Foto: Arte digital |
APRESENTAÇÃO
Ivan e Ivana são irmãos gêmeos tão parecidos, que um olhar desavisado é capaz de confundi-los. Quando nasceram, em Dos d’Âne, um vilarejo pobre em Guadalupe, a pequena ilha caribenha, trouxeram alegrias infinitas à sua mãe, Simone, já acostumada ao advento de múltiplos em sua família. Inseparáveis, eles desfrutam das delícias do mundo nos primeiros anos de vida: o mar, a areia, a música e os carinhos.
O tempo, porém, deixou marcas muito diferentes em cada um. Ivana logo se revela doce e servil – sonha em ser enfermeira ou policial para ajudar as pessoas. Ivan, por outro lado, se revolta com a condição em que vê a si e aos seus – a miséria e o racismo lhe ferem fundo, e ele não consegue compreender por que o mundo é assim. Apesar da distância que se cria entre eles, o amor dos irmãos é tão forte que assusta e chega até mesmo a levantar suspeitas.
O destino dos dois é desenhado entre o fatal e o arbitrário. Quais os caminhos que uma única alma em dois corpos pode traçar? Quais escolhas delineiam as consequências de nossos atos? E quais fatores fogem do nosso controle? Quantas versões cabem em uma história?
Maryse Condé, a premiada escritora caribenha, alia o maravilhoso e o trágico nestas páginas ao misturar a vida singular a grandes questões globais. A autora trata com lirismo temas como racismo, sexismo, desigualdades sociais e econômicas, migração e terrorismo jihadista. O caos contemporâneo emerge entre dúvida, fé, violência e amor. Um livro fabuloso e triste para ressoar em todos – mesmo muito depois terminadas suas páginas.
RESENHA
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Originalmente publicado em 2017 em francês, A vida maravilhosa e trágica de Ivan e Ivana é um romance picaresco que narra as aventuras transcontinentais dos gêmeos desde sua infância em Guadalupe, passando pelo tempo no Mali com o pai ausente, até chegarem em Paris nos dias de hoje. O livro aborda questões como colonialismo, radicalização, migração e exploração, mostrando como esses temas estão interligados. Com uma estrutura circular, o romance questiona se tudo começa e termina no útero.
Neste romance contemporâneo, a história dos irmãos gêmeos Ivan e Ivana começa com o nascimento em Dos d'Âne, um lugar esquecido por Deus em Guadalupe, que é comparado a um sapo atropelado à beira da estrada. Sua única conexão com a elegância está na cor verde esmeralda da cana-de-açúcar que a mãe deles corta. Guadalupe não é um país, mas sim um departamento ultramarino da França, e é visto por um jihadista como mais um lugar a ser libertado.
Ivan, o ingênuo, abandona o circo em protesto contra a crueldade com os animais, enquanto Ivana se dedica à leitura. Em uma ilha com altos índices de desemprego e onde recém-nascidos são negligenciados, Ivana mantém seu otimismo e destaca-se na escola. Condé, porém, destaca a necessidade de fechar os olhos para certas realidades a fim de encontrar a felicidade em Guadalupe.
O narrador acompanha a trajetória de Ivan, que se depara com a radicalização devido aos golpes do destino e as injustiças da vida. Ao se juntar ao pai, um músico mandingo no Mali, os gêmeos se veem em um país sob toque de recolher, dominado por gangues islâmicas que proíbem a música e destroem os estúdios de gravação. Ivan é recrutado para o Exército das Sombras, se converte ao Islã e tem seu passaporte roubado.
Resgatado e seduzido para um ménage à trois por um casal de expatriados, Ivan acaba sendo entregue novamente às mãos dos motociclistas traficantes que o roubaram. Depois de enfrentar diversas dificuldades, os gêmeos se estabelecem em um subúrbio sombrio de Paris. Ivana inicia sua formação na academia de polícia, enquanto Ivan se torna professor do Alcorão para jovens árabes franceses.
Quando um amigo morre sob custódia policial, Ivan é atingido por uma série de revezes que culminam em um banho de sangue terrível. No entanto, sua reabilitação é promovida pelos empáticos escritores de um livro chamado "O Terrorista Relutante".
Condé não faz concessões. O tapete é constantemente puxado de debaixo de nossos pés com uma mistura de verdades estranhas e golpes irônicos. Os alvos variam desde um policial aposentado, com ordens para mirar na cabeça e eliminar qualquer ameaça, até ensinamentos distorcidos sobre a escravidão praticada pelos sultões árabes. Sobre um mundo dividido em dois campos, o romance levanta questões sobre a falsa ideia de vitimização e a brutalidade em ambos os lados.
Com milhões de pessoas em movimento, Ulisses, um migrante somali, faz uma escolha desesperada ao optar por se prostituir em vez de ficar preso em um campo de migrantes. A referência cultural perdida para Ivan sobre sua nova morada na Rue Voltaire é apenas uma das muitas ironias presentes na história.
A provocativa diversão de Condé esconde um desafio: será que o Ocidente está realmente buscando de forma sincera as raízes do radicalismo jihadista, ou está, de alguma forma, fechando os olhos para os males evidentes que contribuem para alimentar o seu fascínio? A frase de despedida do romance, "você pode pegar ou largar", nos deixa a reflexão.
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