APRESENTAÇÃO
Podemos definir o feminismo como o desejo por democracia radical voltada à luta por direitos de todas, todes e todos que padecem sob injustiças sistematicamente armadas pelo patriarcado. Nesse processo de subjugação, incluem-se todos os seres cujo corpo é medido por seu valor de uso - corpos para o trabalho, a procriação, o cuidado e a manutenção da vida e a produção do prazer alheio -, que também compõem a ampla esfera do trabalho na qual está em jogo o que se faz para o outro por necessidade de sobrevivência.
O que chamamos de patriarcado é um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições, o qual o feminismo busca desconstruir. Ele tem por estrutura a crença em uma verdade absoluta, que sustenta a ideia de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas ainda são seguidos por muitos.
Com este livro, Marcia Tiburi nos convida a repensar essas estruturas e a levar o feminismo muito a sério, para além de modismos e discursos prontos. Espera-se que, ao criticar e repensar o movimento, com linguagem acessível tanto a iniciantes quanto aos mais entendidos do assunto, Feminismo em comum seja capaz de melhorar nosso modo de ver e de inventar a vida.
“O feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos. Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque o feminismo liberou as pessoas de se identificarem como mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero - e de sexualidade - e isso veio interferir no todo da vida. Todos porque luta por certa ideia de humanidade e, por isso mesmo, considera que aquelas pessoas definidas como homens também devem ser incluídas em um processo realmente democrático.” - do capítulo “Para pensar o feminismo”.
RESENHA
Feminismo em comum, da filósofa e professora Márcia Tiburi, é um livro político-crítico do movimento feminista como num todo, de acordo com a autora, o feminismo deve ser pensado de forma analítica e crítica, por se tratar de um movimento arraigado de responsabilidades cívicas teóricas e práticas para erradicação de problemáticas advindas do campo social. Para a autora, o campo de estudo é repleto de autocríticas que merecem uma reflexão social profunda da análise dos atos por meio do poder de representação político-pública, modelo de ação de geração de impacto por meio da ação coletiva de um grupo em busca de uma transformação de comportamento social.
A crítica, na visão da autora, não é uma porta para destruição de um ideal, mas a oportunidade para se conhecer o campo no qual a problemática se desenvolve.
Ela pode ser uma desmontagem organizada que permite a reconstrução do objeto anteriormente desmontado [...] Toda forma de crítica, desde que seja honesta, é válida, mas considero que nesse último sentido, como atenção cuidadosa, é possível seguir aproveitando ao máximo as potências do pensamento que visa à transformação do mundo ao qual o feminismo, como ético-político necessariamente se liga. (grifos meus) (p.5)
O uso de todes, como categoria arbitrária de reconhecimento de gênero não-binário também é abraçado pelo feminismo, uma vez que a luta feminista englobou em seu campo de atuação todas as vertentes sexuais e a liberdade de expressão comum individual e prol do bem coletivo.
Todes porque o feminismo liberou as pessoas de se identificarem somente como mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero - e de sexualidade - e isso veio interferir no todo da vida. (p.6)
A luta feminista reordenou os aspectos das lutas de caráter coletivo, tornando-se de uma importância para o desenvolvimento de uma democracia radical, o que não ocorre com o machismo, uma vez que este designou de forma abstrata os desdobramentos da vivência coletiva social por meio do poder e ação dos homens em benefício do próprio coletivo, excluindo ações de performance que beneficiam o todo social.
A luta surgiu como uma ferramenta de análise própria de seu campo de atuação, fazendo-se necessário analisar os campos de atuação, os impactos e os resultados obtidos, todos por meio de um exercício crítico de pensamento e posicionamento individual de cada combatente, analisando não somente o feminismo como uma ação político-social, mas como uma ferramenta de construção constante de mudança de comportamento social, coletando informações e digerindo de forma minuciosa os próximos passos que idealizarão as buscas efetivadas por meio das performances coletivas de um todo.
Questionar os ideais nos quais acreditamos, ao contrário do que imaginamos, serve para nos situar no mundo. No entanto, perguntar se praticamos o feminismo como uma crença ou se ele é um instrumento de transformação da sociedade muda tudo. (p.7)
O patriarcado é, como em síntese geral, um sistema retrógrado que está arraigado nos sistemas e nas diretrizes constitucionais vigentes, colocando em benefício vantajoso a figura do homem, excluindo as mulheres, os diretos coletivos e as demais catracas sociais que fazem o mundo girar no dia-a-dia.
O que chamamos de patriarcado [figura responsável pelo sustento do machismo estrutural] é um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições [...] Em sua base está a ideia sempre repetida de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas que ainda são seguidos por muita gente. (grifos meus - p.12).
Não é possível pensar o caráter dialógico do feminismo se não pensarmos no machismo como uma profunda falta de diálogo entre seres singulares. O machismo se sustentou no mando, na autoridade e no autoritarismo. Vimos que a misoginia é uma espécie de ódio histórico às mulheres, que aparece no mundo patriarcal em momentos diferentes da história [p.22]
O feminismo se constitui a partir da real necessidade de se dizer o que se pensa e se posicionar, uma vez que o patriarcado tomou para si todas as conquistas femininas, apagando da história os relatos de mulheres e sua vivência, como diz a autora, tudo o que se sabe sobre as mulheres foi documentado e exposto por homens, não tendo assim, um espaço de fala, o que criou a necessidade de se impor e buscar portas e caminhos que fossem-se abertas para que se criasse um diálogo de igual para igual, assim como podemos observar na luta histórica do feminismo em busca de direitos, sobretudo, do direito a fala.
Os homens produziram discursos, apagaram os textos das mulheres e se tornaram os donos do saber e das leis, inclusive sobre elas. Tudo o que sabemos sobre as mulheres primeiro foi contado pelos homens. Da filosofia à literatura, da ciência ao direito, o patriarcado confirma a ideia de que todo documento de cultura que restou é um documento de barbárie. (p.22)
A obra também elucida de forma clara a descrição do feminismo como um todo:
Mas o feminismo é ainda mais do que elucidação, crítica e luta. É também a conquista do direito de ser quem se é. Uma conquista comemorada a cada dia por quem se sente comprometido, em sua vida, com aqueles que não--puderamser-aquilo-que-poderiam-ter-sido em função de preconceitos de gênero e sexualidade, de raça e classe. É o feminismo que alerta para a forma de sujeição inscrita no gênero e na sexualidade. Pensar o que chamamos de gênero e pensar também a sexualidade como mecanismo de opressão: eis o que o feminismo busca. [p.34]
Em síntese, a obra da autora Marcia Tiburi é m convite para todos em busca da compreensão do campo de atuação do feminismo, tornando-o uma luta necessária a todas as classes e sexualidades, não causando uma divisão social como propagada, mas como uma ação conjunta de melhora da sociedade para todo o coletivo existente, não se abstendo de oposições e posicionamentos assertivos que viabilizem uma pauta geracional de diálogo entre todas as partes. Uma obra muito bem elaborada e escrita que esclarece e elucida conceitos e definições pouco conhecidas e de suma importância, trazendo visibilidade para todos por meio de suas ações e lutas diárias como uma ferramenta de mudanças que devem e são necessárias à todos.
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