Foto: Arte Digital
APRESENTAÇÃO
Carlos Drummond de Andrade inaugura este volume contemplando uma moça esparramada na grama: “Eu vi e achei lindo. Fiquei repetindo para meu deleite pessoal: ‘Moça deitada na grama. Moça deitada na grama. Deitada na grama. Na grama’. Pois o espetáculo me embevecia. Não é qualquer coisa que me embevece, a esta altura da vida”. Essa e outras situações irrompem nas crônicas de Drummond para provar que a realidade também é feita de lirismo ― e vice-versa.
Derradeiro livro entregue à editora, em 1987, Moça deitada na grama é uma seleção das últimas crônicas escritas pelo poeta, que por décadas colaborou para os jornais mais relevantes do país. O insólito e o lírico são faces de uma mesma moeda nestes textos que descrevem o Rio de Janeiro e seus moradores, em situações cômicas e despretensiosas, com boas doses de filosofia.
RESENHA
"Moça deitada na grama" é um livro que nos convida a contemplar a realidade sob uma perspectiva lírica e despretensiosa, por meio das últimas crônicas escritas por Carlos Drummond de Andrade antes de sua partida. Nesta obra, o poeta nos leva por situações cotidianas e singelas do Rio de Janeiro e de seus moradores, com um olhar que mescla humor, filosofia e poesia. Com uma seleção de textos que vão desde a reflexão sobre o lirismo encontrado em uma simples moça deitada na grama até a crônica sobre a linguagem dos animais, Drummond nos faz refletir sobre a beleza e a complexidade do mundo ao nosso redor. Na obra de Drummond, encontramos uma poesia que se destaca pela liberdade formal e pela abordagem de questões sociopolíticas. Apesar disso, o que mais ressalta em seus textos são os temas do dia a dia, que, embora enraizados em sua cultura, transmitem uma mensagem universal.
Nesta obra, Drummond tece fortes críticas à sociedade, essa característica de descrever cenas cotidianas de forma despretensiosa que, como sabemos, aproximam-se da realidade em igual caráter, apresentam um novo Drummond em seus últimos dias, um poeta preocupado não somente com as aparências e com as descrições minuciosas do espaço e do deleite da vida, mas do que fazemos deste deleite na linha entre a ação e o tempo. Drummond apresenta cada linha um parâmetro de debate sociológico profundo acerca de sexualidade, relações sociais e situações freneticamente repletas do inesperado com uma dose de humor, característica do autor em criar e descrever enredos que aproximam o leitor da realidade expressa em suas críticas.
Em 'moça deitada na cama', texto de título homônimo ao livro, ao descrever a cena de uma mulher deitada na grama aproveitando o dia e sendo abordada por um guarda, que, baseado em cenas características da preocupação - ou ausência dela - de civilidade acerca das regras convencionais que regem os espaços públicos, sobretudo, de uma crítica profunda acerca da igualdade de gênero, pede para que ela se retire do espaço. Aqui, Drummond traz uma reflexão sociológica sobre as questões de gênero, poder e hierarquia presentes na sociedade. A moça, deitada na grama, representa a liberdade, o conforto e a tranquilidade, mas é rapidamente interrompida por um guarda que a aborda de forma autoritária e sexista, impondo-lhe regras e normas sociais. Historicamente, as mulheres têm sido constantemente subjugadas e controladas pela sociedade patriarcal, que impõe padrões de comportamento e limita sua liberdade. A moça da poesia desafia essas normas ao questionar o porquê de não poder deitar-se na grama como os homens e ao defender a igualdade de direitos.
Seguindo suas linhas, o autor expressa, sobretudo no texto 'o medo e o relógio', novamente a figura de uma mulher sendo abordada por um homem na rua e sendo 'roubada', após sair para resolver algumas questões. Aqui, Drummond trabalha diversas nuances que se relacionam com as intenções das personas, do homem que fica em casa adoentado e seguro de que sua mulher conseguirá, com destreza e foco, concluir a tarefa, a mulher, com medo do seio social e dos problemas que podem decorrer de sua saída sozinha na cidade, que, como podemos concluir, estabelece uma linha de pré-julgamento da mulher em relação ao homem que, em contraponto, rouba um relógio que, até a confirmação de suas incertezas - ou parte delas - ocorreu o que ela mais esperava: o inesperado. Esse fluxo de consciência dentro da narrativa expressa um trabalho característico de análise de tempo e ação dos personagem acerca de sua inevitabilidade de julgamentos acerca das pessoas, dos momentos e dos medos. O texto é uma forma de elucidar o enfraquecimento contemporâneo das certezas que carregamos baseados em ideais pré-estabelecidos por nós sem uma análise prévia da situação. A descrição do autor é extremamente cativante e transforma seu enredo em uma deliciosa experiência literária dos acontecimentos que nos são palpáveis.
Se havia muita gente no local, de repente apareceu mais ainda. O bolo se adensou, e era difícil as pessoas se mexerem. O homem que agarrara o braço de dona Irene queria correr, mas aí é que não dava mesmo jeito de escapar. Num lance rápido, ele colocou alguma coisa na mão dela, que não compreendeu bem o gesto mas apertou o objeto, e só um instante depois viu que era relógio. Quando deu fé que este lhe fora restituído – coisa surpreendente, difícil de acreditar e mais ainda de acontecer –, já o cara tinha sumido. Coração aos pulos, emocionada pelo roubo e pela devolução imprevista, o que dona Irene desejou foi tomar um helicóptero e fugir incontinenti dali. Como não há helicópteros à disposição de senhoras aitas, ela tomou um táxi para chegar em casa ainda arfante, com o multíplice receio do que lhe pudesse acontecer até abrir a porta do apartamento – e mesmo depois, quem sabe lá o que pode irromper de terrível hoje em dia? (p. 20)
Alguns resumos de outros textos presentes na obra:
Aviso na vitrine: O texto fala sobre a experiência de um cliente que frequenta uma farmácia há dez anos e se vê desolado com o fechamento repentino do estabelecimento. Ele lamenta a falta de aviso prévio e a mudança repentina em seus hábitos, destacando a importância que aquela farmácia tinha em sua vida. O texto também aborda a reflexão do personagem sobre sua possível responsabilidade no fechamento da farmácia, e sua incerteza sobre como lidar com a situação. No final, ele questiona onde irá encontrar um lugar que proporcione a mesma familiaridade e gentileza que ele encontrava na antiga farmácia.
O saveiro e a nuvem: O narrador conta a história de como teve que vender seu saveiro chamado Nuvem do céu é você, que era o nome de uma mulher que ele admirava. Mesmo após vender o barco, ele insistiu que o nome não poderia ser vendido junto com o casco. Anos depois, ao retornar à Bahia, descobre que outro homem comprou o saveiro com o nome e se envolveu com a mulher que inspirou o nome. Sentindo-se traído, ele tenta tirar o nome do barco e acaba preso. Ao ser libertado, decide não dar nome a mais nada, pois acredita que os nomes têm importância apenas para as pessoas, não para as coisas.
O assalto diferente: A narradora conta sua experiência de ter sido assaltada, onde os assaltantes levaram suas joias e dinheiro, mas não a levaram junto com eles. Ela especula sobre a possível cumplicidade da mulher que estava no carro dos assaltantes e se sente grata por não ter sido levada. Os amigos com quem conversa elogiam sua postura e consideram que os assaltantes agiram como cavalheiros. No final, a narradora revela que os assaltantes a devolveram suas joias e dinheiro com um cartão pedindo desculpas, levando-a a se considerar uma mulher formidável digna dessa homenagem.
Uma notícia completamente falsa: O protagonista da notícia falsa, Elisiário Batista de Aguiar, reclama ao diretor de um jornal por ter tido sua honorabilidade pública e privada ferida devido a informações errôneas. Ele contesta o fato de ter sido confundido com Antenor Crisóstomo de Sousa, não ser funcionário da Caixa Econômica Federal, ter passado o sábado em casa com amigos, não frequentar bares embriagado, não ter invadido um mercado e não conhecer a sra. Ingrid Feldman. Elisiário também nega a intenção de fundar um partido político e investiga a origem das informações falsas para levar os responsáveis à justiça. Ele pede retificação da notícia e agradece as providências.
Infação, mon amour: A inflação tornou-se uma parte inseparável da vida do narrador, apesar de inicialmente ser vista como um monstro assustador. Ele tentou compreendê-la através de diversas teorias econômicas, mas sem sucesso. Agora, ele aceita a inflação como parte de sua vida cotidiana, até mesmo pensando nela como seu anjo da guarda. No entanto, quando fica sabendo de uma campanha publicitária para combatê-la, ele se vê defendendo a inflação, pois se acostumou com sua presença e não quer se livrar dela. Conclui seu texto declarando seu amor incondicional à inflação.
Os etceteras da vida: O autor fala sobre os "etcéteras da vida", como a construção de um motel em Buritizeiro, problemas de desigualdade de gênero, o desaparecimento dos sacos de trigo antigos e até mesmo a ausência de uma rolinha que costumava cumprimentá-lo todas as manhãs. Ele destaca a importância de prestar atenção nas pequenas coisas da vida e sugere sorrir para si mesmo diante do espelho todas as manhãs como um ato de autocuidado e positividade. Etcéteras, segundo ele, são o que realmente importa e podem ser fonte de imaginação e importância escondida.
João Brandão e João Pedro Rampal: João Brandão e João-Pedro Rampal são dois personagens que vivem uma experiência musical única em uma noite gelada. Enquanto Rampal se apresenta em um concerto na Sala Cecília Meireles para centenas de pessoas, Brandão prefere ficar em casa, ouvindo sua música preferida em um LP do músico. A música é intensa e pura, capaz de mergulhar Brandão em seu próprio mundo interior, onde ele se sente parte da música, em um estado de pura existência. A experiência de ouvir música à noite é transformadora para Brandão, que se sente renovado e em sintonia com sua essência mais profunda. Ao final da noite, o silêncio da agulha do LP marca o término dessa imersão musical, deixando Brandão com uma sensação de renascimento e conexão com a realidade.
Os textos têm em comum a narrativa de experiências vividas pelos personagens, com destaque para reflexões sobre suas rotinas, sentimentos e pensamentos. As narrativas abordam aspectos do cotidiano, como a perda de lugares importantes, relações pessoais, experiências pessoais singulares e reflexões sobre a vida e ações dos personagens. Há também uma abordagem poética e subjetiva nas narrativas, que exploram sentimentos e sensações dos personagens diante das situações descritas. "Moça deitada na grama" é uma obra que nos cativa desde a primeira crônica, nos envolvendo em reflexões profundas sobre a vida cotidiana e as relações humanas. O olhar sensível e poético de Carlos Drummond de Andrade nos leva a enxergar a beleza nos detalhes simples do dia a dia, nos fazendo questionar nossos próprios valores e preconceitos. Suas críticas sociais são habilmente entrelaçadas com momentos de humor e filosofia, criando uma atmosfera rica e envolvente. Certamente, este livro é uma verdadeira joia da literatura brasileira, que nos convida a olhar para o mundo ao nosso redor com novos olhos e corações abertos.
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