Em acurada tradução de Ercilene Vita, a obra de Brugère, na contramão da cultura neoliberal do empreendedorismo e da independência, propõe uma ousada revolução teórico-prática em que a atenção para com os outros e a responsabilidade social dos indivíduos e do Estado assumem o protagonismo, de modo que todas as formas de vulnerabilidade – dos migrantes à natureza, das mulheres às pessoas com deficiência, dos condenados pela justiça aos idosos – possam ser devidamente cuidadas.
A autora constrói sua argumentação sobretudo a partir dos textos norte-americanos fundadores da ética do cuidado e de três grandes eixos: as novas vozes a serem ouvidas em um mundo tão plural e a constatação das desigualdades de gênero; o cuidado para com a vulnerabilidade e as grandes dependências; e a reivindicação de políticas públicas para a promoção de uma igualdade real entre mulheres e homens e dos novos regimes de proteção.
Nas palavras da própria autora, “o cuidar supõe uma atenção a todas as vidas e a todos os seres que povoam o mundo. Essa definição bastante ampla – que reagrupa um certo número de atitudes, a capacidade de assumir responsabilidades, o trabalho do cuidado e a satisfação das necessidades – faz do cuidado uma atividade central e essencial da vida humana: a experiência do cuidado adquire, nesse sentido, um tipo de universalidade, porém essa universalidade não é de forma alguma abstrata, pois caracteriza o tipo de relação que convém ter com um ser singular, um elemento natural ou um objeto, a partir do momento em que se reconhece o seu pertencimento a um mundo vulnerável (…). Nesse sentido, é pertinente conferir à ética do cuidado uma consistência ontológica. Na realidade, uma ontologia do cuidado se baseia em uma crítica a todas as formas de poder, sejam elas naturais ou fabricadas pelo homem, em favor de tudo que merece proteção, atenção e que sempre corre o risco do apagamento e da desaparição”.
RESENHA
"A ética do cuidado", escrito por Fabienne Brugére, é um livro que aborda de forma profunda e detalhada o tema do cuidado numa perspectiva ética. A autora apresenta uma análise histórica, social, política, geográfica e antropológica acerca dessa temática, oferecendo uma visão abrangente e aprofundada sobre o assunto.
No enredo do livro, Brugére retrata o cuidado não apenas como uma prática individual, mas como uma responsabilidade coletiva. Ela descreve a evolução histórica do cuidado ao longo dos séculos, mostrando como as transformações sociais, políticas e culturais influenciaram a forma como cuidamos dos outros e de nós mesmos.
Os personagens principais do livro são apresentados como representantes de diferentes épocas e contextos geográficos, o que enfatiza a diversidade de experiências e concepções sobre o cuidado ao longo da história. A simbologia desempenha um papel importante na obra, sendo utilizada para ilustrar diferentes perspectivas e significados atribuídos ao cuidado.
Brugère defende que a ética do cuidado deve ser aplicada em todas as áreas da vida, incluindo a política, a economia e a cultura. Ela argumenta que o cuidado é uma forma de resistência contra a lógica dominante do individualismo e da competição. A ética do cuidado destaca a importância de reconhecer a interdependência e a fragilidade humana. Ela envolve uma preocupação real com o bem-estar dos outros, mostrando-se como uma resposta ética aos problemas e às necessidades enfrentados por aqueles que são mais vulneráveis.
A ética do cuidado enfatiza que todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com dignidade, respeito e compaixão. Ela defende a importância de se estabelecer conexões mais profundas e empáticas com os outros, buscando entender e atender às suas necessidades emocionais, físicas e sociais Essa abordagem ética é particularmente relevante em contextos de cuidados de saúde, assistência social e educação, onde a atenção e o cuidado com o outro são fundamentais. Ela também se aplica às relações familiares e comunitárias, encorajando o cuidado mútuo e o fortalecimento dos laços afetivos.
A ética do cuidado não é sentimentalismo ou altruísmo exagerado, mas sim uma perspectiva ética que busca equilibrar interesses individuais e coletivos, considerando as necessidades de todos os envolvidos. Ela implica em tomar decisões éticas baseadas em relações de confiança, responsabilidade e reciprocidade.
No entanto, ao mesmo tempo, a ética do cuidado pode ser criticada por ser subjetiva e relativista, uma vez que sua ênfase nas relações interpessoais pode fazer com que diferentes pessoas tenham diferentes ideias sobre o que é necessário e adequado em uma determinada situação.A mensagem principal transmitida pela autora é a necessidade de resgatarmos o cuidado como valor ético essencial na sociedade atual. Brugére argumenta que, em meio à individualidade e ao individualismo predominantes na contemporaneidade, o cuidado se mostra como uma forma de reconectar-se com o outro e com nós mesmos, fortalecendo os laços sociais e promovendo o bem-estar coletivo.
Os ensinamentos presentes no livro são profundos e provocativos. A autora nos convida a refletir sobre a importância do cuidado em nossas vidas e a considerar como essa prática pode transformar nossas relações e o mundo em que vivemos. Além disso, Brugére traz à tona a necessidade de repensarmos os sistemas políticos e econômicos que muitas vezes colocam o lucro e o indivíduo em primeiro plano, em detrimento do cuidado com os outros e com o planeta.
Fabienne Brugére é uma filósofa e escritora francesa, conhecida por seus estudos sobre ética e cuidado. Além de "A ética do cuidado", ela tem outros escritos relevantes no campo da ética, como "Ética do consumo" e "Ética do encontro". Sua abordagem acadêmica é pautada por uma análise crítica dos valores predominantes na sociedade contemporânea, propondo alternativas éticas e morais para as questões atuais.
No entanto, uma crítica acerca das informações coletadas é a falta de aprofundamento em certos aspectos. Embora a autora apresente uma visão geral da evolução histórica e cultural do cuidado, alguns leitores podem sentir falta de um embasamento mais teórico e de exemplos concretos. Algumas críticas disponíveis na internet acerca da obra culpabiliza a escrita por se tornar genérica e pouco fundamentada, sendo apenas fruto de diversos recortes de pesquisas e textos acadêmicos americanos existentes, porém, eu discordo em todas as nuances. Além disso, algumas conexões entre os aspectos mencionados, como os históricos, sociais e políticos, poderiam ser melhor exploradas, a fim de fornecer um panorama mais completo e coeso. No entanto, considerando a ampla gama de temas abordados, é compreensível que a obra não possa aprofundar-se em todos os aspectos mencionados. Podemos chegar a conclusão de que a obra de Brugére, ainda que falha em alguns tópicos, é primordial e essencial para leitura de todos os que desejam se aprofundar neste novo campo de estudo: o cuidado.
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