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[RESENHA #600] As homicidas, de Alia Trabucco Zerán


SOBRE O LIVRO

“Assassinas, respondo eu, repetidas vezes, quando me perguntam sobre o assunto deste livro. Estou pesquisando casos de mulheres assassinas. E, diante de mim, como um roteiro teimoso, […] em vez de ouvir a palavra ‘assassinas’, um estranho lapso mental os leva a entender o oposto: ‘assassinadas’.” É deste modo que Alia Trabucco Zerán inicia As homicidas, livro em que se dedica a investigar quatro assassinatos que chocaram o Chile no século 20. Além de bárbaros, esses crimes também causaram comoção porque suas perpetradoras eram mulheres.

Mesclando pesquisa documental e impressões pessoais, a autora, que com este livro venceu o British Academy Booker Prize de 2022, faz uma apuração detalhada na busca por compreender as motivações, explicar o tratamento dispensado a essas mulheres pela justiça e mostrar como os assassinatos e suas executoras foram representados nas artes.

Mulheres jovens, trabalhadoras braçais ou intelectuais, ricas ou pobres, nenhuma dessas quatro personagens se viu livre de julgamentos tendenciosos e representações fantasiosas de suas personalidades pela imprensa sensacionalista. Por darem lugar ao ódio e à violência, incompatíveis com o que o patriarcado insiste em tratar unicamente como frágil e maternal, os crimes subverteram o que se esperava do comportamento feminino. Como diz a autora, “no corpo das mulheres, a raiva costuma ser adjetivada como desmedida, irracional ou de origem histérica, denominações que cumprem a função de deslegitimar as causas dessa raiva e de apagar seu responsável”.

Neste livro, que nada deve às melhores narrativas do gênero true crime, Alia Trabucco Zerán aborda de forma magistral e surpreendente um tema ao mesmo tempo incômodo e revelador, indo na contramão do imaginário coletivo ao colocar a mulher em uma posição de ataque.

RESENHA

“As homicidas fascina, ilumina e horroriza em igual medida […] É uma leitura sofisticada de como o assassinato revela verdades que a sociedade nunca quer confrontar.” — The Herald

As homicidas é um ensaio que explora quatro casos famosos de assassinatos cometidos por mulheres no Chile. Cada caso, separado no tempo e com características únicas, é minuciosamente analisado e contextualizado dentro de seu período. A autora Alia, aproveita essas histórias para apresentar uma série de ideias sobre o crime e as mulheres. Com uma ampla bibliografia e uma vasta quantidade de informações, o autor conduz uma investigação completa dos homicídios e suas consequências, acompanhando todo o processo até sua resolução judicial. Com sua formação como advogada e um claro espírito pedagógico, a autora revela ideias-chave sobre os homicídios praticados por mulheres. Ela argumenta que esses crimes são frequentemente tratados de forma superficial, com sensacionalismo notável, e que as ações das mulheres são muitas vezes justificadas pela paixão ou por serem consideradas alienadas.

A frase que sintetiza a obra está presente na abertura da obra:

É estranho, senhores juízes, é como se me houvésseis julgado outras vezes. -- Marguerite Yourcenar, Cltemnestra ou o crime.

A frase sintetiza o fardo carregado pelas mulheres em seus julgamentos diários por estarem inseridas em uma sociedade patriarcal, onde a verdade dos homens é a única lembrada, comemorada ou levada em consideração. A narrativa é uma forma prolífica de se explicitar que mulheres podem - e são - capazes de crimes hediondos, ainda que consideradas um sexo frágil. Os crimes cometidos por mulheres são, em sua maioria, considerados surtos de raiva e ódio ou acometidos por paixão, assim sendo, são considerados menos frequentes que as atrocidades cometidas por homens, o que as leva a um julgamento mais brando, como ocorreu no caso María Carolina Geel, que foi julgada, de certa forma, amena, tendo sua condenação apenas transitada em primeira instância, não chegando a concluir toda a sua pena.

A autora não busca inocentar os assassinos em momento algum, mas realiza uma investigação minuciosa e rigorosa, algo que nem sempre é feito, como no caso de María Teresa Alfaro, expondo ao leitor nuances e detalhes que passariam despercebidos em uma mera notícia sensacionalista. Sua análise questiona a versão oficial, buscando abordar de forma mais clara e documentada o que aconteceu e o que pode explicar os eventos. À medida que avançamos cronologicamente e conhecemos os casos mais recentes, o livro ganha força devido às informações disponíveis ao público contemporâneo. Do meu ponto de vista, o aspecto mais bem-sucedido e relevante do trabalho está nas questões que ele levanta e que se repetem em cada caso. O poder e a autoridade se sentem incomodados diante dessas manifestações de violência que surgem dentro de um grupo - o das mulheres - ao qual foi atribuído um espaço muito claro e limitado. Portanto, a transgressão é dupla: ao cometer o crime, essas mulheres também destroem o papel que lhes foi atribuído [ao de previsíveis, sexo frágil]. Os crimes são especialmente chocantes, uma vez que foram perpetrados por mulheres [julgados como raiva acumulada, culpa ou paixão]. Ao realizarem os assassinatos, essas mulheres estavam desafiando o monopólio da violência criminosa que historicamente pertencia aos homens. O valor da investigação está em restaurar a versão oficial para ajustar e explicar adequadamente os atos cometidos.

Ao longo das narrativas dos crimes, a autora, insere comentários acerca de um julgamento mais adequado levando em consideração os fatos descritos. A forma como a qual delineia o comportamento, a ação e o ambiente demonstram uma capacidade de pensamento além do ocorrido, sua escrita é uma forma clara de objetificar o ocorrido como algo, de fato, passível de punição, não mais sendo tratado de forma trivial, como foi feito:

A ré é consciente, lúcida, com controle volitivo adequado, juízo autocrítico e raciocínio dentro dos limites normais. -- p. 153

As análises seguem o roteiro dos fatos, descrevendo com clareza o comportamento e a lucidez das autoras no momento dos ocorridos.

Uma mulher de baixo nível socioeconômico, desenvolvimento vital dentro da normalidade, com bom índice de adaptação ao meio e às circunstâncias de sua vida. --p.152 

Em síntese, a obra da autora é um poderoso resumo dos ocorridos, percorridos de análises cuidadosas e minuciosas dos ocorridos, a autora descreve com clareza, em primeira pessoa, os acontecimentos que levaram as mulheres ao acometimento do crime. Analisa-se também, a partir deste ponto, o período histórico, o julgamento das mulheres perante os homens, a visão idealizada da participação feminina no campo social, e claro, os desdobramentos advindos de seus comportamentos. Uma obra de não-ficção de uma autora contemporânea de grande escalão, que analisa sem rodeios os acontecimentos. Uma obra primorosa e instigante, as nuances do crime somadas ao poder de descrição da autora, somam em uma narrativa impecável e lúdica, completamente viciante.

A AUTORA

Alia Trabucco Zerán nasceu no Chile, em 1983. Seu primeiro romance, La resta, venceu o prêmio de melhor obra literária concedido pelo Conselho de Artes do Chile em 2014 e foi eleito pelo El País como um dos dez melhores romances de estreia de 2015. Em 2019, La resta foi finalista do Internacional Man Booker Prize e traduzido para nove idiomas. A autora também publicou o romance Limpia. As homicidas venceu o British Academy Booker Prize de 2022.

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