Foto: Arte digital |
APRESENTAÇÃO
Uma das principais escritoras francesas da atualidade, Annie Ernaux, empreende neste livro a ambiciosa e bem-sucedida tarefa de escrever uma autobiografia impessoal. Com ousadia e precisão estilística, ela lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à grande História, numa evocação do tempo única. Nascida em 1940, em uma pequena cidade no interior da França, Ernaux pertence a uma geração que veio ao mundo tarde demais para se lembrar da guerra, mas que foi receptora imediata das recordações e mitologias familiares daquele tempo. Uma geração que nasceu cedo demais para estar à frente de Maio de 68, mas que ainda assim viu naquelas manifestações a possibilidade dos mais jovens de uma liberdade que por pouco não pode gozar. Finalista do International Booker Prize e vencedor dos prêmios Renaudot na França e Strega na Itália, Os anos é uma meditação filosófica poderosa e uma saborosa crônica de seu tempo. Pela prosa original de Ernaux, vemos passar seis décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas, signo sob o qual vivemos até hoje.
RESENHA
Em 'os anos', Ernaux utiliza suas memórias e fotografias pessoais para evocar não apenas sua própria vida, mas também o contexto histórico em que ela está inserida. Ela discute a influência dos grandes acontecimentos históricos na formação das identidades individuais e coletivas ao longo do tempo. Além disso, reflete sobre a importância dos objetos, gestos e hábitos do cotidiano na transmissão da memória e na construção da História. A obra também aborda as transformações sociais, culturais e tecnológicas ao longo do século XX e como elas impactam a maneira como as pessoas se relacionam com o passado e se projetam para o futuro.
Ao elaborar uma construção grandiosa, Ernaux, nos convida à refletir msobre o peso da história atual sobre a vida individual e coletiva, com o poder das memórias, o apagamento histórico das emoções, a centralidade do indivíduo em relação ao tempo e o exercício cunhado das experiências vividas. Comunismo, pós-guerra, eleições e demais acontecimentos históricos demarcam um caminho sem volta: o da vivência. Em uma biografia impessoal, a autora transmite em suas linhas uma série de raciocínios lógicos para eternizar suas memórias de alguma forma, certa, que, o tempo o apagará inevitavelmente como em "todas as imagens vão desaparecer (p.7) e essa é a única certeza que temos, como diz Tchékhov na introdução da obra em "seremos esquecidos [...] pode parecer também que esta vida de hoje à qual nos agarramos seja um dia considerada estranha".
Para Ernaux, as fotografias são elementos centrais na construção da narrativa de Os Anos, como expresso em diversos pontos, sobretudo, "é uma foto sépia, em formato oval, colada dentro de uma caderneta com a borda dourada, protegida por uma folha transparente com relevo" (p.15). Ela utiliza essas imagens e eventos comunitários para representar a ideia de coletividade e experiência partilhada. O livro não é apenas a história pessoal de Ernaux, mas sim um meio de explorar preocupações mais amplas e encontrar pontos em comum com os leitores. O objetivo do trabalho é abordar a realidade de forma fiel, mesmo sabendo que a influência das nossas mentes, crenças e percepções sempre estará presente. Na sociedade contemporânea, a memória está sendo apagada devido à valorização do presente e ao desnivelamento do registro do agora com o passado. As fotografias se tornam cada vez mais importantes, permitindo manter os seres vivos distantes e driblar o passado, que se conserva nos álbuns e prateleiras. A ilusão de domínio do passado e permanência no futuro dificulta a consciência do presente, essencial para a formação de memórias. As coisas tomam o lugar dos momentos, e as pessoas são dominadas pela duração dos objetos.
O livro Os Anos está localizado na fronteira entre literatura, história e sociologia. A experiência de leitura é como encontrar álbuns de fotos antigas da família, desgastados e amarelados, com algumas palavras escritas atrás. Não é uma leitura fácil, pois não possui enredo, clímax, lição de moral ou humor. São os detalhes íntimos da vida francesa que ecoam na mente do leitor. Assim sendo, obra de Ernaux nos convida a refletir sobre a passagem do tempo e a importância das memórias na construção de nossa identidade. É um convite para olharmos para trás, para lembrarmos quem éramos, quem somos e quem queremos nos tornar. É uma contemplação sobre a efemeridade da vida e a constância do tempo, que não para para ninguém. A autora nos mostra que, assim como as fotografias vão desaparecer com o tempo, também nós vamos desaparecer, seremos esquecidos. Mas, ao mesmo tempo, somos eternizados nas memórias daqueles que nos conheceram, nos amaram, compartilharam momentos conosco.
Neste livro, ao abordar a citação de fotos em memórias é muitas vezes usada para adicionar profundidade e autenticidade à narrativa. As fotos podem ser descritas de forma detalhada, destacando elementos específicos que são relevantes para a passagem do tempo. As imagens também podem ser usadas como ponto de partida para reflexões sobre o passado, evocando memórias e emoções que complementam o texto. Além disso, a inclusão de fotos em memórias pode ajudar a criar uma conexão mais emocional entre o leitor e o narrador, aumentando o impacto da história contada.
Duas outras fotos pequenas com as bordas serrilhadas, provavelmente do mesmo ano, mostram a mesma criança, só que mais magra, com um vestido de babado e mangas bufantes. Na primeira, ela se aninha com uma cara de sapeca junto a uma mulher encorpada, com um vestido listrado e cabelos presos no alto em grandes rolos. Na outra foto, a criança está com a mão esquerda erguida e fechada e a direita de mãos dadas co um homem alto, de camisa clara e calça vinco, o ar despreocupado. As duas fotos foram tiradas do mesmo dia, em um pátio com paralelepípedos, na frente de um muro baixo cheio de flores no topo. Por cima das cabeças, um varal com um prendedor de roupas que ficou esquecido (p.17)
Ernaux delineia suas memórias referindo à si própria em terceira pessoa, tecendo sob o fio histórico dos acontecimento como uma observadora consciente, este elemento tensiona a relação da memória afetiva da autora em relação ao amadurecimento das ideias dos acontecimentos de sua vida através da extensão do tempo, em um árduo processo de amadurecimento em relação à família, que, como podemos observar é trabalhado pela autora com cisão em outras obras com caráter biográfico, bem como na obra 'uma mulher', onde ela se debruça à explicitar em linhas gerais as memórias ao lado de sua mãe, uma mulher portadora de Alzheimer, onde se relaciona a importância da memória e das lembranças vivídas acerca das experiências da vida, e aqui, este recurso não é diferente. Transformando suas memórias em uma narrativa impessoal, ela convida o leitor à refletir sobre suas próprias memórias e tensões pessoais, causando um estranhamento a cada linha lida de forma única.
Os anos como estudante já não são objetos de desejo nostálgico. Vê esses momentos como uma espécie de emburguesamento intelectual, de ruptura com o mundo de origem. A memória, que era romântica, passa a ser crítica. Com frequência, ela se lembra de cenas da infância, a mãe gritando um dia você vai cuspir no prato que comeu, os rapazes andando de vespa depois da missa, ela com a permanente cacheada como na foto do jardim do internato, os deveres de casa em cima da mesa de madeira forrada com uma toalha protetora impermeável engordurada onde o pai "fazia a colação" - as palavras que também voltam como uma pessoa esquecida (...) [(p. 109)]
Ernaux reflete sobre as mudanças na visão das experiências passadas ao longo do tempo, indicando uma evolução pessoal e uma ruptura com as origens, essa abordagem dos conflitos e ressentimentos internos causados pela transição evocam uma nova fase de vida, agora, marcada pela crítica e pela reflexão retratado por meio de retratos familaires sociais que refletem a construção da identidade e a influência do meio ambiente na formação do indivíduo.
Ao ler Os Anos, somos convidados a refletir sobre nossa própria vida, nossas escolhas, nossos caminhos. Somos levados a olhar para trás, para o passado, e para frente, para o futuro. Somos convidados a viver o presente com intensidade, sabendo que um dia seremos esquecidos, mas que nossas memórias, nossas experiências, nossos momentos de felicidade e dor, permanecerão registrados em algum lugar. Este apagamento histórico e emocional de Ernaux nos convida à sentir na pele o fino tecido das emoções elencadas no decorrer da vida.
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