MACHADO, Taís de Sant’Anna. Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil / Taís de Sant’Anna Machado. -- São Paulo: Fósforo, 2022.
Um Pé na Cozinha é uma exploração das contribuições feitas por mulheres negras para a culinária brasileira. Adaptado da tese de doutorado de Taís de Sant’Anna Machado, o livro analisa a forma como a profissionalização das mulheres negras na cozinha doméstica evoluiu desde o pós-abolição até a culinária contemporânea. O livro investiga os significados culturais da expressão “um pé na cozinha” e o estereótipo da mãe preta. Ao mesmo tempo, destaca o papel fundamental das mulheres negras na criação de um dos principais elementos da identidade brasileira: o seu rico e diversificado patrimônio gastronômico.
Não existe nota de abertura melhor para explicar esta obra prima, do que as palavras da própria autora no prefácio da obra:
As mulheres negras alimentam o brasil do seio à mesa desde que aqui chegaram, forçadamente, pelos lancinantes processos de escravização empreendidos pelos europeus no continente africano. Esse abastecimento nutritivo continuou sendo de vital importância mesmo com o término formal da escravidão e segue como parte constitutiva da cozinha brasileira. Todavia, o apagamento da importância basilar que tais mulheres tiveram e ainda têm na formação nossa ou nossas culinárias, em âmbitos regionais ou nacional, é lugar-comum na maioria das narrativas gastronômicas do país. (pag. 11)
O subtítulo da obra é claro e preciso: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil. É um olhar acerca do tratamento da sociedade ao longo do percurso histórico sobre a cozinha (e o preconceito). A obra é uma adaptação de uma tese de doutorado da autora, que desde sua publicação, 2022, tem aberto espaço para inúmeros debates no campo da alimentação e dos estudos sociais acerca da desvalorização da profissão, das mulheres, da figura negra na cozinha, do racismo, das estruturas de poder que se perpetuaram até os dias atuais e dos relatos carregados de resquícios de um Brasil empobrecido por suas raízes racistas e invisibilizadoras de mulheres negras na geografia histórica.
O livro fala-nos sobre a hierarquização de raça que se perpetuou do Brasil escravista até os dias atuais, tornando a cozinha um espaço violento para as mulheres. A autora investiga as complexas relações entre os movimentos sociais, a historiografia, os estudos críticos de alimentação e as experiências individuais de cozinheiras negras. Ao examinar as condições exaustivas e desumanas em que essas mulheres trabalham, ela também destaca o papel essencial que desempenham na articulação de comunidades. Ao costurar histórias individuais e coletivas, a doutora nos ajuda a entender a ambivalência destes fatores até os dias atuais.
O livro apresenta um trabalho profundo acerca da mulher negra na cozinha, pautando suas linhas gerais na estruturalização da hierarquia racial; racismo; antinegritude e as diversas formas de desvalorização que este percursos histórico tensiona.
A obra de Machado está dividida em duas partes distintas, a parte um desta obra chama-se cozinha não era lugar de gente, que analisa de forma sistemática o tratamento da intimidade adotada pelos patrões com mulheres negras na cozinha, narrando episódios de abusos sexuais e tensões causadas pela hierarquia de poder-raça estabelecida durante. o período escravista. As narrativas percorrem o período da escravidão até o século XX e seus resquícios na culinária profissional.
A segunda parte da obra intitulada a conversa sempre esteve na cozinha, a autora trabalha a história de Benê Ricardo, a vanguardista, que ficou conhecida por se tornar a primeira mulher negra à receber um diploma de chef de cozinha em 1981, no Brasil. A narrativa também aborda. as questões de julgamentos presentes na cozinha profissional e a pressão sofrida pelas mulheres negras pelo poder pre-estabelecido de raça presente nas cozinhas.
Em interlúdio III, uma subdivisão presente. na segunda parte da obra, a autora conta-nos sobre Cenira, que ao chegar no Rio de Janeiro para trabalhar em uma casa, assumiu a responsabilidade de preparar um prato jamais feito por ela: um peru de natal. A história serve para ilustrar que, Cenira, em meio àquele local violento de trabalho, encontrou conforto e ajuda em outras funcionárias negras que estavam na mesma posição. A história se perpetuou como sendo importante à ajuda de uma para com as outras durante este processo e trabalho. A narrativa que se segue é um estudo sobre como a cozinha tornou-se um espaço geográfico caraterístico das mulheres negras.
Taís mostra como, a partir dos anos 20 do pós-abolição, intelectuais predominantemente brancos criaram narrativas idílicas baseadas na estereotipada “mãe preta” para contar a história da formação do Brasil. Por meio de crítica feminista, Taís desafiará essas narrativas romantizadas, expondo os detalhes das relações desiguais entre patrões e trabalhadoras negras, e como essas relações contrastam com a história de harmonia racial geralmente contada sobre a formação da cozinha brasileira.
As mulheres negras estão assumindo um protagonismo inegável, mudando sua posição nas cozinhas dos restaurantes e residências. O trabalho que exercem torna-as importantes agentes de suas próprias histórias. Através de um estudo profundo da cozinha, é possível perceber a importância que elas têm na construção social do Brasil.
Leitura indicada para todo bom leitor fã de uma escrita impecável, bem como estudantes das áreas de história, geografia, psicologia e sociologia.
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