Sanchez, poeta paulistano talentoso e promissor, vem conquistando seu espaço na cena literária brasileira com seus versos visceralmente sinceros. Com poemas publicados em renomadas revistas literárias do país e participação na equipe de poetas do portal Fazia Poesia, Sanchez cativa seus leitores com sua sensibilidade e sua habilidade única de transmitir emoções através das palavras. Em seu livro de estreia, "dentrofora", lançado em 2023 pela editora Laranja Original, o autor nos presenteia com um mergulho profundo em sua alma poética, revelando a força e a beleza de sua escrita. Confira a seguir alguns dos poemas que compõem essa obra marcante.
estalo bissexto
existe um ponto cego em nossa cegueira,
clareira na geleia espessa de
cada dia:
encontrar aquilo no limiar
entre o livre
e o inútil.
compromissos imaginários circulados
no calendário do ano passado, futuro
confinado a folhas amareladas, futuro
realizado no passado, futuro que, mesmo
assim, não deixa de ser futuro.
o uso não usual, a função não funcional,
a criação – pois criar é sempre se prestar
a fazer o que não presta:
fatiar o fato após o fato,
a foi-se na folhinha.
esconde-esconde
pureza do eu?
eu puramente cindido.
o eu cria a si mesmo
ensimesmado no olhar do outro.
pureza de língua?
língua puramente variada.
o sentido fixado à página
asfixiado pela palavra.
pureza da arte?
arte puramente refratária.
o arquétipo canonizado
destruindo todo o cânone.
pureza?
mas pra que coisa pura se pureza não para
em lugar nenhum?
oásis
entre a memória e o poema,
papel.
traços se alvoroçam sobre a
página intacta buscando a
centelha do agora quando
já é tempo de depois.
frenético delírio sígnico.
traças se esbarram ao redor da
ideia luminosa criando uma
camada entre o ideal memoriado
e o possível corporizado.
frustrante metamorfose fabricada.
entre a memória e o poema,
deserto.
carcaças se acumulam ao longo
da areia erguendo o emblema
ambíguo de morte-alimento e
vida-sanguessuga.
decadente memória decomposta.
carcará se esconde na duna
aguardando a morte da presa
que definha e busca a
salvação.
derradeiro espetáculo cadavérico.
entre a memória e o poema,
muro.
escrever é esmurrar os tijolos.
fantasmagoria
um cheiro que não é
mais cheiro, é lembrança
enlameada.
um lugar que não é
mais lugar, é fotografia
despedaçada.
cheiro seu, lugar ao
seu lado, absurdo:
coisa que é coisa
deixando de ser coisa
por ter sido coisa com
você.
de supetão,
soterrada
em silêncios,
sua sombra
é sublimada.
você
se
tornou
resquício.
falsa coral
língua traiçoeira conduz ao
tropeço em cada duplo sentido.
língua escorregadia atrai para o
beijo com os dentes escondidos.
língua de cobra
bifurcada
entre fala e
carne,
duas línguas em comunhão
na palavra língua.
guardo a palavra aguardando
a picada como quem já
mordeu a língua e se
viciou no veneno.
toda língua é língua de cobra.
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