APRESENTAÇÃO
"Cabistezas — causos do Arraial” é obra de referência quando se pensa em resgate da memória de Arraial do Cabo. Sua primeira edição, publicada após 20 anos, nasceu de cuidadosa pesquisa empreendida pela memorialista Meri Damaceno, que passou meses à procura das histórias, lendas, personagens, linguajar típico e particularidades presentes no imaginário coletivo da cidade, outrora pequena vila de pescadores da Região dos Lagos e emancipada de Cabo Frio desde 1985. Agora o livro ganha novas cores, formas e traçados nesta reedição assinada pela Sophia, dentro da linha editorial "História, memória e patrimônio". Se constam nele registros sempre temperados com bom humor sobre bruxas, lobisomens e procissões fantasmagóricas — além de histórias sobre figuras impagáveis como Come-brasas, Fernandinho, Bôco, Bau e Tái, entre muitos outros —, é porque, parafraseando o personagem Chicó, de Ariano Suassuna, “só se sabe que foi assim”. “Cabistezas”, mais que livro, é um documento, certidão de nascimento, registro de identidade — um álbum de família de uma cidade inteira.
Conta o pesquisador Leandro Miranda, no prefácio: "Quando li o 'Cabistezas' pela primeira vez, fiquei fascinado ao encontrar histórias e causos sobre o Cabo antigo, que vinham se perdendo ao longo do tempo. Eles foram resgatados com maestria por Meri, em um trabalho fantástico de pesquisa e entrevistas com os antigos cabistas. É importante lembrar que suas buscas foram feitas em uma época em que não havia as facilidades da internet, o que valoriza ainda mais seu trabalho de memorialista. Ela saía com seu gravador de fita K7 atrás de rendeiras, pescadores e figuras históricas do nosso Arraial, sempre atrás de um bom causo. Assim foi construindo 'Cabistezas', como uma rendeira hábil e paciente vai trançando seus bilros."
RESENHA
Cabistezas é um livro de contos e memórias de causos da cidade de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, escrito pela escritora e memorialista local Meri Damaceno, o livro foi publicado através da editora Sophia em uma reedição primorosa com novas cores, design e diagramação que separam de forma majestosa a divisão dos fatos, sendo eles:
1. Povo Cabista e suas histórias famosas;
2. Depoimentos;
3. Escreveram sobre o Arraial;
4. Curiosidades Cabistas;
5. Poesias e canções Cabistas;
6. Onde há redes há rendas;
Arraial do cabo é conhecida pelo Brasil todo por suas histórias, lendas locais, além da beleza exuberante de sua cidade. Nesta obra, Meri debruça-se à narrar os mais variados fatos e histórias que percorrem os anos da cidade, todos repletos de muita mitologia local e/o acontecimentos reais que marcaram e marcam os locais e os visitantes que buscam desbravar suas terras.
O livro se inicia com a história conhecida de um morador local chamado Quinca Félix, mais conhecido como Tenente come-brasa, tropeiro local encarregado de levar peixe salgado para as cidades da região. Em dado momento, tenente come brasa, embriagou-se e decidiu se passar por outra pessoa, enviando um telegrama à sua família narrando sua própria morte (que coisa, não?), porém, seus burrinhos acabaram levando seu corpo novamente para porta de sua casa. Esse causou ficou tão conhecido que tornou-se um poema local:
E todos prestem atenção na morte de come brasa, quando veio o telegrama direto para a sua casa, a prantinha foi tão grande, o povo não perdeu vaza, as mulheres rezando pela alma de come brasa [...] (p.36).
Todas as histórias, ou quase todas, são carregadas de simbolismo e humor, a grande maioria narra acontecimentos verídicos locais, como a história o peru de Félix (p.89). Félix era recém chegado na cidade, como não dominava a arte da pesca, Félix decidiu abrir um comércio, onde a grande maioria de seus compradores, comprava apenas fiado. As dividas eram contabilizadas utilizando grãos de milho em uma garrafa de vidro, para que assim, pudesse controlar os haveres à serem cobrados da população devedora. Certa vez, reuniu três vidros de milho e foi cobrar de um de seus maiores devedores, Jejo, que acabou por aniquilar sua dívida, quando decidiu jogar todo o milho para as galinhas, para assim, não realizar o pagamento de suas dívidas.
Félix ficou conhecido por ter levado este calote, e de alguns gringos que apareceram prometendo pagar grande quantia, porém, ao levarem o peru, o pagamento ficou pendente, e ele nunca mais viu os gringos, nem mesmo o peru.
Algumas histórias fazem parte da constituição geral da cidade, ficando marcadas pelos mais variados motivos, como por exemplo, a história do alfaiate (p.100), que era um senhor chamado Amaro, que tinha uma alfaiataria, porém, jamais conseguira vender uma peça sequer, o que lhe causou grande raiva, fazendo-o se livrar de todos seus manequins, jogando-os no mar. Alguns pescadores encontraram as nuances dos manequins no mar e pensaram ser grandes peixes. A notícia se espalhou rapidamente, causando grande alvoroço entre os pescadores que saíram em busca dos tais peixes, que jamais foram encontrados, apenas os manequins. A história não conta, mas possivelmente, devem ter causado grandes momentos cômicos locais.
A obra também desdobra-se em descrever lendas locais, algumas, extremamente chocantes que mal podemos imaginar acontecendo de forma real e palpável, como ocorre com a lenda o bicho-mamãe (p106), que narra um episódio de um filho que decidiu amarrar sua égua horas antes de ir para um baile, porém, ao notar a sede do animal, a mãe decidiu soltar o bicho, que desapareceu, causando grande raiva no filho, que decidiu usar sua mãe como égua para chegar até a festa, usando esporas em sua mãe montando em suas costas. A mãe, obviamente, faleceu com o ocorrido e amaldiçoou o filho, que como resultado, torna-se diariamente, sem descanso, um animal à correr pelas noites sem descanso, ora cachorro, ora cabra, ora qualquer coisa do tipo.
Há de se mencionar também a lenda dos porcos fantasmas (p.117), onde o povo conta que Walter, um homem que voltava à cavalo pela praia, deparou-se com porcos correndo ao seu encontro, sem conseguir correr muito, decidiu jogar uma faca ao chão, e os porcos desapareceram na hora, ele então desmaiou e acabou sendo encontrado no dia seguinte por pescadores locais.
O livro de Meri Damaceno é uma daquelas obras que figura-se como indispensável para compreensão da história local, daqueles dignos de se tornarem essenciais e indispensáveis como um monumento à se ser preservado. O livro é carregado de bom humor e histórias intrigantes acerca de histórias contadas por moradores locais, todas bastante difundidas e cercada de mistérios. A reedição da editora Sophia enalteceu esta obra ainda mais rica em detalhes e descrições. Um livro para se ler em uma única sentada.
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