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Resenha: Doze dias, de Tiago Feijó

Imagem: Arte digital /Divulgação

APRESENTAÇÃO

Um pai e um filho que não se veem há quinze anos, separados por uma indiferença mútua e persistente, rompida apenas uma vez a cada ano, quando o pai telefona ao filho para felicitá-lo pelo seu aniversário. Mas o acaso tratará de pôr fim a este frio afastamento. Certa manhã, o senhor Raul acorda com uma estranha dor que o impede de se levantar da cama; sozinho e abandonado, não lhe resta outra alternativa senão ligar para o filho e lhe pedir ajuda. Antônio viaja duzentos quilômetros com o intuito de levar o pai ao hospital e retornar à mesmice de sua vida, mas o desenrolar dos fatos o mantém por doze dias no hospital, como único acompanhante do doente, na saga em que se transformará a enfermidade inesperada daquele seu desditoso progenitor. Nas palavras do narrador, “doze dias encavalados neste único e enormíssimo dia”. Neste romance de desbravamento dos medos e das dores do outro, estes dois personagens, durante os doze dias que permanecerão juntos, terão a derradeira oportunidade de se conhecerem a si mesmos e de se perdoarem um ao outro, numa jornada em busca do tempo perdido. A desconstrução do enredo, que salta de capítulo em capítulo para dias aleatórios, salienta e expõe o labirinto afetivo do qual somos todos feitos. Ao fim deste torvelinho varado em doze dias, nem o perdão nem a vingança estarão acima do milagre da aceitação do outro.

RESENHA

Imagem: Tiago Feijó / Ed. Penalux / Reprodução

Antônio, professor de língua portuguesa, estava planejando seus dias e aulas quando recebeu um pedido inusitado do pai por telefone: a urgência e incapacidade de se locomover devido a uma forte dor abdominal provocada por uma hemorroida. Ele pensa, relutante, e deixa um bilhete avisando para a mãe sobre sua viagem em auxílio ao pai adoentado, o que traz à tona inúmeras lembranças de sua infância no interior, em uma casa repleta de anotações de seu crescimento e desenvolvimento. Ele, por horas, transita entre os cômodos, relembrando todo o ar de nostalgia provocado pela casa, sem se dar conta de que aquela decisão mudaria os rumos de sua vida e de seu relacionamento com seu pai para sempre.

Antônio dorme exausto na poltrona de um quarto hospitalar enquanto seu pai, senhor Raul, acorda atormentado pela dor e tenta sair da cama, removendo os equipamentos médicos. Determinado a levantar-se, Raul enfrenta dificuldades devido à sua fraqueza, mas consegue pôr-se de pé, apenas para perceber sua vulnerabilidade. Ele chama por Antônio, que acorda confuso e tenta ajudar o pai, mas rapidamente compreende a gravidade da situação. Apesar dos esforços de Raul para convencer o filho de que estão liberados do hospital, Antônio chama as enfermeiras. Três delas vêm em socorro, mas Raul resiste, implorando para não ser amarrado. Antônio, desolado e sem saber como ajudar, acaba afastando-se e liga para pedir ajuda, mas não consegue verbalizar sua angústia, que culmina em um choro incontido e desesperado. A narrativa deixa clara a impotência e o sofrimento de ambos, resultando na intervenção das enfermeiras para cuidar de Raul e a desesperança de Antônio, que fica desolado no corredor do hospital. Em primeira instância, podemos perceber que Antônio se encontra arrependido da viagem, até revelando sua surpresa e insatisfação com sua mãe ao telefone, uma vez que seu pai jamais mantivera contato por quinze anos, exceto, claro, pela casualidade de um telefonema nos aniversários.

Os dias passam e Antônio vê seu pai cada vez mais debilitado, sofrendo de um quadro de fístula perianal com um abscesso rompido, agravado por cirrose e diabetes, o que complica o procedimento cirúrgico e torna os planos de retornar à sua cidade cada vez mais distantes. Apesar de tudo, é nítida a preocupação do filho com o quadro clínico do pai. Quando o pai, senhor Raul, acorda, ele e Antônio têm uma conversa breve e fria, marcando a distância emocional entre os dois. O pai pergunta sobre a casa e se Antônio regou as plantas, enquanto Antônio, cumprindo suas tarefas, mostra-se distante e relutante em expressar afeto. O relato termina com os dois presos em um silêncio incômodo, com Antônio questionando sobre as coisas da casa do pai e o pai, sem responder, bebendo água para evitar qualquer diálogo.

Antônio e seu pai, Raul, passam uma noite desconfortável e abafada em uma sala de espera no hospital, enquanto aguardam pelo atendimento de Raul, que está em condição grave. Após uma noite cheia de idas ao banheiro e preocupações, Antônio acorda na manhã seguinte cansado e sem paciência, vagando pela praça em frente ao hospital e tentando ler sem sucesso. Ao retornar, descobre que o pai foi levado para exames. Antônio aguarda ansioso até que os enfermeiros chegam para transferir seu pai para a clínica cirúrgica. No novo quarto, encontram o senhor Francisco e sua esposa, Teresa, surpreendentemente recuperados e cheios de vida, causando sentimentos mistos em Antônio e seu pai. Enquanto para Antônio isso traz uma sensação de esperança, para Raul, a recuperação de Francisco parece um mau presságio. Pouco depois, Raul é chamado para a cirurgia e, após um aperto de mão com o filho, é levado. O doutor José Pedro fala com Antônio no corredor, mas Teresa, sentindo um pressentimento ruim, observa inquieta. Quando Antônio retorna, seu rosto revela que há más notícias, confirmando os temores de Teresa.
 
Enquanto reflete sobre o passado e a figura paterna, Raul reconhece que não foi um bom pai, mas pede novamente para Antônio regar as plantas, alegando que elas precisam viver. Antônio quase cede à proposta, mas se dá conta da manipulação. Raul sugere que, se necessário, chamaria a irmã de Antônio, Alice, para cuidar dele, o que irrita ainda mais Antônio, já que Alice não está presente. A história segue abordando temas profundos como negligência, ressentimento e a busca pela redenção, além de explorar as dinâmicas familiares complicadas em tempos de doença e sofrimento.

Raul então começa a se questionar sobre o motivo de nunca ter conseguido construir um amor duradouro e se entrega a lembranças dolorosas, especialmente de um caso com a amiga de Noemi, que levou ao fim de seu casamento. Agora, ele se vê dominado por um sentimento de arrependimento e saudade do que nunca viveu. Os momentos finais da partida de Francisco e Teresa são marcados por despedidas afetuosas e palavras de fé. Após a saída do casal, Raul e seu filho Antônio sentem um vazio profundo. Raul enfrenta um misto de agonia e raiva ao saber da visita de familiares no domingo, demonstrando seu rancor e resistência a qualquer forma de reconciliação ou compaixão. Este dilema moral e emocional é exacerbado pelo estado deteriorado de Raul, tanto físico quanto mental. Raul, em meio a delírios, acredita que Antônio quer se vingar por falhas passadas e insiste que ele traga sua irmã, Alice, para uma última visita. Ao tentar processar esses acontecimentos, Antônio é assaltado por sentimentos conflitantes de culpa e compaixão. No final, Raul confunde uma enfermeira com Alice e, mesmo delirante, continua suplicando por um copo d'água. A narrativa explora o tema do desespero humano frente à impotência e à inexorabilidade da morte.

Na improvisada UTI onde Antônio e seu pai, Raul, estão há quase três dias, a primeira luz do dia surge. Raul, atento ao que deixará após a morte, lamenta sua herança insignificante – bares, amigos, contas, amores perdidos, objetos triviais e memórias dolorosas. Ele questiona Antônio sobre o que deixará de lembrança, refletindo sobre seus erros e acertos. Em um gesto de vulnerabilidade, Raul revela uma grave deformidade física. Desesperado, pede a Antônio que lhe prometa não deixá-lo morrer no hospital, mas sim levá-lo de volta para seus locais de vida, como a praça, a rua ou o bar. Antônio, atordoado, faz a promessa, embora saiba que é impraticável cumpri-la.

A história segue girando em torno de um Natal melancólico vivido em uma cidade interiorana, onde as ruas estão cheias de pessoas comprando presentes, e as iluminadas decorações espalham uma ilusória sensação de felicidade e abundância. No entanto, o foco se volta para os irmãos Antônio e Alice e o bebê Bento, que estão em frente ao hospital onde o pai adoece gravemente na UTI. Alice faz a primeira visita ao pai, levando uma carta e sapatinhos de lã que nunca serão usados. Ela se emociona, mas mantém o choro silencioso para não incomodar o pai. Posteriormente, é a vez de Antônio, que inicialmente hesita, mas depois de entrar e ver seu pai, sente uma compaixão universal. Ele também deixa um talismã com o pai e se despede em silêncio. Ao retornarem e observarem a movimentação natalina e a chegada de uma jardineira decorada como trenó de Papai Noel, os irmãos se consolam, conscientes da proximidade da morte do pai. Alice sugere que voltem para casa. Antônio, após levar a irmã e o sobrinho para casa, decide passar a noite na casa da infância, refletindo sobre as sombras e os silêncios deixados pela ausência do pai, antes de cair em um sono exausto e profundo.

A história se finaliza com um enredo repleto de nostalgia. A atmosfera evocada pelo personagem-protagonista é de missão cumprida, saudade, tristeza e satisfação em concluir os últimos desejos do pai. A história criada por Feijó é um misto de emoções entre idas e vindas das memórias e lembranças de uma vida tortuosa vivida por uma família distante emocionalmente, com fortes tendências narcisistas do pai, o que o afastou de seus filhos. A iniciativa do pai em buscar uma redenção por meio do perdão dos filhos é uma válvula forte que revela que estamos sempre prontos para ir, mas sempre receosos sobre nosso legado, no caso, a ausência de afetividade familiar. Os momentos no hospital e as inúmeras visitas de amigos, parentes, filhos e netos são uma reflexão à parte, que transformam todo nosso emocional em um caminho vasto de sentimentalismo, trabalhando com proeza o sentimento de perdão evocado nas páginas. Um enredo poderoso e merecedor de diversos prêmios.

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