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Resenha: A caminho de macondo, de Gabriel García Marquez


APRESENTAÇÃO

A caminho de Macondo convida os leitores a mergulhar no processo de criação do universo mítico de Cem anos de solidão, uma das maravilhas da literatura latino-americana. Esta antologia reúne todos os textos publicados por Gabriel García Márquez nos quais a mágica Macondo foi tomando forma e que marcam o prelúdio da escrita de sua obra-prima.

 

Gabriel García Márquez argumentou em várias ocasiões que primeiro era preciso aprender a escrever um livro e só depois encarar a página em branco. Foram quase vinte anos “vivendo” em Macondo para que aprendesse a escrever sua obra-prima Cem anos de solidão. Nesta antologia, os leitores encontrarão as publicações que precedem a escrita de sua obra mais célebre e que ilustram a gênese da mítica cidade.

A caminho de Macondo reúne desde os textos seminais de 1950 a 1954, publicados inicialmente em colunas de jornais e revistas — alguns com a indicação “Apontamentos para um romance” —, até o conteúdo integral das obras A revoada (O enterro do diabo), de 1955, Ninguém escreve ao coronel, de 1961, Os funerais da Mamãe Grande, de 1962, e O veneno da madrugada (A má hora), de 1966, que marcam o prelúdio efervescente de Cem anos de solidão.

Com prefácio da jornalista premiada Alma Guillermoprieto e nota editorial de um especialista na obra do autor, Conrado Zuluaga, esta coletânea nos introduz ao ciclo macondiano e nos guia por personagens, cenários e cheiros que viriam a compor uma das grandes maravilhas da literatura latino-americana, escrita pelo autor colombiano vencedor do Prêmio Nobel e grande mestre do realismo mágico.

RESENHA

"A Caminho de Macondo" é uma fascinante antologia que traça a trajetória literária de Gabriel García Márquez, revelando os passos que o levaram à criação de sua obra-prima, "Cem anos de solidão". Organizada de forma a apresentar textos variados, que vão desde contos iniciais até esboços que mais tarde se transformariam em personagens icônicos, a coleção oferece uma visão íntima do processo criativo do autor.

García Márquez sempre enfatizou a importância do aprendizado contínuo e da vivência antes da escrita. Nesta antologia, o leitor tem a oportunidade de acompanhar essa jornada, que se estende por quase duas décadas de imersão em Macondo, um espaço que se tornaria sinônimo de realismo mágico. Através de relatos e reflexões, o autor revela como sua experiência pessoal, suas interações com o mundo ao redor e suas observações da realidade latino-americana moldaram sua narrativa.

Os textos incluídos são uma janela para a mente do escritor em formação, onde já se percebem elementos que se tornariam características marcantes de sua obra: as descrições vívidas, as atmosferas carregadas de simbolismo e a complexidade das relações humanas. Momentos de humor, tristeza e reflexão permeiam as páginas, oferecendo ao leitor uma paleta rica que antecipa o que está por vir em "Cem anos de solidão".

Uma das grandes forças de "A Caminho de Macondo" é a habilidade de García Márquez em capturar a essência do cheiro, do som e da cor, criando um ambiente que parece pulsar com vida. O autor não apenas narra, mas convida o leitor a experimentar o que é ser parte desse universo mágico e frequentemente caótico. Os cheiros, em particular, são uma constante em sua obra, evocando memórias e sentimentos que se entrelaçam com a narrativa. Além de ser um deleite para os fãs de García Márquez, essa antologia serve como uma excelente introdução ao seu trabalho para novos leitores. O livro não apenas contextualiza a criação de "Cem anos de solidão", mas também ilumina os processos de um dos maiores escritores do século XX, oferecendo uma perspectiva sobre como histórias e personagens podem emergir de uma rica tapeçaria de experiências.

O conto 'a casa dos buendía' narra o retorno de Aureliano Buendía ao seu povoado após o fim da guerra civil, onde ele e sua esposa se deparam com a devastação de sua antiga casa. Embora restem apenas as lembranças da casa dos Buendía e as cinzas de seu quintal, uma amendoeira começa a brotar entre os escombros, simbolizando a vida que persiste mesmo após a destruição. Aureliano recorda não apenas a claridade e os sons da antiga residência, mas também os cheiros e silêncios que a caracterizavam. Dona Soledad, ao revirar a terra, encontra um são Rafael de gesso quebrado e um copo de lamparina, que se tornam parte da nova construção da casa, erguida sem planejamento, mas com um sentido de continuidade em relação ao passado. A construção é realizada em um espaço que ainda conserva a frescura e o silêncio do antigo quintal, refletindo uma conexão com a memória familiar e a esperança de um novo começo. Assim, a nova casa, com seus pilares e estrutura, se torna um local que abriga tanto as lembranças do passado quanto a expectativa de um futuro mais pacífico.

O conto "A Filha do Coronel" apresenta a relação entre Remédios e seu pai, o coronel Aureliano Buendía, em um ambiente marcado pela distância emocional e pela rigidez da vida familiar. A história se passa na igreja, onde o coronel ocupa uma cadeira reservada, e sua filha, Remédios, se ajoelha ao seu lado. Inicialmente, Remédios não compreende a dinâmica do culto e fica em pé durante o sermão, até que aprende a se acomodar no banco da frente.

À medida que cresce, Remédios começa a entender mais sobre o mundo ao seu redor e a complexidade da vida em seu povoado. Após uma longa ausência de comunicação direta com o pai, ela o reencontra em um momento de revelação durante uma missa, quando ouve cânticos que a emocionam profundamente. Nesse instante, a conexão que faltava entre pai e filha se torna evidente, e Remédios finalmente vê seu pai como um ser humano vulnerável, não apenas como uma figura autoritária. Através da música, ela percebe a ausência de comunicação em sua vida e a razão pela qual seu pai nunca lhe dirigira a palavra. Essa realização a faz refletir sobre o relacionamento deles, levando-a a entender que o silêncio entre eles era uma forma de comunicação não verbal, baseado em expectativas e normas familiares. O momento culminante na igreja marca uma transformação em Remédios, que, a partir desse dia, começa a crescer apressadamente, simbolizando uma nova fase em sua vida e na compreensão de sua identidade e do papel de seu pai.

"O Filho do Coronel" narra a relação tensa entre o coronel Aureliano Buendía, sua esposa Dona Soledad e seu filho Tobias, que enfrenta problemas com o alcoolismo. O coronel espera Tobias em casa, mas o rapaz frequentemente desaparece, retornando apenas quando a fome se torna insuportável. Dona Soledad, preocupada com o filho, observa sua luta interna e o padrão de retorno à casa somente em busca de comida.

A história retrata a dor e a frustração da família, especialmente de Dona Soledad, que, mesmo mantendo esperança de que Tobias mude, percebe que seu comportamento reflete uma espiral descendente. O coronel, por sua vez, demonstra uma atitude cínica, acreditando que Deus não faz milagres com bêbados, e parece resignado à situação do filho. Quando Tobias finalmente retorna após um período de ausência, ele entra em casa de forma descontrolada, demonstrando seu estado de desespero e vulnerabilidade. A cena se intensifica quando Dona Soledad tenta confortá-lo, mas Tobias, em sua raiva e dor, resiste a qualquer ajuda. O clímax ocorre quando ela o agarra, tentando convencê-lo a ficar, pelo menos até que ele coma um pedaço de carne, simbolizando um desejo de nutrir não apenas seu corpo, mas também sua alma.

"O Regresso de Meme" narra a transformação de Meme, uma mulher que havia sido criada na casa da família, ao retornar à igreja após um período de ausência. A história é contada pela perspectiva de um narrador que observa com estranheza a nova versão de Meme, que aparece vestida de maneira extravagante, com saltos altos, uma roupa de seda estampada e um chapéu decorado com flores artificiais. Essa mudança na aparência a torna quase irreconhecível, contrastando com a simplicidade com que sempre foi vista em casa.

Durante a missa, Meme se comporta de maneira afetada e diferente do que era antes, atraindo a atenção e a curiosidade dos presentes, tanto aqueles que a conheciam como criada quanto os que nunca a tinham visto. O narrador fica intrigado com sua nova postura e se pergunta sobre seu desaparecimento e o que teria acontecido para que ela retornasse dessa forma. Ao final da missa, Meme sai da igreja e é cercada por um grupo de pessoas que a observam com uma mistura de admiração e ridículo. Nesse momento, seu pai, que a sustentou por anos, a toma pelo braço e a conduz pela praça com uma atitude de desdém, ciente de que a aparência de Meme não é bem recebida pelos outros. Esta cena destaca a tensão entre a nova identidade que Meme tenta assumir e as expectativas sociais que a cercam, além de refletir sobre as complexidades das relações familiares e sociais.

O "Monólogo de Isabel Vendo Chover em Macondo" descreve a experiência de Isabel durante um intenso período de chuva em Macondo, que começa de maneira revitalizante após um longo verão seco, mas rapidamente se transforma em uma situação opressiva e devastadora. A narrativa inicia-se com a alegria inicial de Isabel e sua madrasta ao ver a chuva, que traz frescor e renova a vegetação. No entanto, conforme as chuvas persistem, a atmosfera muda, e a alegria se transforma em um sentimento de entorpecimento e desespero. Isabel observa a transformação do ambiente e das pessoas ao seu redor, incluindo seu pai e a madrasta, que passam de uma sensação de esperança para uma apatia diante da contínua chuva. A casa começa a inundar, e o clima torna-se pesado e triste, refletindo a desolação que se instala na vida cotidiana. Isabel também menciona a presença de uma vaca no jardim, simbolizando a resistência à mudança e a impotência diante da força da natureza.

"Um Homem Vem na Chuva" narra a experiência de uma mulher que, ao ouvir a chuva, rememora o passado e a expectativa de um visitante. Em um dia tempestuoso, ela sente a presença de um homem que frequentemente imaginou, mas que nunca chegava a bater à sua porta. Com o tempo, ela aprendeu a identificar os sons da chuva e a substituir a esperança de sua chegada por lembranças nostálgicas de momentos passados, como ensinamentos e canções. Certa noite, a mulher percebe que o homem realmente chegou: ele bate à porta e entra. A cena é carregada de ansiedade, e a mulher observa como ele se apresenta, com um olhar familiar que a faz lembrar de pessoas queridas do passado. Enquanto isso, a outra mulher na casa se prepara para recebê-lo, e o clima de expectativa se intensifica.

A maestria de Márquez em entrelaçar essas histórias é uma celebração da vida e da resistência, onde cada personagem, em sua busca por significado e conexão, reflete a condição humana em toda sua complexidade. A obra é um convite à reflexão sobre como as memórias e as experiências passadas moldam nosso presente e nos preparam para o futuro. Com sua prosa poética e rica em simbolismo, o autor nos brinda com uma leitura que ressoa profundamente, deixando uma marca indelével na literatura contemporânea.

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