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Resenha: O estado dual: uma contribuição à teoria da ditatura, de Ernst Fraenkel



SOBRE

"O livro (...) é uma análise e interpretação do Estado Nacional-socialista, mas é também, pelas questões teóricas que suscita, pelos instrumentos conceituais a que recorre e pelas soluções propostas, uma notável contribuição à Teoria Geral do Estado Moderno." Norberto Bobbio

"Uma etnografia do direito elaborada nas circunstâncias mais adversas, O Estado Dual é um dos livros mais eruditos sobre ditadura já escritos." Jens Meierhenrich

"Talvez não exista explicação mais consistente, com rara sofisticação argumentativa para quem observa sistemas judiciais e suas relações com a normatividade em momentos de erosão democrática. A obra de Fraenkel significa muito porque procura recuperar a relevância da estabilidade democrática normativa, a qual deve sempre ser preservada. O que não significa ilusão alguma com a sempre presente tentação de extinguir esta mesma normatividade." Martonio Barreto Lima e Lenio Luiz Streck

Fraenkel é responsável por cunhar o conceito de “estado dual”, configurado em duas metades, uma “normativa”, que respeita as próprias leis e, outra, chamada de “prerrogativa”, que as viola continuadamente. De uma atualidade assombrosa, o livro foi e segue relevante nos debates do pós-guerra e na análise do Terceiro Reich.

A edição da Editora Contracorrente, com tradução primorosa de Pedro Davoglio, é uma imprescindível fonte de estudos nas áreas do direito, da história, da sociologia e da ciência política. Além da ampla introdução de Jens Meierhenrich, à edição brasileira acrescentou-se a introdução à edição italiana, de 1983, escrita por Norberto Bobbio.

RESENHA

A obra O Estado Dual de Ernst Fraenkel se destaca como um clássico na literatura que analisa o regime jurídico e político do Terceiro Reich, revelando a complexidade do sistema nazista. Escrito durante a vigência do regime, o livro passou por diversas etapas antes de sua publicação, começando em inglês e posteriormente sendo traduzido para o alemão, a língua natal do autor. Fraenkel, um intelectual judeu e ativista social-democrata, enfrentou inúmeras dificuldades ao escrever, incluindo a proteção de informações sensíveis em um ambiente de repressão constante.

Sua trajetória pessoal é marcada pela perseguição política, que o levou a emigar para os Estados Unidos em 1938. Essa experiência se entrelaça com sua produção intelectual, refletindo as injustiças e os desafios que presenciou ao longo de sua vida. A obra não apenas analisa o regime nazista, mas também investiga a natureza do poder e da justiça, destacando a coexistência de um "Estado de normas" e um "Estado de medidas". Essa dualidade emerge como uma característica estrutural do sistema político nazista, onde as instituições estatais e partidárias coexistem em um equilíbrio instável, evidenciando a complexidade e a arbitrariedade que definem o regime.

Fraenkel argumenta que o "Estado de normas" é fundamentado em uma burocracia formal, enquanto o "Estado de medidas" simboliza a aplicação do poder de forma arbitrária e discrecional, dificultando a realização de uma verdadeira justiça. Essa análise crítica revela a profunda compreensão de Fraenkel sobre as dinâmicas de poder que moldaram a sociedade alemã durante um dos períodos mais sombrios de sua história. A recepção da obra ao longo dos anos é também um ponto importante, com reações variadas de contemporâneos e a evolução de suas ideias em resposta às mudanças sociais e políticas. Fraenkel é apresentado como um pensador que, mesmo com sua formação acadêmica, permaneceu conectado à realidade do povo, buscando entender e documentar as injustiças de seu tempo. 

A narrativa reflete sobre a durabilidade da obra de Fraenkel, que, apesar dos desafios enfrentados e da resistência que encontrou, continua a ser uma contribuição significativa para a compreensão da política e do direito, especialmente em contextos de autoritarismo. A importância de "O Estado Dual" se estende além de sua época, ressoando com questões contemporâneas sobre poder, justiça e ética na política. Assim, a obra de Fraenkel transcende a mera análise acadêmica, funcionando como um testemunho vívido de um período histórico sombrio, que ainda carrega lições e provocações relevantes para as sociedades atuais, convidando os leitores a refletirem sobre os perigos do autoritarismo e a importância da justiça e da ética na governança.

O primeiro capítulo de O Estado Dual de Ernst Fraenkel, intitulado "O Estado de Medidas", aborda a constituição do Terceiro Reich, que se fundamenta no estado de exceção. A "Ordem de Necessidade para a Proteção do Povo e do Estado", promulgada em fevereiro de 1933, é apresentada como a base dessa nova constituição, que subtraiu a vida política alemã ao império da lei. Neste contexto, as decisões do Estado não seguem critérios jurídicos ou a busca pela justiça, mas visam exclusivamente as metas políticas do regime.

Fraenkel argumenta que o setor político do Terceiro Reich representa um vácuo jurídico, onde não há normas públicas vinculativas, apenas medidas situacionais. A ideia de uma "revolução legal" promovida pelos nazistas contrasta com a realidade de um golpe de Estado ilegal, sustentado por ações como o nomeação de Hitler como chanceler e a promulgação da Lei de Plenos Poderes. O autor destaca que, ao obterem poderes excepcionais, os nazistas transformaram uma ditadura provisória em uma ditadura permanente e anticonstitucional. A Constituição de Weimar permitia ao presidente decidir sobre a adoção de medidas necessárias para restabelecer a ordem, mas isso foi explorado pelos nazistas para justificar sua ascensão ao poder.

Além disso, Fraenkel discute a natureza das competências no regime, onde o Führer exerce uma ditadura soberana sem necessidade de justificativas. A relação entre o Estado e o Partido é ambígua, e as decisões políticas são tomadas sem uma clara divisão de competências, levando a um estado de medidas que se sobrepõe ao Estado de normas. O autor também analisa como a jurisprudência e as decisões judiciais foram moldadas pelo regime, revelando a dissolução do Estado de direito. Os tribunais frequentemente afirmavam a validade das ações do Estado, mesmo quando eram evidentemente ilegais, e a polícia tinha liberdade para agir sem controle judicial. Em suma, o capítulo apresenta uma crítica profunda ao funcionamento do Terceiro Reich, destacando a transformação do Estado em um sistema onde a legalidade foi substituída pela arbitrariedade, e onde a figura do Führer se tornou sinônimo de "ordem", deslegitimando qualquer noção de Estado de direito.

O segundo capítulo intitulado "Os Limites do Estado de Medidas", explora como o sistema jurídico do Terceiro Reich está à disposição das instâncias políticas. Embora existam normas que regem a vida pública e privada, o estado de exceção se tornou uma constante, permitindo a criação de exceções às leis normais. Fraenkel afirma que a soberania dos detentores do poder político se baseia na capacidade de decidir em situações de exceção, e que essa soberania lhes permite reclamar qualquer matéria como "política". O autor menciona a distinção entre relevância política atual e potencial, destacando que, mesmo em esferas consideradas apolíticas, as instâncias políticas podem decidir que essas questões têm relevância política e, portanto, devem ser tratadas sob o estado de medidas. A autolimitação do Estado de medidas é um aspecto importante, pois, embora sua competência seja teoricamente ilimitada, na prática existem limites que surgem da necessidade de sua própria legitimidade.

Fraenkel traz exemplos de decisões judiciais que ilustram essa dinâmica, como a negativa de licenças urbanísticas sem a necessidade de justificar a decisão, evidenciando a prevalência do estado de medidas sobre o estado de normas. O capítulo também discute como a jurisprudência tentou manter a primazia do direito, mas frequentemente se viu subserviente às exigências do regime. Em suma, o capítulo retrata como o Terceiro Reich utilizou o estado de medidas para deslegitimar o estado de direito, permitindo que o poder político atuasse de forma arbitrária, enquanto a vida social era regulada de maneira limitada e sob a constante ameaça de exceções legais. A análise de Fraenkel destaca a complexidade e a intersecção entre o estado de normas e o estado de medidas, além de questionar a verdadeira natureza do direito sob o regime nazista.

O terceiro capítulo intitulado "O Estado Normativo", examina a relação entre o Estado de normas e o Estado de medidas, enfatizando a interdependência entre ambos dentro do contexto do Terceiro Reich. Fraenkel argumenta que, embora o Estado de normas exista, ele é constantemente ameaçado pela reserva de oportunidade política do Estado de medidas, que pode decidir a qualquer momento sobre questões que deveriam ser reguladas por normas jurídicas.

Ele menciona Carl Bilfinger, que discute a ideia de que a legitimidade das normas pode ser suspensa em situações que ameaçam a segurança do Estado. A relação entre administração e governo é explorada, destacando que, no regime nazista, o governo não é apenas um executor das leis, mas exerce um controle absoluto, muitas vezes à margem do ordenamento jurídico.

O capítulo também aborda como o Estado de medidas influencia a prática administrativa, levando a uma ampliação da discricionariedade das autoridades, o que pode resultar em arbitrariedade. Apesar disso, os tribunais tentam manter a integridade do Estado de normas, garantindo princípios como a liberdade de empresa e a inviolabilidade dos contratos, mesmo quando sob pressão política.

Fraenkel argumenta que a existência do Estado de normas não se deve a uma força externa, mas sim à penetração da ideologia nazista no sistema estatal. Ele discute a forma como os tribunais têm lidado com questões relacionadas a direitos de propriedade, liberdade de concorrência e o tratamento de cidadãos judeus, mostrando que, enquanto os direitos dos arianos são garantidos, os judeus são sistematicamente excluídos da proteção legal. O autor conclui que, apesar da pressão do Estado de medidas, ainda existem princípios do Estado de normas que os tribunais tentam preservar, embora sua eficácia esteja em constante risco devido à ideologia totalitária e às práticas discriminatórias do regime nazista. O Estado de normas, portanto, é visto como um complemento necessário ao Estado de medidas, mas sua sobrevivência está ameaçada pela arbitrariedade e pela ideologia racista do nacionalsocialismo.

A Parte II do livro, que aborda a teoria jurídica do Estado dual, inicia-se no Capítulo I com o "Rejeição do Direito Natural Racional pelo Nacional-socialismo". O autor argumenta que a eliminação da inviolabilidade do direito caracteriza o Estado de medidas, o que implica que esse princípio fundamental não se aplica ao ordenamento jurídico como um todo. Fraenkel menciona Gustav Radbruch e Carl Bilfinger, que discutem a relação entre direito e política, destacando que a segurança do Estado pode justificar a suspensão de normas jurídicas.

Fraenkel explica que, no regime nazista, o direito não é visto como uma construção universal, mas como um reflexo das necessidades da comunidade racial, conforme afirmado por Hitler. A justiça, segundo essa visão, não é um sistema de valores abstratos, mas sim uma certeza que o povo constrói sobre si mesmo. O autor critica a ideia de que o direito natural é irrelevante e argumenta que essa rejeição é uma continuação de um movimento que já estava em curso antes da ascensão do nazismo.

O capítulo também aborda como a ideologia nazista nega a tradição do direito natural e a substitui por uma visão que considera a desigualdade entre os homens, baseada em critérios raciais. A partir da "Lei de Plenos Poderes" de 1933, o regime nazista se tornou um poder absoluto, desprezando a ideia de que a vontade do governante deve estar subordinada a normas jurídicas. Fraenkel conclui que, ao rejeitar o direito natural e a tradição da ética ocidental, o nacional-socialismo não se posiciona como um projeto moderno, mas como uma negação completa da filosofia e dos valores que sustentam a cultura ocidental. Essa perspectiva revela as fundações ideológicas do regime, que se afastam da noção de um Estado de direito, promovendo uma visão totalitária e autoritária do poder.

O Capítulo, A Luta do Nacional-socialismo Contra o Direito Natural, aborda o conflito entre as tradições do direito natural e a ideologia nacionalsocialista. Fraenkel argumenta que o nacional-socialismo rejeita completamente o direito natural, especialmente a sua vertente cristã, que sempre teve um papel significativo na formação da legislação e da ética na Europa ocidental.

O autor menciona o trabalho de Ernst Troeltsch, que destaca a importância do contexto religioso na evolução do direito natural. Ele explica que, embora diferentes seitas cristãs tenham adotado visões variadas sobre o direito natural, nenhuma delas chegou a rejeitá-lo radicalmente. O luteranismo, por exemplo, aceitou a ideia de que o direito é afetado pelo pecado, promovendo a obediência aos regimes, mesmo que injustos.

O capítulo também discute a relação entre o nacional-socialismo e as ideologias de direito natural, afirmando que o nacionalsocialismo não se sente vinculado a essas tradições e, em vez disso, fundamenta-se em valores raciais e na utilidade política. Hitler e outros teóricos nazistas defendem que o direito só pode ser reconhecido se estiver alinhado com os objetivos do povo ariano.

Fraenkel critica a ideia de que o nacionalsocialismo possa ser considerado um movimento moderno, destacando que a negação do direito natural e a rejeição de valores absolutos geram novos inimigos e um movimento de resistência entre aqueles que defendem princípios de justiça. Ele também menciona que, embora a ideologia nazista tenha uma forte aversão ao direito natural, ela não pode ignorar completamente as tradições que moldaram a cultura alemã. O autor conclui que, ao rejeitar o direito natural, o nacional-socialismo não apenas nega as tradições éticas da cultura ocidental, mas também estabelece um regime de autoridade ilimitada que colide com a noção de justiça e direitos humanos universais. A luta contra o direito natural, portanto, é central para a compreensão do regime nazista e suas implicações para a sociedade e a política da época.

O Capítulo, Nacional-socialismo e Direito Natural Comunitário, discute o conflito entre o nacional-socialismo e as tradições do direito natural, destacando a rejeição do direito natural racional pelos nazistas. O autor, Ernst Fraenkel, explica que essa rejeição gera resistência entre grupos que ainda valorizam o direito natural, porém, aponta que a definição de "direito natural" é ambígua, envolvendo conceitos que variam ao longo da história.

Fraenkel diferencia entre o "direito natural societário", que se baseia na razão e na individualidade, e o "direito natural comunitário", que é irracional e se fundamenta na biologia e na ideia de raça. O nacional-socialismo, ao adotar uma perspectiva biológica, rejeita ideais racionalistas e propõe um conceito de justiça que prioriza a homogeneidade racial e a proteção da comunidade.

O autor menciona pensadores como Leibniz e Carl Schmitt, que exploraram a ideia de que o direito deve ser entendido em relação à comunidade. O nacional-socialismo, segundo Fraenkel, busca legitimar a sua visão de direito natural comunitário como base para a política interna e internacional, enfatizando a importância da homogeneidade racial e cultural.

Fraenkel também explora como o direito natural comunitário se conecta com a política do estado de exceção, onde o poder político é justificado por necessidades comunitárias e raciais. Ele critica a ideia de que a justiça pode ser separada do contexto político, afirmando que no regime nazista, a "verdade" é definida em função dos interesses do partido. O capítulo conclui que a rejeição do direito natural racional e a imposição de uma visão comunitária e biológica do direito são fundamentais para entender o regime nazista e sua ideologia, destacando a falta de uma tradição de direito natural absoluto na Alemanha, o que permitiu a ascensão de tais ideias.

No Capítulo, O Estado Dual em Perspectiva Histórico-Jurídica, Ernst Fraenkel examina a complexidade do Estado dual sob a perspectiva histórica e jurídica, enfatizando as tensões entre o nacional-socialismo e as tradições do direito.

O autor destaca que o regime de Hitler provoca reações diversas, incluindo críticas de cidadãos que, apesar de se oporem à arbitrariedade do regime, admitem a ideia de comunidade promovida pelo nacional-socialismo. Fraenkel argumenta que essa ambivalência é problemática, pois a ideologia comunitarista do regime é uma fachada para uma estrutura social capitalista que permanece intacta, e essa exaltacão da comunidade facilita os métodos arbitrários do Estado de medidas.

Fraenkel diferencia entre o "Estado dual" e o "Estado dualista", enfatizando que o primeiro é caracterizado por uma única estrutura organizativa, enquanto o segundo se baseia em compromissos entre as classes sociais e o Estado. O autor explora também a história do Estado dual em Prússia e na Alemanha, discutindo como o absolutismo monárquico e a burocracia se interrelacionaram com a estrutura social e jurídica do período.

A evolução do direito na Alemanha, desde o absolutismo iluminista até a Revolução de 1848, é analisada, mostrando como os interesses da nobreza e a ascensão da burguesia influenciaram a dinâmica do poder e do direito. A Revolução Francesa é identificada como um ponto de ruptura, levando ao distanciamento das elites do direito natural, enquanto a burocracia estatal se afirmava como a força dominante. Fraenkel conclui que, embora a Revolução de 1918 tenha abolido o dualismo formal do Estado, a influência das classes dominantes e a luta pelo poder político continuaram a moldar a estrutura do Estado, culminando no surgimento do nacional-socialismo, que busca restaurar um Estado autoritário que se alinha mais com as tradições do absolutismo do que com um sistema democrático baseado no Estado de direito. O autor sugere que o nacional-socialismo é uma continuidade da política do Partido de Patria e que a mobilização política do regime reflete a busca por um poder forte e centralizado que ignora as lições da história recente.

O capítulo, Os Fundamentos Econômicos do Estado Dual, e destaca a importância de entender a estrutura econômica do regime nacionalsocialista para compreender sua natureza dual. O autor ressalta que, apesar das transformações no sistema econômico alemão, este ainda mantém um núcleo capitalista, mesmo que sob uma nova fase que se entrelaça com o modelo do Estado dual.

O texto observa que, antes da ascensão dos nazistas, a economia era caracterizada por um capitalismo privado, mas organizado, com características monopolistas e intervenções estatais. O modelo de capitalismo competitivo liberal já não se aplicava, e o que prevalecia era um capitalismo "organizado", sustentado por tarifas e subsídios do Estado. Durante a crise econômica global, o controle estatal sobre a economia aumentou, evitando falências no setor bancário e em outras indústrias.

Fraenkel argumenta que a política econômica do Estado dual é uma continuação do capitalismo "organizado" do período de Weimar, onde a propriedade privada foi respeitada, exceto no caso dos judeus. As intervenções estatais limitaram o direito de propriedade, mas a propriedade privada ainda era fundamental para a sobrevivência do capitalismo. O autor analisa como a política econômica nacionalsocialista buscou reinserir os desempregados na economia, especialmente através do programa de rearme, que se tornou um objetivo central do regime.

Além disso, o autor discute a relação entre o Estado de normas e o Estado de medidas, afirmando que o primeiro atua como o marco jurídico da propriedade privada, enquanto o segundo não exerce uma função de controle real, mas sim uma função limitadora e de apoio indireto. O Estado de medidas, com suas ameaças e sanções, era mais forte que o Estado de normas, pois impunha um clima de temor que inibia riscos por parte dos empresários. Em resumo, o autor conclui que a política econômica do nacionalsocialismo estava profundamente enraizada no fortalecimento do poder do Estado e na proteção dos interesses capitalistas, resultando em um sistema que, embora mantivesse a propriedade privada, operava sob um controle estatal intenso que limitava a liberdade econômica e os direitos dos trabalhadores.

O capítulo "A Sociologia do Estado Dual" explora a complexa relação entre a estrutura social e econômica do regime nacionalsocialista na Alemanha. O autor começa referenciando Ferdinand Tönnies, que distingue entre "comunidade" e "sociedade", argumentando que a civilização ocidental se move da comunidade para a sociedade. Ele menciona a crítica de Alfred von Martin, que questiona se a comunidade pode ressurgir em um contexto social avançado, e destaca que o nacionalsocialismo se apoiou inicialmente em forças que buscavam uma organização social baseada em princípios comunitaristas.

Fraenkel observa que, embora o nacionalsocialismo tenha tentado criar um "espírito de comunidade" nos centros de trabalho, na prática, isso falhou. As SA e as SS foram tentativas de instigar esse espírito, mas as transformações sociais e econômicas exigidas pela industrialização e militarização aceleradas tornaram essa idealização insustentável. O autor argumenta que a tentativa de conectar os centros de trabalho com a ideologia comunitarista se baseava em uma ficção, já que as relações sociais eram regidas por interesses capitalistas.

Além disso, Fraenkel analisa o conceito nacionalsocialista de "comunidade popular", que surgiu como uma resposta à derrota da Primeira Guerra Mundial e à miséria da pós-guerra, enfatizando que essa consciência de comunidade é alimentada pela crença em um inimigo externo. O autor destaca a necessidade de um "complexo de inimigo" para manter unida a comunidade popular, o que resulta em uma política que justifica abusos contra grupos considerados "não conformes". O capítulo conclui que a ideologia nacionalsocialista, ao promover a ideia de comunidade, muitas vezes se contrapunha à racionalidade substancial. O capitalismo alemão, ao reconhecer sua irracionalidade, se alinha com os objetivos nacionalsocialistas, resultando em uma simbiose que se manifesta na forma do Estado dual. Essa dualidade reflete as tensões sociais e políticas da época, e a resolução dessas tensões é uma questão crucial para o futuro.

O autor finaliza a obra com um capítulo dedicado à um anexo que aborda um caso específico no Tribunal de Trabalho do Reich, intitulado "Delatowsky e outros contra a Nova Caixa Alemã de Enterramentos". O autor, atuando como advogado, representa antigos empregados que reclamam indenizações por demissões, com base em um acordo coletivo de 1932 que a empresa negava ter sido formalmente estabelecido. As dificuldades probatórias se intensificam devido à falta de acesso à documentação e à perda de memória de testemunhas.

O autor relata como, após a negativa do tribunal em primeira instância, um informante do Frente Alemão do Trabalho oferece um documento que comprova a existência do acordo, levando a um novo julgamento. Apesar de uma sentença inicial desfavorável, o tribunal reconhece a possibilidade de ação de restituição dos valores devidos.

O autor também narra outro caso, "O Caso do Queijo Rancio", onde um judeu é detido por supostamente injuriar o Führer ao criticar uma publicação. A defesa argumenta que a crítica se baseava na verdade, mas a situação é complicada pelo clima de repressão política e pela falta de acesso a defesa adequada. Os dois casos exemplificam o caráter dual do regime de Hitler, onde o controle estatal e a repressão política permeiam as decisões judiciais, refletindo a tensão entre a legalidade e a arbitrariedade do sistema nacionalsocialista. O Anexo destaca a dificuldade de obter justiça em um sistema onde as instituições estão subordinadas ao poder político e ideológico do regime.

A obra "O Estado Dual", de Ernst Fraenkel, se destaca como uma análise profunda e crítica do regime nacionalsocialista, oferecendo uma contribuição inestimável à compreensão das dinâmicas de poder e da estrutura jurídica da Alemanha sob Hitler. Ao introduzir o conceito de "estado dual", Fraenkel ilumina a coexistência de um "Estado de normas", que formalmente respeita as leis, e um "Estado de medidas", que opera com a arbitrariedade e o autoritarismo típicos de regimes totalitários. Essa dualidade não apenas evidencia as contradições intrínsecas ao sistema nazista, mas também revela as complexidades que permeiam a aplicação da lei em contextos de erosão democrática.

A análise de Fraenkel é particularmente relevante em um momento histórico em que o autoritarismo se manifesta de diversas formas, ressoando com os desafios contemporâneos que sociedades democráticas enfrentam. Seu trabalho não se limita a descrever o funcionamento do regime, mas provoca reflexões críticas sobre a natureza do poder, da justiça e da ética na governança. A habilidade de Fraenkel em articular suas observações com uma erudição impressionante confere à obra uma profundidade que transcende seu contexto original, tornando-a uma leitura fundamental para estudiosos do direito, da ciência política e da sociologia.

Além disso, a relevância atemporal de "O Estado Dual" se torna ainda mais evidente ao considerarmos a forma como o autor aborda a relação entre a ideologia nazista e as tradições do direito natural. Fraenkel não apenas critica a rejeição do direito natural pelos nazistas, mas também aponta para as implicações dessa rejeição em relação à justiça e à moralidade. A obra serve como um alerta sobre os perigos da desumanização e da manipulação da legalidade em nome de ideais políticos, um tema que continua a ecoar em nossos dias.

A edição da Editora Contracorrente, com sua tradução cuidadosa e introduções de renomados estudiosos, torna este texto acessível a um público mais amplo, garantindo que as lições de Fraenkel não sejam esquecidas. Ao oferecer uma análise erudita e crítica, "O Estado Dual" não apenas documenta os horrores de um regime totalitário, mas também nos convida a refletir sobre a importância da normatividade e da ética na construção de sociedades justas e democráticas. Assim, a obra de Ernst Fraenkel permanece como uma pedra de toque na discussão sobre o direito, a política e a moralidade, reafirmando sua posição como um dos textos mais significativos sobre a ditadura na história moderna.

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