A pernambucana Val (Regina Casé) se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino (Michel Joelsas) vai prestar vestibular, Jéssica (Camila Márdila) lhe telefona, pedindo ajuda para ir à São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica.
CRÍTICA
Em um momento em que o cenário político brasileiro é contestado por cidadãos e representantes eleitos, o filme "Que Horas Ela Volta?", dirigido por Anna Muylaert, surge como uma obra exemplar ao discutir um Brasil dividido. Através de uma mistura de drama e comédia, o filme aborda as questões que confrontam o Nordeste e o Sudeste, os ricos e os pobres, o Brasil segregacionista e a ideia de união nacional.
A protagonista Val, interpretada por Regina Casé, é uma empregada doméstica de Recife que vive há mais de uma década em São Paulo, na casa de seus patrões. Apesar de ser considerada "quase da família" e de ter criado os filhos dos patrões como se fossem seus, ela ainda é segregada, fazendo suas refeições em uma mesa separada e dormindo no quartinho dos fundos, nunca tendo tido acesso à grande piscina onde os outros se divertem. A escolha de retratar uma empregada doméstica ilustra a condescendência de uma elite que acredita ser superior, como já discutido pelos sociólogos Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot.
Anna Muylaert sempre soube brincar com as diferenças sociais, especialmente destacando a classe média. Às vezes, seu humor peculiar e absurdo funciona bem, como em "Durval Discos" e "É Proibido Fumar", enquanto outras vezes ela força um pouco a mão na caricatura, como em "Chamada a Cobrar". "Que Horas Ela Volta?", com um cunho mais dramático e uma narrativa mais convencional que seus filmes anteriores, é sua melhor obra até agora, a mais doce e comovente, evitando cair no maniqueísmo que o confronto entre opostos poderia resultar.
A chegada de Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, à casa dos patrões para se preparar para o vestibular, é o elemento que implode a dinâmica familiar. Jéssica é uma garota questionadora que funciona como um elemento subversivo, evidenciando a artificialidade daquela estrutura que parecia natural tanto para a família como para Val. Assim como o visitante de "Teorema", ela chega com um passado misterioso, seduzindo o pai e o filho, questionando a autoridade da patroa e desestabilizando sua própria mãe.
A representação é equilibrada graças ao excelente trabalho do elenco. Regina Casé desconstrói seus gestos corporais amplos e adota uma feição mais simples e lenta, uma mulher que desempenha as mesmas tarefas há décadas. O humor de suas falas é irônico, mas simples e cotidiano, o que leva sua personagem e o filme para um tom bem-vindo de crônica social. Camila Márdila também tem uma atuação excepcional, navegando pelo terreno desconhecido daquela casa e sutilmente ganhando espaço como uma estrategista. Karine Teles e Lourenço Mutarelli cumprem bem o papel do casal rico e supostamente descolado, apesar de estarem presos às convenções sociais.
O roteiro talvez insista um pouco demais em certos símbolos, como o sorvete e as xícaras de café, mas isso se justifica pela intenção de transformar um único lar em um exemplo de milhares de outros lares em situações semelhantes. Por isso, pequenos detalhes ganham uma importância maior do que teriam normalmente. A atitude de Carlos em relação a Jéssica também pode surpreender, mas encaixa-se nos pequenos surrealismos que Muylaert gosta de inserir em suas histórias, como uma assinatura pessoal. No entanto, esses aspectos não alteram o ritmo agradável da história, que levou a plateia ao riso no Festival de Berlim e conquistou o público em Sundance.
É possível que o público brasileiro se identifique com o filme. Muitas pessoas irão enxergar em tela suas próprias famílias ou famílias de pessoas que conhecem. Comédias de cunho social são raras no cinema brasileiro, especialmente com a qualidade e profundidade de "Que Horas Ela Volta?". É preciso torcer para que esta obra represente aquele segmento do mercado tão necessário e tão carente em nossa cinematografia: os "filmes do meio", entre pequenos filmes de arte e grandes produções da comédia popular.
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