedagógica espontânea ou quase espontânea, "desarmada", produz sem dúvida é um saber ingênuo, um saber da experiência que carece do rigor metodológico que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. (FREIRE, 1996, p. 21).
Dessa forma, assim como a transformação da consciência ingênua transitiva em consciência crítica não é espontânea ou automática, também não é natural superar a curiosidade ingênua e constituir-se em curiosidade epistemológica. Tais dinâmicas são constantemente ameaçadas. O respeito pelo bom senso no processo de superação deve, portanto, ser acompanhado do apoio à atividade criativa do aluno e dedicação à consciência crítica, cuja superação da ingenuidade não é automática ou imediata.
Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto sem desvios idealistas na necessidade de conscientização. Insisto na sua atualização. De fato, como o aprofundamento da "prise de awareness" do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, da consciência é uma exigência humana, essa é uma forma de colocar em prática a curiosidade epistemológica. No lugar do estranho está a consciência de um ser natural que, inacabado, sabe que está inacabado. (FREIRE, 1996, p. 28).
Ao explicar em que consiste a problematização da educação, Freire defende a importância essencial da "conscientização" e afirma que o diálogo é condição necessária para sua realização, insistindo que esse diálogo está profundamente comprometido, indissociavelmente, com a humanização dos sujeitos e com a transformação do mundo. Daí advém a ideia de que a “educação problemática” não se enquadra no “fixismo reacionário” porque aponta para um “futuro revolucionário” e por isso adquire um caráter profético e como tal “esperançoso”.
Não há idealismo nisso, embora seu argumento reconheça a humanidade, que se afirma em certa medida na perspectiva da inspiração fenomenológica e fundamentada no humanismo cristão radical, dadas as condições inerentes à manifestação do espírito. Não é de forma alguma algo que acontece espontaneamente, mas, ao contrário, como resultado de uma educação que reconhece a condição histórica do ser humano e se identifica com ele como "ser fora de si - como "projetos" - como seres que vão adiante, que eles olham para frente” (FREIRE, 1996, p. 47).
Dessa forma, assim como a transformação da consciência transitiva ingênua em consciência crítica não é espontânea ou automática, também não é natural superar a curiosidade ingênua e tornar-se curiosidade epistemológica. Tais dinâmicas são constantemente ameaçadas. O respeito pelo bom senso no processo de superação deve, portanto, ser acompanhado do apoio à atividade criativa do aluno e dedicação à consciência crítica, cuja superação da ingenuidade não é automática ou imediata.
Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto sem desvios idealistas na necessidade de conscientização. Insisto na sua atualização. De fato, como aprofundar o “preço da consciência” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, da consciência é uma demanda humana, é uma forma de colocar em prática a curiosidade epistemológica. No lugar do estranho está a consciência do ser natural, que, inacabado, sabe que está inacabado. (FREIRE, 1996, p. 28).
Ao explicar o que constitui a problematização da educação, Freire defende a importância essencial da "conscientização" e argumenta que o diálogo é condição necessária para sua efetivação, insistindo que esse diálogo está profundamente comprometido, indissociavelmente, com a humanização dos sujeitos e com a transformação. o mundo. Daí a ideia de que a “educação problemática” não se enquadra no “fixismo reacionário” porque aponta para um “futuro revolucionário” e, portanto, adquire um caráter profético e como tal “esperançoso”.
Não há nenhum idealismo nisso, embora seu argumento reconheça uma humanidade que se afirma um tanto na perspectiva da inspiração fenomenológica e baseada em um humanismo cristão radical, dadas as condições inerentes à manifestação do espírito. Não é de forma alguma algo que acontece espontaneamente, mas, ao contrário, como resultado de uma educação que reconhece a condição histórica do homem e se identifica com ele como "seres fora de si - como "projetos" - como seres que vão adiante, que se divertem” (FREIRE, 1996, p. 47).
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