A tatuagem de pássaro esta disponível no formato e-book / foto: colagem digital: post literal |
A tatuagem de pássaro é um romance ficcional escrito pela escritora iraquiana Dunya Mikhail, porém, eu poderia concebê-lo facilmente como sendo um livro biográfico, afinal, ele não fala da vida da autora, mas fala da vida de alguém em algum lugar.
A tatuagem de pássaro é um singelo, dolorido e sofrido retrato da ação da impunidade em voga em países dominados pela religião. Neste livro, conhecemos Helen, sua vida é narrada de forma simples e com riqueza de detalhes, pode-se perceber que a autora quis narrar a verdadeira essência da vida: a simplicidade dos detalhes e a valoração da liberdade. Pode-se afirmar que os momentos, por mais simples que sejam, são a essência da vida, um dia poderemos sentir falta de uma simples caminhada ao ar livre, ou de bons risos com amigos. Momentos pequenos fazem a diferença quando somos privados de pratica-los ou de simplesmente poder fazer qualquer coisa que antes fazíamos, o poder da privação faz-nos perceber a falta que um coração em paz, uma família unida, um amor verdadeiro e a liberdade fazem falta, é mais comum sentirmos falta do que tínhamos, do que valorizar o que temos. Acho que, no fundo, bem no fundo, a autora trabalhou toda noção de vida em cada linha, transmitindo ao leitor a sensação de que é importante viver cada momento com intensidade, pois não sabemos quanto tempo irá durar, o tempo é mutável e não eterno.
Helen é uma garota yazadi [religião da antiga mesopotâmia] que encontra em seu caminho o pior dos castigos: o fim da vida como ela conhecia. Neste romance, conheceremos o poder de ação do estado Islâmico e de toda sua influência, poder e impunidade.
Foto: Colagem digital / post literal / Tradução de Beatriz Negreiros Gemignani |
Helen conhece Elias e apaixona-se perdidamente. O romance e a descrição de ambos era de repleta sintonia e sentidos. Elias acabara de perder sua esposa, tornando-se pai solo. Durante um dia de sol em que tentara aprisionar um pássaro em uma gaiola, ele é afrontado por Helen, que realiza a soltura, e é, confrontado com uma simples indagação: Não sabia que era seu pássaro. Coitado, ele parecia morto. E se fosse uma mãe querendo voltar para os seus filhotes? Você iria querer separá-los?. As palavras soam como facas para o jovem que, refletindo sua condição atual, cai em prantos e reflexões ao chão, Helen aproxima-se e então eles começam uma história, ali, em um momento simples durante um dia de sol, tudo sem pretensões, repleto do que há de mais precioso na vida: os bons momentos e as conversas, isso me fez refletir bastante sobre uma das mensagens do livro: Metade da beleza de uma pessoa é a língua (p.454).
Um dia Elias desaparece, Helen entra em desespero, mas o que o destino lhe preparava era tão dolorido quanto. Helen acaba sendo vítima de um sistema de tráfico de humanos por parte do Estado Islâmico, que a mantem refém para venda e abusos sexuais por parte de seus compradores, como um produto qualquer. Helen encontra uma antiga amiga também refém, Amina, o alívio por ver um rosto conhecido logo é abalado, quando Helen é vendida.
Era comum todas as mulheres reféns receberem diversas visitas de compradores durante a semana, eles podiam estupra-las para verificar se elas realmente lhe serviriam para seus propósitos, as vezes por um ou quatro ou mais homens, como um produto na prateleira em um sistema de trocas infinitas, podendo experimentar o produto e devolvê-lo como numa espécie de amostra grátis. As sessões eram doloridas e as descrições são repletas de dor e sofrimento, é impossível não se compadecer ou não se sentir na pele destas mulheres, suas vontades de rever a família ressoavam em conjunto com a vontade de se suicidarem para pararem com o sofrimento, a esperança era, na maior parte das vezes, a primeira coisa à partir.
O livro conta com diversos flashs de memória de Helen, que sempre relembra os momentos com sua família e nos momentos que desfrutara antes de seu sequestro e venda. Ela é então vendida para um oficial, o que lhe parece um período doloroso e difícil, no começo ele é descrito como alguém compassivo e humano, ouvindo Helen e até oferecendo-lhe a liberdade.O homem era responsável por fiscalizar pessoas e empreendimentos aplicando-lhes multas e castigos de acordo com o código de conduta vigente. Segundo a lei, o homem da casa era responsável por todos e recebia o dobro da punição, sendo responsável pelas vestes da mulher, dos filhos e o seguimento das regras estabelecidas para comércios, em diversos momentos notamos o barramento de atividades simples, mas completamente proibidas pela lei, como: venda de conservas e produtos com fermentação, letreiros oriundos de outros países ou com mensagens fora do idioma permitido, homens que dialogam com mulheres à menos de um metro e meio de distância, dentre outros fatores que poderiam levar o cidadão à 20 chibatadas ou à morte.
A partir dai, começa o processo de maiores picos de dor de Helen. Ela, agora, precisa encontrar meios de fugir de seu cativeiro e retornar à família, mas o seu destino e alma foram para sempre modificados por este período. Um livro que fala-nos sobre resistência, resiliência e vontade de viver e a importância de se seguir em frente sem olhar para trás.
A tatuagem de pássaro, no título, é uma alusão ao período em que conhecera seu marido, Elias. Eles optaram por tatuar o desenho no dedo anelar ao invés do uso tradicional das alianças, porquê a perda da aliança culminava na perda da conexão, e a tatuagem é algo impossível de se perder, além de sempre manter a conexão e chama acesa, um simbolismo que ambos carregariam para sempre.
A obra é sutil e sublime, sua narrativa é densa e forte e repleta de simbolismo e significados profundos, a autora trabalha com sutileza em seu primeiro romance de estreia, e claro, nos presenteia com uma narrativa que nos faz chorar copiosamente, agradecendo por sermos tão agraciados com a liberdade e com as pequenas coisas da vida.
Uma leitura indicada à todo leitor voraz fã de uma boa escrita e narrativa transformadora.
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A AUTORA
Dunya Mikhail é uma poetisa, jornalista, tradutora e ativista palestina-americana. Ela nasceu em Bagdá, no Iraque, em 1965. Seu trabalho jornalístico e poético tem como foco a experiência e os direitos das mulheres.
Em 1987, ingressou no jornal iraquiano Al-Zawra, onde trabalhou como jornalista. Após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, Mikhail foi um dos primeiros jornalistas do país a documentar a violência contra civis. Seu trabalho foi amplamente reconhecido e ela recebeu vários prêmios, incluindo o Prêmio Coragem no Jornalismo.
Em 1995, o trabalho de Dunya Mikhail foi publicado no livro best-seller de histórias The War Works Hard, que foi traduzido para vários idiomas. No livro, Mikhail explora a violência da guerra e a brutalidade do regime iraquiano.
Mikhail publicou vários livros de poesia, incluindo I Live in the Slums (2000), The Iraqi Nights (2003) e The Beekeeper: Rescuing the Stolen Women of Iraq (2006). Seus poemas tratam de temas como exílio, solidão, vida das mulheres e resistência.
Mikhail também traduziu poesia árabe contemporânea para o inglês, incluindo os poemas da poetisa saudita Hissa Hilal. Atualmente, Mikhail trabalha como professor de redação criativa na Universidade de Nova York. Ele também é membro do Parlamento Internacional de Escritores e do PEN American Center.
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