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[RESENHA #609] Terebentina, de Alexandre Gil França


APRESENTAÇÃO

Alguns livros buscam a linha reta, a promessa organizada de um começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem, porém razoavelmente garantidos na organização mental de quem se dispõe a ler.

Mas há alguns livros que parecem se deleitar com a matéria irracional do mundo; nesses livros, as estórias se espraiam caoticamente (ou numa “caosmose”, como conceituava Félix Guattari): uma invade a outra, sem compreendermos bem se há ali qualquer relação causal, se estão mesmo concomitantes, ou se o próprio tempo ameaça ver sua trama se esgarçar diante dos nossos olhos.

É o caso desta Terebentina de Alexandre Gil França, em que a promessa de um livro de contos logo se torna uma espécie de labirinto no qual a prosa narrativa abre lugar ao modelo de um script cinematográfico ou de roteiro teatral, por vezes hesitante entre a prosa e o verso, e muitas vezes aceitando um narrador (ou roteirista) que invade o texto como um eu que altera os fatos que ele mesmo organiza. E cada coisa acontece num universo que pode saltar do mais obcecado realismo para cenas delirantes em passagens vertiginosas, num instante.

Gil França então constrói um mundo de instabilidade e cruzamentos que recusam as hierarquias organizacionais. Notícias de rádio e jornal se cruzam com atores vestidos de cartas de tarô; um ônibus de lotação pode se tornar um avião de primeira classe; torturadores passam por bailarinas e criam suspeitos; e mariposas podem ser o sinal de loucura, ou então um ataque inclemente etc. Tudo está acontecendo no cruzamento das suas possibilidades de leitura, porque essas possibilidades são os modos mesmo da existência aqui proposta.

E, um último detalhe, que conforma muito do que encontramos nesta obra: tudo é narrado com um fascínio absoluto pela matéria-mundo. Cheiros, cores, sabores, sons, texturas, do nojo ao deleite, e vice-versa: o mundo aqui reluz intenso, atinge todos os sentidos, como que para apenas desnorteá-los. Talvez esteja num grude que não sai mais, ou que sai apenas com terebentina, na medida mesma em que ela deixar seu cheiro e seu sabor nos novos corpos.

Guilherme Gontijo Flores

RESENHA


Este é o típico livro em que você se culpa se abandoná-lo, sua leitura requer que seja violenta, faminta, de uma vez só. Terebentina é aquela obra que observamos e compramos por sua capa esplendidamente reluzente entre as pilhas de livros em uma prateleira, mas também é aquela leitura que nos prende e nos acende em todos os capítulos como se fossemos tomado por uma sede insaciável e que só se esgota ao findar da última página lida.

Os doze contos presentes na obra exploram as experiências individuais de personagens peculiares, como um dançarino de TikTok, uma cantora de bar ou um ator de comerciais. Essas histórias abordam temas como apagamento e invisibilidade, especialmente para artistas que ainda não alcançaram o reconhecimento mainstream. A dicotomia entre sucesso e fracasso permeia essas narrativas, impactando e sendo impactada pelas relações afetivas construídas pelos personagens. O autor mergulha na perspectiva desses artistas socialmente invisibilizados, explorando suas histórias, angústias e, principalmente, seus sentimentos.

A escrita de Alexandre Gil é potente e visceral, sua capacidade de narrar histórias se soma ao seu incrível talento de criar e contar histórias que dialogam com a realidade. Seus personagens vívidos e palpáveis merecem uma obra só de cada um, um único conto não é o suficiente, ao final de cada conto, queremos mais dos personagens, nossa fome aumenta e nossa exigência por aquela leitura tão deliciosa nos toma completamente. Seus roteiros descrevem sua genialidade em cada instante de leitura. Aqui, você irá rir, se surpreender e se atentar à cada detalhe, impossível não se apaixonar por uma leitura tão cativante.

Ao explorar as narrativas desses personagens, o autor revela as complexidades e os desafios enfrentados por artistas de menor visibilidade. Essas histórias são permeadas por uma profunda reflexão sobre a busca por reconhecimento e a luta para serem ouvidos e vistos em um mundo muitas vezes dominado pelo mainstream. O autor mergulha nas angústias e nos anseios desses artistas, revelando suas vulnerabilidades e a força que encontram em seus afetos.

Ao colocar em foco essas subjetividades particulares, a obra “Terebentina” nos convida a refletir sobre a importância de valorizar e reconhecer a diversidade de vozes e talentos presentes na sociedade. Os personagens se tornam representações de uma luta comum, evidenciando que o sucesso e o fracasso são conceitos subjetivos e a verdadeira realização muitas vezes reside na conexão emocional e na expressão artística.

Essa coletânea de contos nos convida a adentrar mundos desconhecidos e a explorar as profundezas da alma humana. Por meio de histórias envolventes e personagens cativantes, somos levados a questionar nossas próprias noções de sucesso, fracasso e reconhecimento, enquanto somos tocados pela autenticidade e humanidade desses artistas marginalizados.

Esta obra é um misto escancarado de um roteiro de cinema, ou uma prosa lírica altamente rica em diversos sentidos e motivos. A escrita do autor mescla uma série de estilos de escrita em uma capacidade descritiva elucidativa e potente, seu roteiro e sua perspicácia tornam todo cenário único, tornando a leitura cada segundo um instante breve, mas, marcante.

Personagens como Júnior, Lila, Janaína e Cíntia merecem um roteiro próprio, não há como descrever esta obra, o único formato que possibilita sua real compreensão é a leitura. Uma leitura incrível. Certamente, um dos melhores livros que li este ano, indico para todo leitor ávido em busca de uma leitura prazerosa e apaixonadamente impactante. A obra nos leva além das aparências superficiais e nos convida a mergulhar nas emoções e nas experiências íntimas desses artistas. Por meio de suas histórias, somos desafiados a enxergar além do que é considerado popular ou mainstream, e a valorizar a autenticidade e a originalidade presentes nas expressões artísticas menos reconhecidas.

O autor nos mostra que o apagamento e a invisibilidade enfrentados por esses artistas não são apenas questões externas, mas também internas. Eles lutam contra a pressão de se enquadrarem em padrões pré-estabelecidos de sucesso, e muitas vezes se veem questionando seu próprio valor e talento. No entanto, é por meio das relações afetivas que constroem que encontram força e inspiração para continuar perseguindo seus sonhos. Ao explorar as narrativas desses personagens socialmente invisibilizados, o autor nos convida a repensar nossas próprias percepções e preconceitos em relação ao sucesso e ao fracasso. Ele nos lembra que o verdadeiro valor da arte está na sua capacidade de tocar as pessoas, de transmitir emoções e de criar conexões profundas. Esses artistas, mesmo diante de desafios e obstáculos, encontram significado e realização em suas paixões e em seus relacionamentos.

Em suma, “Terebentina” é uma obra que nos convida a refletir sobre a importância de valorizar e apoiar artistas de todas as esferas, reconhecendo que o sucesso não deve ser medido apenas pela fama ou pelo reconhecimento público. É uma celebração da coragem, da resiliência e da vitalidade das vozes artísticas menos ouvidas, que nos inspira a enxergar o mundo de forma mais inclusiva e empática.

O AUTOR

Alexandre Gil nasceu em Curitiba em 1982. Já trabalhou com poesia, música e teatro. Publicou, em 2015, seu primeiro romance, Arquitetura do mofo (Selo Encrenca). Atualmente, edita junto com a poeta Iamni Reche Bezerra a Mathilda Revista Literária. É mestre em artes cênicas pela usp e doutorando em teoria e história literária pela Unicamp. Terebentina, para alguns, é seu primeiro livro de contos; para outros, seu segundo romance. O autor prefere dizer que é o seu segundo livro em prosa.


ENTREVISTA | O impacto da invisibilidade social na construção de afetos: conheça a escrita densa e experimental de Alexandre Gil França

Foto: Alexandre Gil França // Divulgação

Destacando-se por sua escrita experimental e híbrida, "Terebentina" (156 pág., editora Urutau) é o novo livro de contos do escritor Alexandre Gil França (@alexandregfranca). Trazendo a ótica de personagens socialmente invisibilizados, especialmente artistas pequenos ou de pouco reconhecimento, o autor explora suas narrativas, angústias e, principalmente, seus afetos. A obra tem orelha assinada pelo prestigiado poeta, tradutor e ensaísta Guilherme Gontijo Flores, vencedor do Prêmio APCA em 2018, e está à venda no site da editora.

Os doze contos que integram a obra são protagonizados por essas subjetividades particulares, como, por exemplo, um dançarino de Tiktok, uma cantora de boteco ou um ator de comerciais. Tratando-se também de histórias que evocam pequenos e anônimos artistas, que ainda se veem distantes do mainstream, as temáticas do apagamento e da invisibilidade em "Terebentina" são atravessadas pela dicotomia do sucesso e do fracasso. Nas histórias, esses conflitos impactam e são impactados pelas relações afetivas construídas pelos personagens.

Nascido em Curitiba (PR), em 1982, Alexandre Gil França já trabalhou com música, poesia e teatro. É mestre em Artes Cênicas pela USP e doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp. Estreou na literatura em 2015, com o romance "Arquitetura do Mofo" (Selo Encrenca/ Arte e Letra). Atualmente, é editor da Mathilda Revista Literária, ao lado da poeta Iamni. Também trabalha em um novo livro de contos e promete uma nova peça de teatro para 2024.

Quais são as suas principais influências?

Tive contato com Ulysses, de James Joyce, há muitos anos atrás, nos meus 18 pra 19 anos. Nessa época, esse livro era um vulto difícil de atravessar. Fui ler “entendendo” somente no começo do doutorado na Unicamp, em que me debrucei pra valer sobre ele. Uma obra que parece locupletar os recursos narrativos de inventividade: mistura de campos semânticos, de estilos, épocas, a dessacralização do espaço, as coincidências ultra arquitetadas, todo o espírito de ruínas da modernidade nessa figura sem pátria ou religião que é o Bloom. Isso tudo me impregnou definitivamente, e está presente, de uma forma ou de outra em “Terebentina”.

Considero os contos de Jorge Luis Borges como pequenas catedrais de sabedoria. Precisão na maneira de contar e no conteúdo. Seus labirintos de sentido também fizeram parte da minha formação literária, e influenciaram também os jogos de linguagens utilizados em “Terebentina”.

Já o Gilles Deleuze é sem dúvida o filósofo que mais estudei na vida. Sua ideia de diferença, de sentido, de acontecimento, fazem parte da minha rotina, da minha forma de pensar. Eu tento enxergar o mundo de uma maneira deleuziana, ou seja, para além das imagens do pensamento, do senso comum fabricado pela sociedade forjada no metal duro das identidades e das categorias: na maioria das vezes, eu fracasso. Penso que “Terebentina” é, um pouco, a dramatização desses fracassos e dos raros acertos.

Além disso, cito os cineastas Charlie Kaufman e Eduardo Coutinho. Os dois trabalham com a ideia de “pessoa comum”. Kaufman, de uma maneira, digamos, mais borgeana; Coutinho, de uma maneira documentarista, tentando pegar a verdade do depoimento. A ideia de “comum” tanto de um, quanto do outro, está bem presente no meu livro.
Capa da obra Terebentina


O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

O livro foi motivado pelo enclausuramento da pandemia. Como minhas atividades artísticas estavam suspensas (a música e o teatro), a escrita foi um refúgio e ao mesmo tempo um momento de imersão em mim mesmo. Acho que, de certa forma, todos nós “fracassamos” com essa pandemia, seja perdendo pessoas próximas, seja suspendendo nossas atividades. Terebentina reflete, em parte, esse espírito da época.

Escreve desde quando? Como começou a escrever?

Escrevo desde a adolescência. Acho que comecei com uns 15 anos de idade. Se bem que desde pequeno me fascinei pela ideia de livro — sempre quis fazer um livro; esse tipo de porta-histórias, porta-vidas. Um episódio marcante da minha adolescência foi uma tentativa de livro que mostrei, um dia, na praia, para a filha de um amigo dos meus pais. Ela criticou duramente o que eu havia feito (disse que faltava enredo, personagens consistentes etc.). Olha, eu devia ter uns 12 pra 13 anos: não sabia de nada! Aquilo me marcou bastante — como se, de certa maneira, a cada novo conto, eu precisasse completar aquele primeiro livro que não havia dado certo. Mais pra frente, um professor da graduação em comunicação, o Caibar, foi fundamental para que eu não parasse de escrever. Eu mostrava os contos pra ele, e ele me devolvia com comentários precisos sobre o que eu estava fazendo, e o que eu poderia melhorar.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam? Por que escolher esses temas?

Como vivem esses artistas invisíveis que estão por aí, incrustados no ao redor que esquecemos às vezes de observar? Penso que a descoberta do amor por essas pessoas invisíveis se configura como um território profundo de descobertas humanas. Minha intenção com o livro foi investigar justamente como o afeto pode circular por esses meios (como o set de filmagem de um comercial, o ensaio de uma coreografia viralizada no tiktok ou a apresentação de uma cantora de meia-idade em um botequim). É sobre isso, também, o título do livro – “Terebentina”: palavra usada para designar o solvente para pincéis, mas também um apelido popular para cachaça. Ou seja, apagamento e embriaguez andam juntas nessas histórias.

“Terebentina” é estruturado como se fosse uma exposição artística. Poderia comentar um pouco sobre essa escolha e estilo de escrita?

Acho que é um estilo múltiplo, que se utiliza de recursos diversos na construção de um cenário singular de leitura. A ideia é sempre dar a melhor possibilidade de imaginação e participação para o leitor. Vou utilizando recursos formais diferenciados, e, até mesmo, delirantes em alguns momentos. A linguagem dramatúrgica é misturada à poesia, à prosa e a um roteiro de cinema escrito por uma das personagens.

Sobre a estrutura, remete à questão do artista e de sua exposição. Tem a abertura, o hall de entrada, o primeiro andar, onde são distribuídos alguns personagens, que seriam as “obras”. E esses personagens são indivíduos comuns e invisíveis que transitam, na minha opinião, em certos ambientes singulares onde podemos encontrar a maior concentração de humanidade possível. Acho que o livro vasculha justamente esses espaços e tenta dar carne e nervos para essas pessoas comuns.

Foto: O autor Alexandre Gil França // Divulgação

Como é o seu processo de escrita?

Geralmente, sento e escrevo até onde o fôlego aguentar. Não tenho uma preparação para a escrita. Mas, é um ato de recolhimento. Preciso estar sozinho para a coisa fluir bem. Para contos, a meta é sempre ir até a página dez, mais ou menos. Depois, vou cortando o que considero gordura.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?

Não. Escrevo quando dá na telha. Geralmente, nos períodos sem muitas obrigações profissionais.
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Já estou escrevendo um novo, de contos. E, penso que para 2024, devo ter uma nova peça de teatro também escrita. São obras que estão ainda na primeira gestação: acho difícil detalhar sobre o que se trata, mas posso dizer que a temática do homem comum deverá estar presente nas duas.
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