Foto:colagem digital |
APRESENTAÇÃO
Deve uma mãe desejar que a filha seja aquilo que ela não pôde ser? E o que pode ser feito quando as coisas não saem como o esperado? Neste romance comovente da sul-coreana Kim Hye-jin, a protagonista, uma cuidadora de idosos, é uma mulher exemplar aos olhos da sociedade. Viúva de um casamento dentro dos padrões, criou a filha para seguir as tradições ― casar, formar uma família e desfrutar de uma casa própria e um bom salário ― e não perturbar seus planos de aposentadoria sem sobressaltos. Mas tudo sai do eixo quando Green se assume lésbica e, sem emprego fixo ou renda para pagar o aluguel, volta para a casa da mãe com a namorada. Envolta em culpa e arrependimentos, a mãe encara a situação de modo pouco generoso, inclusive consigo mesma. E a sua rotina também não é capaz de oferecer outro repertório que não o do julgamento e da rigidez, já que passa os dias em um ambiente de trabalho insalubre, entre farelos de bolinho na boca, pernas esqueléticas dos doentes, diarreia, brotoejas, fraldas, cheiro de urina, unhas mal cortadas etc. Mesmo habituada ao sacrifício, essas imagens contrastam com a “comida aconchegante” que a namorada de Green prepara, o ambiente acadêmico que frequentam e a casa simples em que moram. Mas até onde a filha realmente se distanciou do projeto de vida que a mãe sonhou pra ela? Enquanto Green luta contra a homofobia na universidade em que atua como professora horista, a mãe entra num embate contra os métodos desumanos de administração da clínica em que trabalha. Se o choque de gerações afasta, a partilha de certos valores une as duas. Sobre minha filha é um romance profundamente honesto a respeito da intensidade dos laços de família, mas não só. Conhecida por retratar de forma compassiva o sofrimento silencioso dos oprimidos, Kim Hye-jin traça um panorama da classe média sul-coreana e evidencia a falta de mobilidade social de uma sociedade que vê seus índices de pobreza aumentando a cada dia. Nela, viver com dignidade é em si só tarefa árdua, que exige que mãe e filha superem as diferenças e o ressentimento para acolher uma à outra.
RESENHA
A história de uma cuidadora de idosos coreana que enfrenta desafios tanto em seu relacionamento com a filha gay, as pressões com seu trabalho, sua visão e tristeza em relação a como se sente em relação ao mundo e aos pensamentos intrusivos em relação aos seus pensamentos autoimpostos sobre a visão dos jovens em relação aos idosos. Viúva de 70 e poucos anos, ela ganha a vida cuidando de uma paciente com demência, Jen, uma jornalista e ativista sem família. Apesar das pressões do chefe para economizar e da aparente insensibilidade dos colegas de trabalho, ela se preocupa com a visão social de que os idosos são descartáveis. Enquanto tenta desafiar essa visão, ela lida com as questões sobre a sexualidade de sua filha, Green, uma professora universitária envolvida em uma disputa trabalhista. Quando Green e sua namorada se mudam temporariamente para a casa da mãe, ela confronta sua ignorância sobre a sexualidade da filha. A história reflete as indignidades da velhice, a homofobia e a solidão que permeiam a cultura silenciosa, oferecendo um olhar esperançoso sobre a luta pela compreensão intergeracional.
O romance começa com a narradora, uma mulher coreana de cerca de setenta anos, observando sua filha Green, enquanto estão sentadas em um restaurante udon. A narradora descreve de forma depreciativa a aparência da filha, notando os saltos gastos e inclinados de seus tênis e a barra suja e esfarrapada de suas calças. A mãe se sente ofendida com a recusa da filha em seguir os padrões de apresentabilidade que ela impôs e culpa da criação, ao longo do livro, pela falta de orgulho e pela vida que considera não normal da filha. No entanto, a filha também vê a mãe de outra maneira, observando as diferenças, como a óbvia diferença de idade. "Onde quer que eu vá", diz a narradora, "vejo apenas jovens. Meu rosto enrugado, com manchas senis, cabelos ralos e ombros caídos. Eu não pertenço a este lugar." Como a luz refletida em um espelho, a perspectiva materna cria uma autoimagem através dos olhos de sua filha.
Em uma primeira análise, pode-se observar que talvez a mãe seja uma mulher extremamente madura e conservadora que projeta na filha seus ideais, transferindo sua noção de fracasso aos cuidados e a forma como a criou. Isso coloca o leitor em uma posição de risco entre as análises sistemáticas impostas pela psicologia ao analisarmos os comentários e a visão da mãe acerca da vida e do comportamento da filha, sobretudo, por sua ausência de sucesso profissional. Cabe ao leitor examinar o ambiente e a vida descrita e apresentada pela narradora, que está em uma situação de vulnerabilidade, não apenas por sua idade, mas por seu trabalho em relação às dificuldades e pressões sociais que se formam em seu entorno. Como seus pensamentos acerca da descartabilidade dos idosos e seu frequente pensamento de deslocamento social, não se vendo, aceitando ou projetando em nenhum local rodeado de jovens. Uma clara confusão interpretativa de uma análise geracional de como se constituem as gerações X, Y e Z.
Os retratos opostos de mãe e filha são interligados e inseparáveis um do outro. No entanto, os papéis de mãe e filha não são estáticos. Durante o dia, a narradora assume o papel de filha em seu emprego como cuidadora em uma casa de repouso, cuidando de um ex-diplomata. Neste papel, ela observa o que poderia ser seu futuro: solitária, envelhecendo em uma instituição que a trata como um fardo financeiro. Ela se preocupa com seus anos finais e com a possibilidade dela e sua filha morrerem sozinhas, especialmente porque sua filha é lésbica. No início do romance, a narradora não consegue sequer mencionar a palavra "lésbica", tão forte é sua negação e relutância em aceitar o relacionamento de sete anos de sua filha com outra mulher. Aqui, o olhar materno é retratado como instável, capaz de examinar minuciosamente os detalhes – como os tênis desgastados da filha outrora mencionados – mas também de ignorar os aspectos mais significativos.
Green e sua namorada lidam surpreendentemente bem com a desaprovação da mãe, principalmente por necessidade. Green, uma professora universitária, sacrificou um semestre de trabalho para protestar contra a demissão repentina de professores gays em sua instituição. Com a renda limitada de sua namorada, o casal se vê obrigado a alugar um quarto na casa em ruínas da mãe de Green, que teme a reação dos vizinhos ao vê-los juntos. Durante a estadia na casa, a namorada demonstra gestos de deferência e generosidade para com a mãe de Green, mesmo que a mãe seja implacável em sua desaprovação.
O diálogo no romance de Kim, sem aspas, sugere uma fusão entre as vozes e pensamentos dos personagens, tornando muitas vezes difícil identificar quem está falando. Isso faz com que as palavras da filha se misturem à locução da mãe, subvertendo o monólogo desta última. Em um momento marcante, Green confronta a mãe com palavras que a mãe sempre evitou: “Minoria sexual. Homossexual. Lésbica. Isto é o que eu sou. É assim que as coisas são.” A mãe, que sempre negou a existência dessas palavras, é confrontada com a realidade de sua filha diante dela. Este momento poderoso quebra a fantasia de autopreservação da mãe e a faz perder o controle de sua história, mostrando que há mais na vida de Green e sua namorada do que ela gostaria de admitir.
A relação materno-filial pode se basear em fundamentos políticos ou éticos? Assim como o olhar masculino heterossexual, descrito por Laura Mulvey em 1975 como uma forma de escopofilia - prazer sexual derivado do ato de observar - pode ser considerado antiético ao tratar o corpo feminino como um meio para um fim, em vez de um fim em si mesmo, será que o olhar heteronormativo do narrador em relação à sua filha também não trata o corpo dela como um meio para um fim, como a reprodução, em vez de um fim em si mesmo, como a felicidade? Seria possível argumentar que a mãe deseja que Green tenha filhos e viva uma vida tradicional não por autoritarismo, mas por preocupação de que sua filha acabe sozinha, como o diplomata sem filhos na casa de repouso, e Kim a narradora tenta se colocar no lugar da filha de maneira sincera.
No entanto, ao final, ela se vê limitada pela sua própria compreensão. A narradora tem dificuldade em imaginar a atração entre mulheres, o que a leva a refletir, não com desprezo, mas com uma aceitação confusa: "Aquela criança que veio de mim, talvez seja a que eu menos entendo. Nunca consegui compreender''. Mesmo com a troca física entre mãe e filha e a formação dos olhos uma da outra - e apesar da capacidade da filha de desafiar a narrativa da mãe - elas permanecem tão distantes quanto duas estranhas. Uma profunda sensação de perda acompanha essa percepção sempre que a narradora a experimenta no livro, e ainda assim, Kim não busca a simpatia do leitor pela mãe de forma simplista. Ao invés disso, ela tece uma história como uma tapeçaria irregular, permitindo que a filha - ou filhas, neste caso - brilhe através das lacunas na compreensão da mãe, de forma similar à forma como a emoção às vezes transcende a política - e vice-versa.
A obra é um convite reflexivo da autora no encontro e enfrentamento de duas gerações distintas com ideais e preocupações latentes que tomam rumos discursivos e reflexões abstratas repletas de abstrações e nuances políticas da constituição da família e do desenvolvimento materno-sensível entre mães e filhos. Uma obra magistral de uma magnitude esplêndida e muito bem elaborada.
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