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Capítulo 8 - Paraíso Particular
Mesmo com toda a rotina traçada, havia uma ponta de ansiedade no homem dentro do Land Rover. A expectativa de tomar mais uma dose deixava-o energizado. Eu sou um
viciado, ele repetia para si mesmo, e seu cérebro pragmático tentava resolver a equação. Não havia solução para o vício dentro dos padrões racionais da sua mente. Um vício não é exatamente uma coisa sobre o que temos controle e, até descobrir a droga da empatia, o médico nunca tinha se deparado com uma situação em que não estivesse no comando.
Iniciou os preparativos com cuidado. Para o mundo, ele estaria em uma viagem de negócios em Buenos Aires e só voltaria na noite seguinte. Era uma forma de poder passar o fim de semana sem interrupções, um álibi caso algum contratempo acontecesse. O médico sempre traçava planos de contingência. Uma ou mais saídas além das óbvias. O que ele
fazia na sua vida social era totalmente dentro da lei, não havia uma vírgula que pudesse gerar desconfiança. A clínica era um primor de administração, com a contabilidade feita por profissionais qualificados. Já o que fazia fora dela era crime em tantas esferas que mesmo ele não conseguia calcular quantos anos cumpriria de pena, caso fosse descoberto e condenado. Não pretendia passar as próximas décadas recluso em uma casa de detenção de segurança máxima ou em um manicômio.
Havia construído um cativeiro para as “cobaias” que o abasteceriam com a droga segundo especificações minuciosas. Era um lugar bastante incomum e os últimos detalhes foram finalizados com suas próprias mãos. Não correria o risco de levantar as suspeitas de algum arquiteto curioso. Cobaia era como chamava as vítimas sequestradas, arrancadas de suas vidas para servir de pasto até acabarem. Não eram pessoas comuns. Eram sensitivas com um alto nível de empatia.
A constatação final de que o abismo dentro dele poderia ser usado a seu favor veio depois que teve contato com a primeira pessoa que possuía o dom da empatia emocional.
Era uma paciente jovem que queria congelar os óvulos, mas passava mal em seu consultório. O médico ficou intrigado ao observar que a mulher só tinha vertigens na sua presença.
Ele também sentia uma diferença no seu abismo interior ao examiná-la. Era uma agitação nervosa do seu vazio, como se ele quisesse sair e dominar a outra pessoa. Apesar do desconforto dos dois, fizeram o congelamento, que deu ao médico acesso a toda a ficha da paciente e um meio de acompanhá-la por um período suficiente para pesquisar e entender o que acontecia.
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A primeira conclusão a que ele chegou foi de que a mulher pertencia ao raro grupo de pessoas com empatia emocional. Foi uma dedução lógica ligar o fato de ela se sentir mal em sua presença ao revide do seu indomável vazio interior. A empatia e o abismo se chocaram violentamente e ambos percebiam os efeitos físicos desse embate. Ela sentia vertigens, enquanto o médico tinha uma sensação de euforia. Ele nunca havia experimentado nada parecido em toda a sua vida. Eram a empatia e o abismo em luta pelo domínio de cada um. Ele descobriu que o seu vazio queria tomar a mente com quem entrava em contato e a empatia defendia a pessoa desse ataque, igual um organismo reagindo a uma infecção.
O que realmente o interessou foi o sentimento de euforia. Era bom demais para se desprezar. Passou a estudar um meio de conseguir ter aquela sensação de novo. Não possuía conhecimentos suficientes sobre a mente humana e precisou se aprofundar em diversos campos, inclusive a psicanálise. Estudou, com método, a biologia cerebral, ao mesmo tempo em que lia Freud, Jung, Klein, Winnicott, Lacan e tantos outros mestres.
Descobriu onde nasciam tais emoções e como transportar parte da empatia para si mesmo, e isso mudou sua vida.
Realizar a transfusão necessitava de uma pessoa com fortes poderes empáticos que lhe fornecesse a matéria-prima necessária para a produção da droga. O médico achou que
poderia controlar as emoções de acordo com a dosagem que aplicava. Não deu certo. Rapidamente, tornou-se um viciado nos sentimentos que só as doses da droga poderiam proporcionar. Essa conclusão mudou radicalmente seu mundo. O que antes era uma rotina entediante passou a ser a rotina psicótica de um adicto.
Minibio do autor: Alexandre Cavalo Dias (@ale_cavalo_dias) é músico, compositor, escritor, editor e roteirista de quadrinhos. Na Abril Jovem, roteirizou histórias para as revistas de Zé Carioca, Urtigão e Margarida. Lançou sua primeira Graphic Novel em 2005, pela Brainstore, chamada “Noite de Caça”, depois vieram outras tantas HQs e romances. Um dos fundadores da banda “Velhas Virgens”, desde 1986. Criou em 1999 a gravadora e editora Gabaju Records, produziu e lançou 19 CDs das Velhas, 5 DVDs e algumas HQs. Em 2021 recebeu uma indicação ao Grammy Latino como melhor álbum de rock pelo lançamento do disco “O Bar Me Chama” das Velhas Virgens. Como escritor lançou os livros de ficção “Cobaia 09”, pela Caravana Grupo Editorial, “Operação Guilhotina”, pela The Books Editora em 2022, “A Vingança dos Mortos”, KDP em 2021, “Remasterizado – Como a música salvou a minha vida”, “As aventuras de Roxx – As joias do Javali” aventura juvenil e a biografia dos 18 anos da banda Velhas Virgens.
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