APRESENTAÇÃO
Depois do sucesso de crítica e público dos podcasts Vidas Negras e Negra Voz, Tiago Rogero se consolidou como um dos principais nomes do jornalismo brasileiro com o projeto Querino, empreitada de fôlego que chega agora em sua terceira fase com a publicação do livro projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil. Baseado no 1619 Project, trabalho da jornalista estadunidense Nikole Hannah-Jones para o The New York Times, Rogero propõe um olhar sobre a história do Brasil a partir da centralidade do povo negro.
Com uma pesquisa minuciosa empreendida por uma equipe de especialistas de peso, o projeto Querino abarca, além do livro, um podcast produzido pela Rádio Novelo em 2022 — vencedor do prêmio Vladimir Herzog em 2023 e um dos mais ouvidos do streaming — e uma série de matérias publicadas na revista piauí no mesmo ano. Mais de quarenta profissionais trabalharam no projeto, que teve também o apoio do Instituto Ibirapitanga.
Agora, o livro conta com material inédito que amplia os oito episódios do podcast — incluindo entrevistas e imagens de figuras negras que foram apagadas dos manuais de história. Com firmeza e afeto, Rogero conduz o leitor pelo caminho da excelência e da dor em direção a uma nova compreensão da presença negra na construção do Brasil. Nesse sentido, o livro resgata a relevância de pessoas sequestradas e escravizadas — e a de seus descendentes —, ao mesmo tempo que denuncia os desdobramentos da diáspora no país de hoje.
Como bem descreve Ynaê Lopes dos Santos no texto de orelha do livro: “O projeto Querino é um banho de chuva. Chuva que molha, encharca, incomoda, nos obrigando a pisar em um chão quase pantanoso. Mas, passado o tempo, ela limpa e até refresca. Os pés seguem encharcados e são eles que pisam firme, abrindo espaço para uma nova escuta”.
De Luiz Gama a Chiquinha Gonzaga e Jorge Ben, passando por dona Laudelina de Campos Melo até chegar na pec das Domésticas, este livro se torna um retrato histórico-jornalístico potente de como o racismo, e também a agência do povo negro, formam o alicerce deste país.
RESENHA
O livro "Projeto Querino", de Tiago Rogero, oferece uma imersão profunda na complexa relação entre o tráfico de escravizados e as políticas coloniais no Brasil, traçando um panorama histórico que conecta figuras proeminentes como o príncipe regente D. João e o rei Adandozan do Daomé, atual Benim. O autor habilmente examina eventos cruciais de 1811, quando D. João recebeu presentes luxuosos e crianças escravizadas do rei africano, situando essa interação no contexto de um intrincado jogo de interesses econômicos e políticos. O temor de Adandozan em relação a um tratado de D. João com o Reino Unido, que visava a gradual abolição do comércio de escravos, revela a luta pela continuidade de um sistema que se tornaria integral à economia brasileira. Ao mesmo tempo, a rivalidade com o rei de Ardra destaca o crescente antagonismo entre reinos africanos, moldando um passado esquecido, mas relevante, na formação do Estado-nação brasileiro.
A análise de Rogero sobre a origem da escravidão e sua transformação no Brasil é particularmente impactante. Ele rastreia a desumanização dos africanos, que começou com a escravidão mercantil no século XV, até a forma brutal que a exploração do trabalho escravo assumiu nos séculos seguintes. A descoberta de que o tráfico de escravizados sempre foi um pilar econômico do Brasil oferece uma nova perspectiva sobre a construção da identidade nacional e a infraestrutura econômica do país.
A obra também se destaca ao trazer à tona a figura de José Bonifácio, um defensor da abolição que enfrentou resistência dos poderosos senhores de escravizados, mas que, sob a sua influência, conseguiu impactar D. Pedro. A narrativa culmina com os eventos políticos de 1821, ao relatar as exigências das Cortes Gerais e a turbulenta intersecção de interesses que conduziram à Independência do Brasil, enfatizando que esse "grito" foi, na verdade, um momento elitista, cercado por poder e privilégios.
O autor também se desdobra sobre o COVI-19 e a participação do ex-presidente da República Jair Bolsonaro em relação à crise sanitária enfrentada pelo Brasil, evocando assim, a morte de milhares de brasileiros.
A presença de Joaquim, o "Rei do Café", como um símbolo da riqueza oriunda da exploração da mão de obra escravizada, traz à tona a crueldade entrelaçada à prosperidade que caracterizou a economia brasileira. A resenha expõe a hipocrisia de uma independência que mantinha a escravidão e perpetuava um sistema de desigualdade raciais e sociais que ecoa até os dias atuais. A análise crítica dos efeitos persistentes da escravidão — refletida em salários desiguais e em postos de trabalho desfavoráveis ocupados pela população negra — evidencia a necessidade de um olhar atento e renovado sobre esses legados históricos ainda presentes na sociedade contemporânea.
Além disso, a crítica à representação da população negra na novela "Sinhá Moça" ilustra como a mídia perpetuou narrativas excludentes e problemáticas, sugerindo uma transição simplista entre trabalho escravo e livre. A resenha revela como essa visão distorcida ainda Nutre a ideia de uma sociedade meliorada pela "branquitude", ignorando as injustiças históricas perpetuadas. A menção à legislação contra o racismo e as violações de direitos humanos após a Abolição sublinha a continuidade da luta pela equidade racial no Brasil.
Por fim, a evocação do "Tratado do Engenho Santana", um documento redigido pelos escravizados em 1789 que reivindicava liberdade e dignidade, não apenas enriquece o texto, mas também atesta o desejo persistente de autonomia e respeito por parte dos oprimidos. "Projeto Querino" se configura, assim, como uma leitura essencial para todos que buscam compreender as raízes e as consequências da escravidão e da desigualdade racial no Brasil, oferecendo uma reflexão crítica e necessária sobre um passado que ainda ressoa no presente e molda o futuro. A obra de Tiago Rogero, portanto, é um convite à reflexão e à ação, enfatizando a urgente necessidade de reconhecimento e reparação das injustiças perpetradas ao longo da história.
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