O olhar irônico e provocativo de Nabokov sobre Dom Quixote


APRESENTAÇÃO

Entre os anos de 1951 e 1952, Vladimir Nabokov ministrou aulas como professor convidado da Universidade de Harvard. Munido de um conhecimento amplo sobre Dom Quixote, foi para a sala de aula determinado a mudar a visão dos estudantes a respeito dessa obra. Com seu estilo único, cheio de ironia, bom humor e novas perspectivas sobre o clássico cervantino, Nabokov mostrou-se um profícuo professor e crítico literário. As aulas, embora preparadas com maestria, ficaram guardadas em pastas por longos anos até que o editor Fredson Bowers as reuniu e transformou neste Lições sobre Dom Quixote. As anotações completas e os comentários que Nabokov guardava para si são trazidos à luz para quem quiser se aprofundar nos estudos das aventuras de Dom Quixote e seu companheiro Sancho Pança. Mas, se o leitor desejar apenas uma leitura prazerosa acerca dos escritos de um exímio e sarcástico professor para seus alunos universitários, Lições sobre Dom Quixote têm outra chave interpretativa, se transformando em uma nada ortodoxa aula sobre a arte de lecionar. Seja qual for o motivo do interesse, trata-se de um livro que nos apresenta uma nova proposta de análise da obra de Cervantes, tirando-a da classificação de comédia atribuída usualmente pela crítica para provar aos estudantes ― e agora, aos leitores ― que o clássico espanhol é também uma obra brutal, um verdadeiro retrato da escuridão da Idade Média. Lições sobre Dom Quixote é uma preciosa oportunidade de conhecermos um autor clássico por meio de outro, pois pela mirada perspicaz e erudita de Nabokov, descortina-se para nós um novo Cervantes.

RESENHA


Vladimir Nabokov, ao chegar aos Estados Unidos em 1940, trouxe consigo aulas sobre Dom Quixote de Cervantes, que foram escritas durante uma licença na Universidade Harvard em 1951-2. Ele se preparou extensivamente para essas aulas, fazendo um resumo detalhado do romance e planejando sua estrutura com base no tema de vitórias e derrotas. As aulas foram reescritas e organizadas para formar um conceito estrutural superior, com algumas páginas não utilizadas sendo segregadas em uma seção separada. O material editorial reflete a atenção meticulosa de Nabokov aos detalhes e inclui citações completas e passagens adicionais para ilustrar suas observações. A seção "Narrativa e comentário" complementa as aulas, fornecendo uma visão mais abrangente do romance como obra de arte. 

No prefácio da obra, o autor Guy Davenport discute a abordagem de Vladimir Nabokov ao livro Dom Quixote de Cervantes: Nabokov apresentou o texto de forma crua e cruel, contrariando a interpretação mais amena e idealizada que havia se popularizado nos Estados Unidos. Ele buscou revelar o texto original, mostrando a essência cruel e zombeteira da obra. Davenport destaca a importância das aulas de Nabokov sobre Cervantes, que revelaram aspectos profundos da obra e sua relevância para o romance moderno. Nabokov reconheceu a genialidade de Cervantes ao criar um personagem tão complexo que transcendeu o próprio livro, influenciando outros escritores e se tornando um ícone literário. A discussão sobre Dom Quixote se tornou um reflexo da ilusão, da identidade e da crueldade, temas recorrentes na obra de Nabokov, o que fez das aulas sobre Cervantes um triunfo na carreira do autor.

A obra se inicia com um capítulo intitulado 'vida real e ficção', discute a ideia central do texto é a distinção entre a vida real e a ficção, mostrando que não devemos buscar uma representação literal da realidade nos romances. A vida real é baseada em generalizações e o homem comum é apenas uma ficção, um conjunto de estatísticas. Por outro lado, a ficção pode abordar elementos universais da vida humana, como a dor, os sonhos e a justiça. O exemplo de Dom Quixote é usado para ilustrar como a geografia descrita na obra não corresponde à realidade, mas ainda assim é possível aplicar generalizações da vida real ao texto. Por fim, é mencionada a mudança de cenário na segunda parte do livro, mostrando como o autor manipulou a geografia de acordo com sua vontade narrativa.

Nabokov examina os dois retratos que são apresentados na obra de Cervantes: Dom Quixote, um indivíduo único com uma mistura de lucidez e insanidade, uma condição física frágil e uma paixão por aventuras; e Sancho Pança, um típico palhaço que não provoca tanto riso. Dom Quixote é descrito como um proprietário rural, de cerca de cinquenta anos, com uma aparência estranha e um estado mental que oscila entre a lucidez e a insanidade. Sua condição física é descrita como frágil e marcada por uma séria doença renal. A brutalidade do livro e a curiosa atitude em relação à crueldade são abordadas, revelando um personagem complexo e trágico em meio a uma farsa medieval.

Sancho Pança é descrito como um trabalhador braçal, ex-pastor e ex-sacristão que transmite uma sensação de dignidade beócia e idade madura. Ele é descrito como baixo, com um barrigão, pernas longas e uma barba espessa. Na segunda parte do romance, ele se torna ainda mais gordo e bronzeado. Há um momento de lucidez em sua vida quando parte para governar uma ilha continental. Vestido como advogado, monta uma mula melhorada, mas seu burrico cinzento, que representa uma parte de sua personalidade, o acompanha coberto de tecidos de seda. Sancho Pança cavalga com a mesma dignidade néscia desde sua primeira aparição.

O autor faz uma análise estrutural do livro Dom Quixote, de Cervantes. Ele destaca as características físicas e espirituais dos personagens principais, Dom Quixote e Sancho, e discute a evolução da narrativa ao longo das duas partes da obra. O autor também menciona diversos recursos estruturais utilizados por Cervantes, como trechos de baladas, provérbios, diálogos dramáticos, descrições poéticas da natureza, histórias inseridas, temas arcádicos e de cavalaria, entre outros. Ele promete aprofundar a discussão sobre alguns desses pontos ao longo do texto, visando uma melhor compreensão do livro.

O autor esclarece que os livros de cavalaria foram descritos como uma praga social que Cervantes combateu em Dom Quixote, porém a moda dos romances de cavalaria já estava em declínio na época. Cervantes critica a falta de verdade nos romances fantásticos, mas comete os mesmos erros em seu próprio livro. O tema da cavalaria é fundamental em Dom Quixote, com paralelos entre os episódios do cavaleiro e os dos romances de cavalaria. A obra termina com uma cena em que Dom Quixote se identifica com os santos cavaleiros das imagens esculpidas, e prenuncia seu destino final.

O autor segue examinando os temas da crueldade e da mistificação presentes na obra Dom Quixote, de Cervantes. Na primeira parte do capítulo, são destacados exemplos de crueldade física, enquanto na segunda parte, a crueldade é principalmente mental e consiste em mistificações. São analisadas as formas de tormento e zombaria que o personagem principal, Dom Quixote, e seu escudeiro, Sancho Pança, enfrentam ao longo da história. Além disso, são abordados os feitiços e os magos que surgem na trama, como a tentativa de desfazer o encantamento de Dulcineia. O autor destaca o elemento de crueldade presente na obra, destacando a necessidade de enxergar além da visão geralmente associada à história. Ao explorar o episódio da gruta de Montesinos e as mistificações ducais na segunda parte, o autor destaca a estrutura e o desenvolvimento da trama, bem como a complexidade dos personagens e das situações que enfrentam, resultando em um livro que é, ao mesmo tempo, cômico e amargo.

No capítulo 'O tema dos cronistas, Dulcineia e a morte', o autor discute o tema dos cronistas na obra de Cervantes, destacando a utilização de diferentes recursos narrativos e estruturais. Também aborda a relação entre Dom Quixote e Dulcineia, mostrando como a personagem feminina é construída e idealizada pelo protagonista. Por fim, discute o momento da morte de Dom Quixote, destacando a cena tocante em que ele faz seu testamento e o impacto de sua partida nos personagens ao seu redor, encerrando com uma reflexão sobre a representação da morte como a desencantadora Dulcineia, uma cruel e irônica referência ao mundo cruel e irreal do romance.

Dom Quixote é um livro de grande importância devido à sua ampla difusão mundial, com traduções em diversos idiomas logo após sua publicação original em espanhol. Enquanto o personagem de Sancho Pança é facilmente caricaturado, a figura de Dom Quixote é complexa e fugidia, apresentando várias interpretações ao longo do livro. Além das múltiplas perspectivas apresentadas pelo texto original, existem inúmeras interpretações baseadas em traduções e adaptações desonestas ou conscientes da obra. O herói literário gradualmente se distanciou do livro em que nasceu, tornando-se um símbolo de aspirações nobres e impotentes em diversas culturas ao redor do mundo. Atualmente, Dom Quixote é visto como uma figura gentil, pura, altruísta e corajosa, representando a paródia que se transformou em paradigma.

A obra de Nabokov continua analisando os aspectos da narrativa capítulo por capítulo, da primeira à segunda parte, com o objetivo de exemplificar os pontos abordados na análise anteriormente elaborada nas descrições mencionadas nos capítulos anteriores. O autor se dedica a dissecar minuciosamente o enredo nos capítulos, de maneira separada e cuidadosa, da obra de Cervantes.

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