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APRESENTAÇÃO
RESENHA
Luiz Antonio Simas é um renomado historiador carioca, cujo olhar privilegia os espaços mínimos que compõem a dimensão mais humana da História. Em sua obra "Maldito invento dum baronete", Simas investiga as origens e o desenvolvimento do jogo do bicho de forma inovadora, integrando-o à cultura popular e à herança afro-indígena que caracterizam o Rio de Janeiro. Com uma abordagem ousada e sagaz, o autor nos convida a refletir sobre as múltiplas facetas desse jogo, que vai além da contravenção e do crime, tornando-se um elemento fundamental da identidade carioca. Em vinte e cinco capítulos envolventes, Simas nos leva por uma jornada histórica fascinante, desafiando as normas acadêmicas e revelando as complexidades das ruas, vielas e esquinas da cidade. É uma obra que certamente encantará e provocará reflexões sobre a cultura, a história e a essência da Cidade Maravilhosa.
O autor apresenta reflexões sobre o jogo do bicho, uma das obras mais significativas do Rio de Janeiro, em um olhar ousado e sagaz. Ele aborda a história sem amarras acadêmicas, explorando as idiossincrasias cariocas. Como historiador das ruas, ele desafia as normas acadêmicas e se encanta com as dobras e esquinas da ex-capital da República, livre das hipocrisias. O livro não se limita a contar a história do jogo do bicho, mas busca elementos do passado para continuar explorando a cidade, desafiando as salas de aula e se aproximando do trabalho dos bicheiros. A obra convida o leitor a escolher entre grupo, centena ou milhar, desejando boa sorte.
O livro explora as razões que levaram o jogo do bicho a ser proibido, destacando o contexto social e histórico do Rio de Janeiro do final do século XIX. Ao longo de vinte e cinco capítulos, a obra aborda as múltiplas facetas do jogo do bicho através dos animais que formam os grupos da loteria. O objetivo não é esgotar o tema, mas sim provocar reflexões e apresentar um material acessível, não acadêmico, para diversos públicos interessados. O autor destaca a importância histórica do jogo do bicho na formação da cidade do Rio de Janeiro, ressaltando que é impossível contar a história da cidade sem mencioná-lo.
O livro se divide em capítulos que explanam de forma categórica e minuciosa os animais relacionados ao jogo do bicho. Cada nova representação vem acompanhada da história do universo do jogo do bicho em paralelo à história do Rio de Janeiro e o desenvolvimento das jogadas numa esfera político-social como parte da construção da identidade de um povo.
Avestruz
No ano de 1892, o governo do presidente Floriano Peixoto tentou adiar o carnaval no Rio de Janeiro devido à insalubridade da cidade, mas a população não aceitou e acabou celebrando a festa tanto em junho quanto em fevereiro. A elite republicana buscava modernizar a cidade, reprimindo os pobres e removendo cortiços. Além disso, tentavam apagar as referências culturais africanas, como a capoeira. Em meio a essas tensões, o Jardim Zoológico de Vila Isabel foi reinaugurado com novidades, causando impacto na cidade. O episódio representou uma mudança significativa na história do Rio de Janeiro.
Águia
No universo simbólico, a águia é vista como um ícone de força e grandeza. Utilizada por diversos impérios, desde os antigos persas até a "Grande Armée" de Napoleão Bonaparte, a águia é associada à guerra, conquistas e audácia. O Barão de Drummond foi comparado a uma águia majestosa, símbolo de pessoas inteligentes e ousadas. A genealogia da família Drummond é marcada por reviravoltas, desde a Hungria até Portugal e, finalmente, ao Brasil, onde se estabeleceram em Minas Gerais.
O poeta Carlos Drummond de Andrade descreve a vida do Barão em detalhes, destacando suas contribuições para a cidade do Rio de Janeiro, como a criação da Vila Isabel. A narrativa popular do jogo do bicho, inventado pelo Barão para salvar o zoológico em dificuldades financeiras, contrasta com a perspectiva do historiador Felipe Magalhães, que destaca o lado empreendedor e capitalista do Barão. A criação do jogo do bicho foi uma estratégia para atrair visitantes para a Vila Isabel e impulsionar os negócios imobiliários no bairro.
O Barão de Drummond tentou alcançar o sucesso como uma águia no céu da sorte, mas acabou associado a um dos jogos mais populares do Brasil. A história do Barão revela as complexidades e contradições de sua época, misturando mito e realidade em torno de sua figura.
Burro
No contexto do jogo do bicho criado no zoológico do Barão de Drummond, a perspicácia de alguém levou a popularização do jogo ao vender os bilhetes fora do parque. Isso resultou em um crescimento descontrolado do negócio, com bilhetes sendo vendidos em diversos locais da cidade. O jogo do bicho, por sua vez, alimentou o amor das pessoas pelas loterias, consolidando-se como uma tradição enraizada na cultura local.
Borboleta
No colégio, aprendemos que as borboletas passam por quatro etapas em suas vidas: ovo, lagarta, crisálida e adulta. A transição da lagarta para a borboleta é completamente diferente, seguindo o processo de metamorfose completa conforme ensinado pelos professores de biologia. A metamorfose das borboletas exemplifica como um animal pode se transformar significativamente em diferentes fases da vida, de forma semelhante ao jogo do bicho.
A diversão originalmente planejada para capitalizar o zoológico de Vila Isabel e contribuir para o desenvolvimento de um bairro elitista, seguindo padrões europeus, promovendo especulação imobiliária e fluxo de capital na cidade moderna. Esta iniciativa, em parceria com o poder público que permitiu ao Barão de Drummond explorar o jogo legalmente em seu parque, foi um grande sucesso. No entanto, o jogo começou a se expandir quando os bilhetes passaram a ser vendidos além dos limites do jardim, resultando na saída da borboleta do casulo, pronta para voar.
As razões para a popularidade do jogo são diversas, desde a simplicidade até o apelo emocional gerado pelos animais, que criou um vínculo mais forte com a população do que as tradicionais loterias numeradas. Não se pode ignorar o fato de que o Rio de Janeiro sempre teve afinidade com jogos e loterias, mesmo antes do surgimento do jogo do bicho.
Cachorro
Durante grande parte da história da República, os cachorros de rua sem raça definida e sem registro de propriedade não eram bem-vindos na cidade do Rio de Janeiro por parte da população que aspirava a uma vida mais europeia. Eram perseguidos e recolhidos pela temida carrocinha da Inspetoria de Higiene e, muitas vezes, sacrificados. A carrocinha até inspirou uma música infantil que lamentava sua ação.
Nesse contexto de luta entre disciplina e desordem, civilização e barbárie, raças puras e vira-latas, a proibição do jogo do bicho se concretizou. Em 1895, menos de três anos após o início do jogo no zoológico de Vila Isabel, o Decreto nº 113 proibiu os sorteios. O jogo, que era inicialmente uma diversão da elite carioca, foi visto como um vício que precisava ser eliminado.
A proibição dos sorteios no zoológico levou a uma série de medidas legislativas que visavam reprimir o jogo do bicho, incluindo penas de prisão para quem promovesse rifas ou loterias sem autorização. A repressão ao jogo do bicho fazia parte de um contexto mais amplo de modernização na América Latina, que visava conter práticas populares em nome dos "bons costumes". O jogo do bicho foi progressivamente restringido por leis que definiam o que era lícito e ilícito, proibiam loterias com símbolos e figuras e estabeleciam penas de prisão para os envolvidos em jogos de azar. A legislação para reprimir o jogo do bicho estava em vigor desde a proibição dos sorteios no z.
Cabra
A agilidade das cabras é impressionante, sendo as únicas ruminantes capazes de subir em árvores. Curiosas e serelepes, possuem notável facilidade para escapar de cercados onde estão confinadas. Se forem limitadas por cercas que possam ser puladas, certamente irão se libertar e explorar o mundo. O confinamento do jogo do bicho aos limites do zoológico de Vila Isabel foi breve. A proibição do jogo no local em 1895 não impediu que o jogo escapasse para as ruas da cidade. A venda dos bilhetes na rua do Ouvidor indicou o que viria a acontecer em breve. A popularidade do jogo se espalhou rapidamente pelas ruas, por motivos diversos que vão além de apenas ganhar dinheiro com facilidade. A adesão imediata da população ao jogo foi retratada por Machado de Assis e Olavo Bilac, em 1895.
Carneiro
Os carneiros selvagens vivem em grupos, escapando dos predadores e buscando se manter aquecidos durante o mau tempo. Em cada grupo, um macho maduro assume a liderança, utilizando sua força se necessário. Sempre alertas aos predadores, podem fugir para locais altos ou lutar contra as ameaças, mostrando força suficiente para lançar lobos adultos dos penhascos. Essas características dos carneiros selvagens podem ser comparadas com diversos personagens envolvidos no jogo do bicho, que buscam escapar das intempéries de participar de uma loteria ilegal.
A dificuldade em efetuar prisões de envolvidos no jogo do bicho era evidente, como mostrado em um relato de 1900. Mesmo com a suspeita de participação na atividade, a ausência de provas concretas dificultava a manutenção das prisões. Isso gerava disputas pelo controle das apostas, muitas vezes resultando em confrontos e conflitos pelo domínio dos territórios de apostas.
Camelo
Nas culturas ocidentais, o camelo é visto como um animal exótico e estranho, mas para as culturas da península arábica e dos povos berberes do norte da África, ele é considerado bonito, forte e resistente. Capaz de sobreviver em condições difíceis, aguentando o que a maioria dos animais não conseguiria. Assim como o camelo, a vida de Natalino José do Nascimento, conhecido como Natal, foi marcada por condições difíceis e pela capacidade de resistir às adversidades. Nascido em Queluz, São Paulo, em 1905, em um país recém-liberto da escravidão, Natal enfrentou desafios desde cedo.
Após um acidente que o deixou aleijado, Natal encontrou no jogo do bicho uma oportunidade de sobreviver. Inicialmente como apontador de um conhecido bicheiro, ele logo se destacou e se tornou gerente de uma banca de apostas. Com o tempo, Natal se tornou um dos principais contraventores do Rio de Janeiro, enfrentando prisões e processos judiciais, incluindo um famoso caso de legítima defesa.
Cobra
A grande maioria das cobras não possuem veneno. No entanto, entre aquelas que possuem, algumas são extremamente perigosas para os seres humanos, como as cascavéis e as cobras corais. Apesar do risco que representam, muitas serpentes produzem veneno que é essencial para a indústria farmacêutica, especialmente na criação de antídotos e analgésicos. O veneno e o remédio, em essência, são provenientes do mesmo processo.
Em uma edição de 3 de abril de 1960, um leitor do jornal "Correio da Manhã" chamou Aniceto Moscoso, banqueiro do jogo do bicho, de "cobra venenosa". No entanto, Moscoso recebeu o título de Cidadão Carioca da Câmara de Vereadores, mesmo sendo português. As primeiras referências sobre ele nos jornais remontam à década de 1930, quando era visto como uma figura perigosa envolvida em atividades criminosas ligadas ao jogo do bicho. A partir da década de 1940, Moscoso parece ter se tornando uma figura mais institucionalizada, mantendo negócios legais enquanto ainda estava envolvido no jogo do bicho. Ele e outro banqueiro, Natal, disputavam quem pagava mais enterros na região, em um gesto que simbolizava poder e prestígio. Moscoso foi um dos primeiros a trabalhar ativamente na limpeza de sua imagem, utilizando estratégias de controle e benefícios para manter sua influência, assim como o veneno e o remédio se entrelaçam na mesma cobra.
Coelho
Segundo a tradição popular, quem tem muitos filhos é comparado a um coelho, devido à sua reprodução constante. A coelha fica fértil durante todo o ano devido à ovulação induzida pelo acasalamento, o que faz os machos se manterem sexualmente ativos. Por isso, sonhar com filhos, gravidez ou temas semelhantes é considerado um sinal de boa sorte no jogo do bicho.
A interpretação dos sonhos como presságios ou sinais divinos não é algo novo e está presente em diversas culturas ao longo da história. Exemplos incluem José no Antigo Testamento decifrando os sonhos do Faraó e os estóicos gregos classificando os sonhos como divinos, malignos ou oriundos da alma humana. Os ciganos também atribuem grande importância aos sonhos, e eram bastante presentes na época em que o jogo do bicho surgiu.
Os jornais especializados em jogo do bicho no início do século XX não apenas anunciavam resultados, mas também ofereciam prognósticos baseados em interpretações de sonhos. Alguns palpiteiros, como Sonâmbulo e Emydgio Abitayô, ligavam os sonhos às entidades espirituais para orientar os apostadores em suas jogadas. A relação entre os sonhos e o jogo do bicho é intrigante e levanta a questão sobre a existência de uma tipologia dos sonhos que indique resultados potenciais.
Cavalo
O turfe, esporte que envolve corridas de cavalo contemporâneas, tem suas raízes na Inglaterra do século XVII, embora duelos entre cavaleiros já fossem praticados em diversas culturas antigas. Com a popularização do puro sangue inglês, fruto de cruzamentos entre cavalos árabes e europeus, as corridas se popularizaram, tornando-se um esporte praticado por nobres que, ao longo do século XIX, foi se tornando mais acessível ao público em geral.
No Brasil, a paixão pelo turfe chegou no final do século XIX, com a fundação do Derby Club do Rio de Janeiro em 1885. Com o passar do tempo, o turfe se desenvolveu na cidade, com a transferência do Derby Club para a Zona Sul e a inauguração do Hipódromo da Gávea, que posteriormente se uniria ao Jóquei Club, formando o Jóquei Clube Brasileiro. A posse de cavalos de raça tornou-se um símbolo de distinção social, inclusive para os banqueiros do jogo do bicho, que adoravam os animais. Essa relação entre poder, ostentação e amor pelos cavalos é evidenciada na letra de um samba da Beija-Flor de Nilópolis, que exalta o cavalo mangalarga marchador como um vencedor e guerreiro.
Elefante
A interpretação dos sonhos no jogo do bicho vai além da literalidade. A inversão dos significados dos sonhos pode ser mais eficaz para apostas bem-sucedidas. Os sinais e tradições populares também são levados em consideração na hora de escolher o animal para apostar. Os arquétipos dos animais influenciam nas interpretações de sonhos, tornando o jogo do bicho uma atividade cheia de simbologia e tradição.
Alguns especialistas sugerem que o medo dos elefantes em relação às abelhas pode ter sido desenvolvido devido a experiências de picadas dolorosas. Portanto, a explicação para esse comportamento está relacionada ao pragmatismo e à autopreservação dos elefantes.
Galo
Nascido no Rio de Janeiro, o jogo do bicho se espalhou pelo Brasil, misturando elementos cariocas com as referências locais de cada região onde a loteria dos animais se estabeleceu. Um exemplo disso é a relação do galo com o futebol na Paraíba, onde o jogo do bicho é popular.
No dia 7 de setembro de 1925, em Campina Grande, um clube de futebol foi fundado e recebeu o nome de Treze Futebol Clube, em referência ao grupo do galo no jogo do bicho. O clube se tornou conhecido como o Galo da Borborema. E assim, sendo o rival do Treze, o Campinense adotou como mascote uma raposa, o predador do galo.
O Clube Atlético Mineiro, de Minas Gerais, também é conhecido como Galo, não por causa do jogo do bicho, mas por conta de um galo alvinegro que era imbatível nas rinhas da cidade. A rivalidade com o Cruzeiro fez com que o clube não utilizasse a camisa de número 13, relacionada ao galo no jogo do bicho. Por sua vez, o Cruzeiro adotou a raposa como símbolo em homenagem à astúcia de seu presidente Mário Grosso, que se destacava pelas contratações inteligentes e pela habilidade de superar o rival Atlético-MG. A escolha também teve relação com o fato de as raposas se alimentarem de galinhas, fazendo alusão ao Galo, seu rival.
Gato
Nos cruzamentos do Brasil, é comum que os orixás, divindades originárias da África Ocidental, tenham associações com determinados animais, os quais estão presentes em diversos mitos e rituais dos candomblés. O caracol está ligado a Oxalá, o elefante a Oxóssi, o búfalo aparece nos mitos de Iansã, o leão simboliza a realeza de Xangô, o galo é frequente nos mitos de Ossain, a cobra está vinculada a Oxumarê e Euá, o coelho é de Ibeji, os pássaros canoros são de Logunedé, os peixes pertencem a Iemanjá, e o cachorro é associado a Ogum. Mas qual animal tem conexão com Exu? O gato, esperto, astuto, carinhoso de forma dissimulada, com hábitos peculiares e temperamento imprevisível.
Na linha da umbanda, existe um Exu conhecido como Gato Preto, que em certas versões é descrito como um praticante de alta magia na Irlanda que tem reencarnado por pelo menos 800 anos. Diz-se que ele fez um pacto com um gato para obter a imortalidade das sete vidas, sendo considerado uma entidade ligada à sorte. Dona Maria Padilha, uma poderosa pombagira, muitas vezes é retratada ao lado de um gato em algumas linhas de umbanda, auxiliando em trabalhos de limpeza, alegria e cura.
Um dos casos mais famosos envolvendo Exu e o jogo do bicho foi com o pai de santo Djalma de Lalu, que recebeu um palpite de Exu através de seu erê Pinguilim. Após um sonho revelador, Djalma decidiu apostar em uma milhar seca do macaco e ganhou um prêmio significativo, suficiente para expandir seu terreiro e construir uma vila de casas chamada Vila São Lalu. A festa em homenagem a Exu foi tão grandiosa que os banqueiros da região fizeram um acordo com Djalma e até ameaçaram cortar qualquer bicho em que ele apostasse. A Vila São Lalu ainda está de pé nos dias de hoje.
Jacaré
Campos dos Goytacazes é uma cidade atravessada pelo rio Paraíba do Sul. Segundo os mais velhos, quem navega por ali precisa estar atento ao Ururau Pançudo, um enorme jacaré de papo amarelo. Diz a lenda local que o Ururau era na verdade um jovem apaixonado por uma jovem rica, que foi assassinado e jogado nas águas do rio pelos capatazes do pai dela. Desde então, o rapaz se transformou em um espírito que vive entre o rio Paraíba e a Lagoa de Cima há mais de 200 anos.
Essa lenda do jacaré gigante deixou uma marca na infância do jornalista José do Patrocínio, nascido em Campos dos Goytacazes. Patrocínio, que foi um abolicionista, parlamentar e farmacêutico, ficou conhecido por trazer o primeiro carro ao Rio de Janeiro em 1897. No entanto, ao emprestar o carro para o poeta Olavo Bilac, ocorreu o primeiro acidente automobilístico da história do Brasil.
Patrocínio faleceu sem concluir seu projeto do dirigível, mas sua morte foi cercada de mistérios e superstições, especialmente no que diz respeito ao jogo do bicho. Anos após sua morte, o escritor Lima Barreto retratou em um conto a história de uma jovem que sonha com o número da sepultura da avó e, seguindo o conselho de uma cozinheira, acaba ganhando uma grande quantia em dinheiro no jogo do bicho.
Leão
Em 1976, a Beija-Flor de Nilópolis, localizada em um pequeno município da Baixada Fluminense, conquistou o título de campeã do carnaval das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro com o enredo "Sonhar com rei dá leão". Foi a primeira vez que a agremiação venceu, quebrando a longa hegemonia das chamadas "quatro grandes" do carnaval: Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano. O enredo da Beija-Flor, que contava uma história sobre o jogo do bicho e as relações entre sonhos e palpites, homenageava Natal, um famoso bicheiro com forte ligação com uma escola de samba. Natal, que faleceu recentemente, foi por muito tempo o líder da Portela.
Um detalhe curioso do desfile foi a presença de uma zebra, animal que não faz parte do jogo do bicho. A escolha se deu pela expressão popular "deu zebra", que se tornou sinônimo de resultados surpreendentes no futebol. A Beija-Flor surpreendeu ao conquistar o título, quebrando o favoritismo das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro.
Macaco
O santo padroeiro da cidade do Rio de Janeiro é São Sebastião. Em honra a ele, um chimpanzé nascido no zoológico da cidade em 16 de janeiro de 1963, batizado como Tião, ficou conhecido como "O Macaco Tião". Tião nasceu no novo zoológico, na Quinta da Boa Vista, que substituiu o antigo parque de Vila Isabel. Ele se tornou o habitante mais famoso do local.
Tião era descrito por seus biógrafos como um chimpanzé amigável, acostumado a passear livremente pelo zoológico na infância. Ao crescer e ser colocado em uma jaula, tornou-se mal-humorado, divertindo-se ao desafiar e brincar com os visitantes, principalmente autoridades. Seus ataques chegaram a chamar a atenção da mídia. O macaco Tião até se tornou um candidato a prefeito nas eleições municipais de 1988, em um protesto humorístico que ganhou popularidade. Apesar de receber cerca de 400 mil votos, todos anulados, ele foi o terceiro candidato mais votado do Rio de Janeiro na época. No dia da morte de Tião, a milhar 0067 foi sorteada como prêmio, associada ao bicho macaco, destacando ainda mais a fama do Macaco Tião entre os cariocas.
Porco
O que um jogador experiente na metafísica do jogo do bicho faz se sonhar com uma cobra acuada? É bem possível que aposte no porco. O jornal "O Bicho" - um periódico que circulou no Rio de Janeiro entre 1910 e 1914 - anunciava na primeira página ser um "jornal útil e agradável, dedicado aos amantes de todos os esportes". Apesar disso, o foco principal era o jogo do bicho, abordando tanto a vertente mística quanto a racional.
O jornal também fornecia tabelas de bichos premiados, informava há quanto tempo determinado bicho não saía e sugeria palpites baseados em probabilidades. A tradição das "puxadas" do jogo, que consiste em observar que combinações de bichos são mais comuns ao longo dos sorteios, já era presente naquela época. Se um jogador sonhasse com uma cobra acuada, talvez devesse considerar apostar no porco, segundo as tradições do jogo. E se sonhasse com uma porca morta, seria melhor evitar o jogo por alguns dias, pois seria azar na certa.
Pavão
O pavão, apesar do seu temperamento tranquilo e gregário, é comumente associado a pessoas vaidosas e exibicionistas devido às suas penas ornamentais. Essa relação foi evidenciada pela representação dos chefões do jogo do bicho, feita pelo jornal "O Globo" em 1993, como pavões ornamentados, em vésperas de carnaval. O carnaval de 1993 foi marcado pela exibição pública dos bicheiros, desfilando na frente das escolas e sendo admirados por artistas e políticos. No entanto, poucos meses depois, muitos desses líderes foram condenados por diversas atividades criminosas, revelando a verdade por trás das aparências exuberantes.
Capitão Guimarães, em uma entrevista posterior, reconheceu o erro de buscar os holofotes, expondo o jogo do bicho e a cúpula do crime. Assim como o pavão que abre a cauda para impressionar, a busca por destaque os expôs aos perigos da justiça.
Peru
Orlando Drummond foi um renomado ator e dublador brasileiro, conhecido por dar vida a diversos personagens icônicos como Scooby Doo, Popeye, o Vingador e o Gato Guerreiro. Além de seu talento na dublagem, Drummond também brilhou como o Seu Peru na Escolinha do Professor Raimundo, programa humorístico de Chico Anysio. Ele vivia em Vila Isabel, bairro ligado à origem do jogo do bicho, refletindo sua ligação com o local. Drummond faleceu aos impressionantes 101 anos em julho de 2021. Curiosamente, no mesmo dia, no sorteio do jogo do bicho, a milhar 0980 - peru foi o número sorteado. É incerto quantas pessoas acertaram esse palpite, mas histórias curiosas de como as pessoas interpretam sinais místicos para escolher seus números são comuns.
Uma dessas práticas envolve simpatias com moedas e palpites, como enterrar moedas e pedir para estranhos mencionarem um animal ao serem entregues. Além disso, sonhar com um peru na ceia de Natal pode ser considerado sorte, mas na ceia de Ano Novo é tido como azar, de acordo com crenças populares.
Touro
Boi e touro são nomes que se referem ao mesmo animal, o macho da espécie Bos taurus. A diferença entre eles está na capacidade reprodutiva. Enquanto o boi é castrado, o touro é o reprodutor. Um dos tipos de touro mais famosos é o touro de Lídia, conhecido por sua valentia e agressividade. A imprensa esportiva do Rio de Janeiro comparou o bicheiro Castor de Andrade a um "touro bravo" durante um jogo de futebol em 1966. Castor, filho do banqueiro do jogo do bicho Eusébio de Andrade, era presidente do Bangu e interferiu no jogo armado com um revólver calibre 45.
A polêmica em torno de Castor resultou em mudanças nas regras do campeonato. No final, o Bangu saiu vitorioso e Castor comemorou invadindo o campo. Sua história como "bicheiro romântico" chegou ao fim em 1994, quando sua fortaleza foi descoberta, revelando conexões com crimes graves. Castor foi preso, mas desfrutou de regalias na prisão antes de falecer em 1997. A disputa pelo seu espólio gerou mais violência e mortes na década seguinte, revelando os aspectos sombrios do mundo do jogo do bicho e dos bicheiros.
Tigre
O tigre, um felino de grande porte, é classificado por biólogos como um superpredador, ficando atrás apenas de algumas espécies de ursos na hierarquia dos principais carnívoros do planeta. Capaz de consumir até 10 kg de carne de uma só vez, os superpredadores estão no topo da cadeia alimentar. Durante a ditadura civil-militar brasileira, o termo "tigrada" era usado para descrever os setores subordinados das forças armadas e polícias que atuavam na repressão do regime. Eles realizavam as tarefas cotidianas de interrogatórios, torturas, assassinatos e desaparecimentos de corpos, operacionalizando a repressão no dia a dia.
Com a abertura política na década de 1970, os agentes da repressão que compunham a "tigrada" passaram a buscar poder em outros espaços, principalmente ligados ao crime organizado. Jornalistas como Aloy Jupiara e Chico Otávio abordaram essa relação no livro "Os porões da contravenção", essencial para entender as mudanças no jogo do bicho e na cidade do Rio de Janeiro. A consolidação de uma cúpula no jogo do bicho ocorreu em meio a consensos e conflitos, resultando em uma reorganização do território do jogo. Com o declínio da rentabilidade do jogo do bicho devido à expansão das loterias estatais, a cúpula precisou diversificar suas atividades, incluindo contrabando, lavagem de dinheiro e comércio ilegal.
Urso
Fulano é um grande traidor! Antigamente, o termo "amigo urso" era usado para descrever alguém assim. Esse tipo de pessoa aparenta ser prestativa e amigável, mas acaba traindo a confiança. A origem da expressão vem de uma fábula francesa em que um urso acidentalmente mata um homem ao tentar matar uma mosca que pousou em seu nariz. Um samba famoso dos anos 50 também faz referência a essa história.
Em um crime que mudou a história do jogo do bicho, a morte de Euclides Pannar, conhecido como China Cabeça Branca, levantou questionamentos sobre quem seria o verdadeiro "amigo urso". Ele teria sido assassinado por denunciar manipulações no jogo, de acordo com a investigação do Ministério Público. Anos depois, outro ex-policial ligado ao esquadrão da morte foi morto por querer entrar no negócio do jogo do bicho.
Veado
A origem da correspondência feita no Brasil entre homens homossexuais é debatida. Alguns afirmam que o termo não tem ligação com o veado, o animal, mas sim com a expressão "desviado" ou "transviado" - homens que teriam se desviado de uma suposta normalidade. Essa explicação remonta aos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, que propagava preconceito e não aceitava a diversidade de orientações sexuais. Estudiosos admitiram que chamar um homem gay de "viado" teria realmente relação com o veado, o animal. A linguista Stela Danna, da Universidade de São Paulo, aponta a década de 1940 como o surgimento do termo, especialmente devido ao sucesso do filme Bambi, de Walt Disney, que mostrava veados depositando o esperma uns nos outros durante o período de reprodução.
A mobilização contra a homofobia parece estar surtindo efeito, com clubes e jogadores tomando posições contra a discriminação. Na Copa do Mundo, o zagueiro Bremer foi o primeiro atleta da seleção brasileira a usar o número 24. Em 2022, em celebração ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, clubes como Fluminense, Flamengo e Vasco realizaram ações simbólicas em apoio à causa.
O tabu em torno do número 24 reflete um longo histórico de preconceito e estigmatização, mas a luta contra a homofobia continua avançando, com mais indivíduos e instituições se posicionando a favor da diversidade e do respeito.
Vaca
As vacas ruminam cerca de 8 horas por dia, mastigando aproximadamente 50 vezes por minuto, totalizando incríveis 40 mil movimentos mandibulares diários. Além disso, possuem um olfato aguçado e uma visão razoável em condições normais, permitindo enxergar quatro vezes melhor que os humanos em baixa luminosidade. Ruminar consiste no ato de remoer os alimentos que retornam do estômago à boca, ou seja, mastigar novamente. Em sentido figurado, significa meditar, pensar novamente, refletir sobre algo. No contexto do jogo do bicho, a ruminação é crucial e demanda capacidade de enxergar em cenários de pouca luminosidade, como as vacas fazem com maestria.
A história do jogo do bicho está intrinsecamente ligada aos dilemas e complexidades da transição do Rio de Janeiro da Monarquia para a República, e às relações entre loteria, sociedade e estado. Este breve livro é inspirado nas reflexões de autores como Felipe Magalhães e Ami Chazkel, que abrem caminhos para uma reflexão essencial sobre o jogo. O jogo do bicho se tornou rapidamente uma prática popular, sendo a loteria dos menos favorecidos em uma época em que atividades populares eram reprimidas. Criminalizar tais atividades era uma tendência higienista das elites que projetavam as cidades latino-americanas seguindo modelos europeus.
Ao estudar o jogo do bicho, é fundamental evitar a romantização acrítica ou a demonização dos aspectos culturais envolvidos. Este livro traz vinte e cinco histórias entrelaçadas que exploram dramas urbanos, superstições, contravenções, arte e fé, revelando a complexidade da encruzilhada que é o Rio de Janeiro.
O livro "Maldito invento dum baronete" de Luiz Antonio Simas é uma obra que convida o leitor a mergulhar nas origens e no desenvolvimento do jogo do bicho no Rio de Janeiro de uma forma inovadora e desprovida das amarras acadêmicas usuais. Explorando as múltiplas facetas do jogo através dos animais que compõem a loteria, o autor nos conduz por uma jornada histórica envolvente e repleta de reflexões sobre a cultura popular, a cidade e suas entranhas. Com uma abordagem ousada, sagaz e participativa, Simas nos presenteia com uma obra que desafia as normas acadêmicas e nos convida a refletir sobre as dobras, frestas e esquinas da cidade do Rio de Janeiro, enriquecendo nossa compreensão da história e da cultura carioca. Uma leitura cativante e instigante que certamente irá encantar e provocar reflexões em diferentes públicos interessados na rica herança afro-indígena e nas idiossincrasias cariocas.
O AUTOR
LUIZ ANTONIO SIMAS é carioca, escritor, compositor, professor de História e pesquisador das culturas de rua do Brasil. É autor de mais de 20 livros, entre eles “Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros” (Mórula, 2013), “O corpo encantado das ruas” (Civilização Brasileira, 2019), “Maracanã: quando a cidade era terreiro” (Mórula, 2021), “Umbandas” (Civilização Brasileira, 2021) e “Santos de casa” (Bazar do tempo, 2022). É vencedor do prêmio Jabuti 2016 de melhor livro do ano de não-ficção com o “Dicionário da história social do samba” (Civilização Brasileira, 2015), que escreveu em parceria com Nei Lopes.
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