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Resenha: As Américas e a Civilização: Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos, de Darcy Ribeiro

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APRESENTAÇÃO

As Américas e a civilização constitui-se no segundo livro a compor a série “Estudos de Antropologia da Civilização” concebida por Darcy Ribeiro que é compostas por O processo civilizatório, As Américas e a Civilização, O dilema da América Latina, Os Brasileiros: 1 - Teoria do Brasil, e Os índios e a civilização.

As reflexões aqui presentes vieram à lume durante o período em que o intelectual esteve no exílio. Trata-se de uma análise profunda dos processos histórico-culturais vividos pelos povos gestados na América a partir de uma perspectiva inovadora , na qual buscou-se evitar abordagens tradicionais marcadas por visões eurocêntricas.

O desafio a que Darcy se colocou neste livro é dos mais espinhosos: tratar de forma conjunta das particularidades e percursos que marcaram as diferentes populações do vasto continente americano. Como extremo estudioso da História que foi, o antropólogo reúne num só livro os caminhos e descaminhos dos habitantes da América do Norte, Central e do Sul. E faz isso com a propriedade de quem não apenas estudou suas origens e experiências históricas, como também de quem percorreu boa parte das terras americanas.

RESENHA

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A obra 'as Américas e a civilização', de Darcy Ribeiro analisa dois esquemas conceituais que abordam o desenvolvimento desigual das sociedades americanas: o acadêmico (sociologia e antropologia) e o marxismo dogmático. O esquema acadêmico entende o atraso como um descompasso entre estruturas tradicionais e modernas, destacando estudos de dualidade estrutural e modernidade versus tradicionalismo. Ao discutir sociedades subdesenvolvidas como híbridas, os estudos falham ao mistificar fatos e ignorar tecnologias avançadas usadas na colonização. No plano socioeconômico, estrutural e familiar, são examinadas classes sociais, sistemas produtivos e modelos familiares tradicionais versus modernos. O marxismo dogmático vê o atraso como etapas de um processo evolutivo unilinear, utilizando teses clássicas de Marx para identificar resíduos feudais e capitalistas na América Latina. Ambos os esquemas são criticados por suas limitações explicativas e manutenção do status quo. Propõe-se uma terceira abordagem, focada nos fatores dinâmicos das mudanças sociais e tecnológica, associativa e ideológica, utilizando uma metodologia dialética para entender as disparidades de desenvolvimento e as interações entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas.

A história dos últimos séculos é marcada pela expansão da Europa Ocidental, que impôs sua civilização a outros povos através de violência, cobiça e opressão. Nesse processo, o mundo foi reorganizado de acordo com os interesses europeus. As duas principais ondas de expansão foram protagonizadas pelos ibéricos (portugueses e espanhóis) e pelos russos, cada um em suas áreas. Os europeus ocidentais, impulsionados por duas revoluções tecnológicas, a Mercantil e a Industrial, lideraram essas mudanças. A Revolução Mercantil, com inovações como a navegação oceânica e as armas de fogo, permitiu a expansão marítima, enquanto a Revolução Industrial trouxe novas fontes de energia e produção em massa. A expansão ibérica foi influenciada pela tecnologia islâmica e pela luta contra os muçulmanos, culminando na conquista e colonização das Américas. Eles impuseram seu domínio cultural e econômico, contribuindo para a Revolução Mercantil antes de serem ultrapassados pela Revolução Industrial. As nações ibéricas, Portugal e Espanha, não conseguiram se modernizar plenamente e tornaram-se dependentes das novas potências capitalistas-industriais. A Europa central e nórdica, menos avançada inicialmente, amadureceu mercantilmente e, posteriormente, liderou a Revolução Industrial. Isso proporcionou dominação global e expansão cultural, levando à criação de uma civilização policêntrica pela competição entre as novas potências emergentes. Em suma, a dominação europeia reconfigurou o mundo, sendo vital tanto na contribuição tecnológica quanto na imposição cultural e econômica. Esta dinâmica transformou a história global, sendo elemento crucial na evolução dos sistemas socioculturais até a era contemporânea.

No processo de expansão europeia, muitas culturas autônomas se viram agregadas a um único sistema econômico, resultando na perda de autenticidade e na emergência de formas espúrias de cultura. Essa uniformização, decorrente de processos de deculturação e de estereótipos dominadores, levou a uma miséria e desumanização comuns entre os povos extraeuropeus. Contudo, emergiu uma identidade humana elementar compartilhada por todos, baseada em aspirações comuns de fartura, lazer, liberdade e educação. As sociedades reconfiguradas buscaram recuperar sua autenticidade e independência, apesar das influências dominadoras que operavam a partir do antigo centro reitor europeu. Questionaram a capacidade do sistema global de atender às aspirações humanas de prosperidade, justiça e beleza, expondo a inautenticidade do projeto colonial.

Os povos americanos, profundamente afetados pelo domínio europeu, perderam sua autonomia e passaram por um processo de deculturação, tornando-se sociedades espúrias com culturas alienadas. Projetos coloniais visavam principalmente a exploração econômica, deixando a constituição de novas sociedades como um subproduto não desejado. Apesar disso, os povos colonizados lutaram pela reconstituição de suas identidades culturais, primeiro como etnias diferenciadas e, mais tarde, como nações independentes.

O autor ainda descreve a formação dos povos novos nas Américas, destacando sua configuração histórico-cultural única. Esses povos surgiram da miscigenação e dominação de populações indígenas, africanas e europeias, principalmente sob o regime colonial europeu. A escravidão e a plantation foram fundamentaos na organização produtiva e na conformação das sociedades das Américas. As fazendas de monoculturas agroindustriais e extrativismo mineral modelaram a estrutura social e econômica, integrando e deculturando diversas etnias sob extrema opressão. No sul dos Estados Unidos e nas Antilhas, plantação e escravidão criaram sociedades mais brutalmente capitalistas. Mesmo com variações regionais, a matriz escravista e a grande proporção de negros escravizados deixaram marcas profundas. A miscigenação entre europeus, indígenas e negros formou uma sociedade complexa e mestiça, impregnada de tensões raciais e sociais duradouras. Imigrantes europeus e asiáticos no século XIX desempenharam papéis significativos na modernização tecnológica e na institucionalização dos povos novos, aportando qualificações técnicas e culturais, empurrando as sociedades para uma modernidade mais integrada. A resistência política desses imigrantes, sobretudo aqueles das áreas urbanas, contribuiu para a formação de movimentos trabalhistas e sindicais, desafiando o status quo político e social. Os povos novos, portanto, resultam de complexas integrações e adaptações culturais, refletindo um mosaico de contribuições étnicas e dinâmicas socioeconômicas que moldaram seus perfis e desafios contemporâneos.

O autor ainda destaca que os povos transplantados das Américas são descendentes de migrantes europeus que buscaram novos começos no Novo Mundo, trazendo consigo famílias e expectativas de liberdade e prosperidade. Esses grupos se estabeleceram em territórios pouco habitados, frequentemente desalojando as populações indígenas. Na América do Norte, o colonizador europeu evitou a mistura com os nativos, enquanto nos territórios como a Argentina e o Uruguai, os europeus competiram com e subjugaram populações mestiças.

Os povos transplantados destacam-se pelo perfil europeu em aspectos como paisagem, estrutura racial predominantemente caucasoide, cultura e economia capitalista industrial. Diferentes dos demais blocos culturais das Américas, enfrentam problemas específicos devido a suas características e matrizes culturais distintas, como católica latina no sul e protestante anglo-saxônica no norte. Fatores gerais como o modo de colonização, processos de assimilação cultural e formas de integração econômica contribuem para distinguir esses povos dos demais da região. As sociedades transplantadas, principalmente no Norte, tendem a ser mais igualitárias, enquanto as nações formadas através da escravidão e subjugação de indígenas e negros desenvolveram-se de maneira mais hierárquica e autoritária.

O desenvolvimento desigual criou uma polarização entre os povos transplantados desenvolvidos do Norte e as sociedades menos desenvolvidas do Sul, resultando em tensões e conflitos de interesse. Minorias europeias em áreas interioranas, como no Brasil e na Costa Rica, atuaram como agentes dinâmicos no desenvolvimento regional. Assim, a análise histórica e os diferentes processos de formação étnico-cultural elucidam a complexidade dessas sociedades, ressaltando a necessidade de uma compreensão aprofundada para explicar suas formas e desempenhos distintos.

Para explorar o desenvolvimento dos povos latino-americanos, é preciso analisar primeiramente os modelos industriais e o histórico de atrasos econômicos. O texto apresenta dois paradigmas para entender as trajetórias de sociedades desenvolvidas e as barreiras enfrentadas pelas regiões menos desenvolvidas. Com a Revolução Industrial, nações pioneiras na industrialização como Inglaterra, França, Países Baixos e Estados Unidos se tornaram potências dominantes, promovendo constelações imperialistas. Este avanço industrial foi acompanhado por três tipos de reordenação nas relações globais: a obsolescência dos vínculos coloniais, novas áreas submetidas ao colonialismo ou neocolonialismo, e a hierarquização entre nações industriais e dependentes.

A ruptura desse sistema se deu, inicialmente, pela Alemanha e Japão que se industrializaram seguindo um modelo capitalista tardio. Nações como Itália e países como Turquia, Brasil e Argentina tentaram seguir esse caminho mais tarde. Além do desenvolvimento capitalista tardio, emergiram outros modelos. Nações marginalizadas como Canadá, Austrália e Nova Zelândia avançaram industrialmente devido a isolamento econômico durante crises e guerras. Este progresso foi impulsionado principalmente pela exploração interna de recursos e oportunidades comerciais.

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O autor segue também analisando o modelo socialista, iniciado pela União Soviética, que rompe com o capitalismo industrial e propõe uma formação sociocultural nova. A União Soviética conseguiu industrializar-se rapidamente, inspirando outras nações como China e países do Leste Europeu a seguir um caminho semelhante de desenvolvimento acelerado. Além desses modelos, o texto discute duas variantes de reordenação sócio-econômica: países industrializados que enfrentaram crises adotaram políticas intervencionistas, e países subdesenvolvidos que se industrializaram capitalizando tensões internacionais, como Turquia, Brasil e Argentina, mas com resultados limitados. Por último, o modelo socialista revolucionário atrai nações atrasadas pelas altas taxas de crescimento e a capacidade de elevar grandes massas populacionais, como visto na União Soviética. Esse modelo destaca-se pela capacidade de acelerar a evolução social, transformando economias agrícolas em potências industriais. Esses diversos caminhos de desenvolvimento mostram esforços variados de nações para romper com a dominação imperialista e superar os desafios internos ao progresso econômico.

A Revolução Industrial gerou uma divisão entre povos avançados e atrasados, onde os retardatários não vivem uma fase evolutiva anterior, mas são intencionalmente mantidos em uma posição subserviente e dependente pelos países desenvolvidos. Esses povos subdesenvolvidos experimentam apenas os reflexos da modernização, sem integrar nossa tecnologia. A industrialização espontânea é dificultada pela auto-perpetuação do subdesenvolvimento, pela dominação das elites internas associadas a interesses estrangeiros, pela transferência de excedentes econômicos e pela intervenção política estrangeira que reforça a ordem estabelecida.

Essa situação resulta em uma modernização superficial, beneficiando uma minoria elitista e empobrecendo as massas. As tentativas de revolução e desenvolvimento autônomo, como no México e Bolívia, enfrentaram resistências e limitações. Casos como China e Japão mostraram que o desenvolvimento é possível com maior autonomia, enquanto outras nações permanecem estagnadas. A industrialização das nações subdesenvolvidas manteve-se distorcida e dependente de capitais estrangeiros, não conseguindo criar uma economia autônoma. O contraste é evidente quando comparado com os "povos transplantados" (EUA, Canadá, Austrália), que se desenvolveram sem as barreiras oligárquicas e com uma base mais democrática. A luta pelo desenvolvimento em países subdesenvolvidos mostra que a emancipação requer confrontar e superar tanto interesses internos quanto externos que perpetuam a ordem vigente, impedindo assim um desenvolvimento genuíno e autônomo.

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A obra "As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos", de Darcy Ribeiro, é magistral em sua complexidade e profundidade, abordando questões históricas, sociais e econômicas com uma clareza que ilumina as razões por trás do desenvolvimento desigual das sociedades americanas. A obra se destaca por sua capacidade de criticar tanto os esquemas conceituais acadêmicos quanto o marxismo dogmático, oferecendo uma abordagem mais holística e dinâmica.

Primeiramente, Ribeiro é hábil em contextualizar a história das Américas dentro de um panorama global, analisando como a expansão europeia, impulsionada pelas revoluções Mercantil e Industrial, redesenhou o mundo em conformidade com os interesses europeus. Esse contexto é fundamental para compreender a forma como os povos americanos foram subjugados e reconfigurados, perdendo autonomia e autenticidade cultural. Sua análise do impacto da tecnologia islâmica nas navegações ibéricas e nas técnicas de colonização demonstra uma profundidade rara, ao ligar diferentes pontos da história global em sua análise.

Além disso, a interação entre diferentes etnias - indígenas, africanas e europeias - é descrita de maneira detalhada e sensível, revelando como a miscigenação e a opressão moldaram a estrutura social e cultural das Américas. A maneira como Ribeiro aborda a formação das “sociedades espúrias” agrega uma camada significativa à compreensão dos efeitos de uma colonização violenta, enquanto destaca o esforço contínuo dos povos colonizados em reconstituir suas identidades culturais e formas de resistência.

Ribeiro também descreve brilhantemente os diferentes modelos de desenvolvimento seguidos por várias nações americanas, desde os pioneiros da industrialização até os esforços tardios e os modelos socialistas revolucionários. Esta parte do enredo é crucial para entender as disparidades atuais, e a comparação entre os "povos transplantados" e os povos subdesenvolvidos proporciona insights valiosos sobre as diferenças estruturais que persistem até hoje.

Finalmente, a metodologia dialética proposta no texto para explorar as desigualdades oferece uma nova perspectiva, crítica e evolutiva, que extrapola as limitações dos modelos tradicionais. A ideia de que o subdesenvolvimento é intencionalmente perpetuado e que a modernização real é apenas superficial para as massas é uma crítica contundente ao status quo, desafiando o leitor a reavaliar sua compreensão da história e dos atuais desafios socioeconômicos enfrentados pelas nações americanas. Em suma, "As Américas e a Civilização" de Darcy Ribeiro é uma obra-prima que transcende a simples narrativa histórica, fornecendo uma análise detalhada e crítica dos processos que moldaram as Américas, enquanto encoraja uma reflexão profunda sobre as possibilidades de futuro para as sociedades ainda lutando para superar seu passado colonial.

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