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Fruto de uma relação interracial, mas criada unicamente pela parte branca da família, Isabel é uma mulher em busca de sua própria identidade. A piauiense Veronica Botelho (@verobotelho)
O racismo desde o ambiente familiar é o ponto de partida da história de Isabel. Longe de ser apenas um artifício ficcional, o preconceito em famílias inter-raciais é uma realidade presente em muitas casas brasileiras. A psicóloga social Lia Vainer Schucman, especialista em estudos de branquitude, investiga as tensões entre cor e amor a partir da ideologia do embranquecimento que aponta branco como “melhor” ou superior e determina também a hierarquia do indíviduo negro no ambiente familiar.
Em “Inverno”, Isabel sente na pele essas tensões. Na relação com avó branca, por exemplo, que condiciona o afeto que destina a garota ao “apesar” de sua cor. Mesmo na interação Madalena, mãe amorosa de Isabel, o racismo aparece em pequenos elementos do cotidiano, como a própria defesa da avó racista.
Apesar de ser uma história totalmente independente, “Inverno” se passa no mesmo universo de “Verão”. Rebecca, protagonista do primeiro livro, é personagem também na nova história — a amiga próxima de Isabel desempenha um papel central no processo de autodescoberta e os conflitos resultantes desse relacionamento.
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Uma mulher a procura de si
Isabel cresceu com a família materna em Maceió (AL), em um lar marcado por tensões raciais e silêncios que desvalorizam seu esforço em se encaixar. Criada pela mãe Madalena, sem saber quase nada sobre a origem do pai, a única referência que tem do mesmo é o relato de um abandono paterno, enfatizado constantemente pelo racismo da própria avó.
A personagem inicia sua jornada de autodescoberta a partir da revelação de cartas escritas pelo pai que contradizem a narrativa de sua origem que a acompanha desde o nascimento. A jornada de se aproximar do pai Renato e, principalmente, da tia Clotilde, transforma-se em um mergulho em suas raízes e na descoberta de sua ancestralidade, que foi sempre negada ao viver em um lar predominantemente branco.
Nesse processo, Isabel se muda para Aracaju (SE) e posteriormente para a Itália, onde, na companhia de Rebecca e outras amigas, busca entender quem realmente é, enquanto lida com a solidão, o peso da expectativa familiar e a descoberta de sua sexualidade.
Por vezes a solidão é o principal antagonista de Isabel, uma personagem com dificuldade de expressar-se livremente e entender seus próprios sentimentos. Nesse contexto, a personagem se envolve com Regina, uma mulher tão fascinante quanto complicada que interfere diretamente no amadurecimento de Isabel e também nas relações que ela estabelece a partir disso.
A tensão dos relacionamentos familiares, de amor e amizade estão no centro da história de “Inverno”. Passando por inúmeros episódios onde o afeto se torna uma ferramenta abusiva e limitadora, Isabel precisa entender qual é o seu próprio caminho independente das pessoas que a cercam.
Da psicologia à escrita: conheça Veronica Botelho
Natural de Floriano, no Piauí, Veronica Botelho é licenciada em Psicologia Social e das Organizações pela Universidade de Florença, e atualmente cursa mestrado em Psicologia e Neurociência da Saúde Mental no King’s College London. Seu primeiro livro de ensaios, “Meias Verdades”, foi publicado em 2016. A autora viveu no Brasil, Costa do Marfim, Inglaterra, Bolívia, Argentina, Espanha, Itália e Catalunha, onde teve experiência na atenção e inclusão de pessoas portadoras de diferentes transtornos mentais, e voluntariado com pessoas refugiadas.
Os estudos de Veronica sempre foram direcionados a entender as diferenças, inicialmente com foco no universo acadêmico. “O que escrevia, estudava, tinha um único intuito: como podemos conviver pacificamente aceitando as nossas diferenças”, explica. O primeiro livro da autora, “Meias Verdades” é um compilado de crônicas que refletem sobre o tempo, amor, racismo, xenofobia e ética política.
A autora lembra de sempre ter escrito muito para si mesma. “Minha avó dizia que eu escrevi a minha primeira poesia quando tinha 4 anos”, recorda-se. Ela passou por agendas e diários, chegou a escrever peças de teatro na escola, além de participar de um jornal escolar. Morando fora, o hábito de enviar cartas para família e amigos também compôs sua experiência na escrita.
Desde a escrita de “Verão”, sua primeira incursão pela ficção, Veronica já sabia que faria uma tetralogia. “As histórias se interconectam. São histórias que se encaixam, sem serem sequenciais”, explica, apontando que suas personagens também têm muito em comum com suas próprias experiências. Como Rebecca, protagonista de “Verão”, a autora perdeu o pai na infância. Aborda também sua experiência de imigração, “bilinguismo”, retratada em “Inverno”.
Do Inverno ao florescer de Isabel
Frisando a importância das amizades e das conexões, Veronica acredita que “Inverno” tem como mensagem os relacionamentos que nos moldam e como o passado faz parte da construção do presente. Com seu estilo de escrita intimista e reflexivo, a autora entrega uma narrativa fragmentada que se usa da não linearidade para transitar em diferentes tempos e espaços.
Como primeiro romance, a escrita de “Verão” começou quase como uma brincadeira, sugestão do parceiro da autora. “Escrevê-lo foi uma das experiências mais fascinantes da minha vida”, conta Veronica, que chegava a passar sete ou oito horas escrevendo sem parar. “Entrava em estado de flow. Aquele hic et nunc onde os insights surgem, se interconectam, e a arte nasce.”
A autora descreve esse estado como hipnótico e destaca a importância de respirar literatura nesse processo: “Quando não estava escrevendo o livro, estava lendo”. Veronica levou apenas dois meses e meio para escrever “Verão”, durante o inverno na cidade província de Girona na Espanha, parte da comunidade autônoma da Catalunha. A escrita de “Inverno” é uma curiosa resposta ao primeiro livro, que escreveu durante o verão na mesma cidade.
Veronica conta que suas influências são diversas, seja na arte ou nas conversas que escuta dentro de ônibus, bares, etc., em seu dia a dia. Na literatura, reconhece que sua iniciação foi marcada por homens brancos. “Luis Fernando Veríssimo por muitos anos foi o meu maior ídolo. Li praticamente tudo o que ele publicou”, comenta, citando outros nomes de referência, como Nelson Rodrigues e Caio Fernando de Abreu. Mas a autora também pontua a importância de escritoras como Clarice Lispector, Rosamunde Pilcher e Isabel Allende.
Atualmente consumindo bastante literatura contemporânea brasileira, a escritora destaca autores como Giovana Madalosso, Jeovanna Vieira, Carla Madeira, Julia Dantas, Tiago Ferro e Nara Vidal em sua prateleira. A experiência no exterior também marcou sua formação com a descoberta de autoras como Toni Morrison, Maya Angelou e Chimamanda Adichie.
Confira um trecho do livro:
“Naquele instante, Isabel se viu como o piso da sua avó, os tecidos da sua tia, e aquele vaso de Florença: pedaços de muitos lugares, algumas cicatrizes que eram apenas marcas que a tinham feito mais forte, e outras que se abriam em carne viva, como as goteiras do teto da casa de sua mãe.”
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