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Resenha: História da felicidade, de Peter N. Stearns



APRESENTAÇÃO

Ser feliz é algo diferente para cada pessoa, mas também tem sido diferente ao longo da história, em diversas regiões do planeta. Sempre houve a busca por existências felizes, mas o que é considerado felicidade e a forma como as pessoas conseguem configurar suas experiências variam muito e dependem de circunstâncias históricas específicas. Assim, a visão histórica melhora nossa compreensão dessa emoção humana, mesmo para observadores interessados principalmente em padrões contemporâneos. Neste livro veremos como a felicidade é produto das concepções religiosas do passado, do iluminismo, do capitalismo comercial, da imensa indústria do entretenimento moderno, do aconselhamento psicológico, além de todas as possíveis variáveis pessoais, familiares e locais adicionadas à mistura. " A grande revolução, como se acompanha no livro, está na Idade Contemporânea. O aumento da importância da felicidade é um fenômeno dos séculos XVIII e XIX.." - Leandro Karnal "Stearns faz percursos que singularizam o tema da felicidade e o desembaça por meio de explicações que o tornam em determinados períodos mais que evidente.

RESENHA


O livro História da felicidade destaca como fatores como o iluminismo, o capitalismo, a industrialização e as grandes religiões contribuíram para definir o que significa ser feliz em diferentes contextos históricos. Ao abordar temas recorrentes como o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais e o papel da família, Stearns nos convida a refletir sobre as complexidades e nuances da felicidade. Com uma abordagem que combina história, filosofia e psicologia, "História da Felicidade" não apenas ilumina o passado, mas também oferece valiosas lições para o presente, ajudando-nos a compreender de onde vêm nossas ideias atuais sobre felicidade e como podemos buscar uma vida mais plena e satisfatória.

O capítulo "As bases psicológicas" explora a complexidade da felicidade e a dificuldade em defini-la, abordando como psicólogos e a psicologia positiva têm investigado o tema nas últimas décadas. Destaca-se que, embora a disciplina não tenha solucionado todos os mistérios da felicidade, ela oferece parâmetros para compreender suas características principais. Inicialmente, a felicidade foi associada à juventude e baixas aspirações, mas estudos posteriores mostraram que idosos também relatam felicidade, e que pessoas ambiciosas podem ser felizes.

A felicidade é vista como uma emoção básica, expressa universalmente através do sorriso, e desempenha funções importantes, como reforçar comportamentos benéficos e equilibrar emoções negativas. A psicologia distingue entre "satisfação com a vida" e "bem-estar subjetivo", conceitos que ajudam a entender a felicidade em diferentes contextos e ao longo do tempo.

O capítulo aborda debates sobre o papel da genética na predisposição para a felicidade, sugerindo que, embora exista um componente genético, as pessoas podem modificar seu nível de felicidade através de ações e mudanças de perspectiva. Psicólogos também discutem a importância de fatores como saúde, relacionamentos saudáveis, altruísmo e conexão espiritual na promoção da felicidade.

O autor reconhece que a busca excessiva pela felicidade pode ser contraproducente e que as diferenças culturais e sociais influenciam como a felicidade é percebida e vivenciada. A psicologia e a história, juntas, podem oferecer uma compreensão mais abrangente da felicidade, considerando tanto as influências coletivas quanto individuais.

O capítulo "A Era da Agricultura" aborda o surgimento e desenvolvimento das economias agrícolas, que começaram há cerca de 11 mil anos e dominaram a maior parte da população mundial por pelo menos 6 mil anos. Essa era é dividida em vários períodos principais, incluindo o período formativo, o surgimento das primeiras civilizações hidráulicas, o período clássico (aproximadamente de 600 a.C. a 500/600 d.C.), o período pós-clássico e o início do período moderno (1450 a 1750).

Durante o período clássico, importantes sistemas filosóficos emergiram, abordando a definição de felicidade. O capítulo também menciona o impacto das grandes religiões e o desenvolvimento dos entretenimentos populares, especialmente a partir de 300 d.C. até o século XVII. Essa periodização ajuda a entender a história da felicidade, embora não a defina completamente. Os capítulos seguintes exploram essas divisões cronológicas, destacando as transformações culturais e econômicas significativas ao longo da era agrícola.

O capítulo "Os primórdios da sociedade agrícola" explora a transição das sociedades de caçadores-coletores para a agricultura, sugerindo que essa mudança pode ter reduzido o nível de felicidade humana. As sociedades de caçadores-coletores eram relativamente igualitárias, com boa nutrição e menos desigualdade, mas a introdução da agricultura trouxe novas dificuldades, como dietas menos nutritivas, maior carga de trabalho, doenças e desigualdades sociais e de gênero.

A agricultura permitiu maior produção de alimentos e crescimento populacional, mas também gerou desigualdades significativas. Aristocratas e proprietários de terras desfrutavam de privilégios, enquanto a maioria enfrentava condições difíceis. As sociedades agrícolas desenvolveram narrativas de uma Era de Ouro passada, refletindo a percepção de uma deterioração em comparação com a vida anterior.

O capítulo sugere que, embora a agricultura tenha trazido avanços, também introduziu desafios que aumentaram a complexidade da felicidade humana. As sociedades agrícolas tiveram que criar novos modos de vida e conceitos para mitigar as dificuldades e buscar a felicidade, diferenciando-se das experiências mais simples e satisfatórias dos caçadores-coletores.

O capítulo "Dos filósofos: a felicidade no período clássico" explora como as sociedades clássicas, especialmente no Mediterrâneo e na China, desenvolveram filosofias e conceitos em torno da felicidade, refletindo sobre a sua natureza e como alcançá-la. Com o surgimento das primeiras civilizações, surgiram também ideias mais complexas sobre felicidade, influenciadas por condições objetivas e sistemas de valores. 

No Egito antigo, por exemplo, a felicidade era associada à gratidão aos deuses e à continuidade da vida terrena na vida após a morte, enquanto na Mesopotâmia, a visão era mais melancólica e os deuses exigiam obediência. No mundo clássico, debates filosóficos sobre a felicidade foram centrais, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e a razão como caminhos para a verdadeira felicidade, diferenciando-se dos prazeres materiais. Aristóteles, por exemplo, via a felicidade como uma atividade da alma expressando virtude, enquanto os estoicos defendiam a limitação dos desejos.

Na China, o confucionismo enfatizava a harmonia com a ordem natural e a importância das conexões humanas, enquanto o taoísmo valorizava a simplicidade e a sintonia com o universo. Ambas as tradições filosóficas buscavam distinguir o verdadeiro prazer da satisfação superficial, oferecendo uma visão que compensava as dificuldades da vida.

O capítulo também aborda o impacto dessas filosofias, questionando até que ponto influenciaram a experiência real de felicidade e destacando a tensão entre os conceitos filosóficos e as práticas populares de entretenimento. As filosofias clássicas tiveram um impacto duradouro, com o confucionismo moldando a visão chinesa de felicidade e as ideias gregas e romanas sendo reinterpretadas ao longo do tempo, especialmente com a ascensão de novas religiões.

O capítulo "Das grandes religiões: felicidade – e esperança?" analisa como as grandes religiões, surgidas principalmente entre 600 a.C. e 1400 d.C., impactaram as concepções de felicidade. Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo, embora distintas, compartilham a ideia de que a verdadeira felicidade transcende a existência terrena e está ligada a um plano espiritual ou vida após a morte.

O hinduísmo estabelece uma hierarquia de felicidade, culminando na realização espiritual após sucessivas reencarnações, enquanto o Budismo, fundado por Buda, propõe que a verdadeira felicidade resulta do desapego dos desejos mundanos, alcançando o Nirvana. O Cristianismo enfatiza a vida eterna no céu como a verdadeira felicidade, incentivando a esperança e a moderação dos prazeres terrenos. O Islamismo, semelhante ao Cristianismo, valoriza a vida após a morte, mas reconhece as bênçãos terrenas como dádivas de Deus.

Todas essas religiões ofereceram não apenas um caminho para a felicidade espiritual futura, mas também formas de alcançar satisfação e comunidade na vida presente, através de práticas como meditação, oração e caridade. No entanto, a ênfase na vida após a morte e a crítica aos prazeres mundanos também introduziram um elemento de ansiedade e culpa, especialmente no Cristianismo.

A expansão dessas religiões foi, em parte, uma resposta às instabilidades e desafios dos tempos, oferecendo esperança frente às dificuldades da vida terrestre. Elas continuam a influenciar as visões de felicidade até os dias atuais, destacando a tensão entre a vida material e a busca por um propósito espiritual mais profundo.

O capítulo "Prazeres populares" explora as atividades e diversões que proporcionaram satisfação e possivelmente felicidade nas sociedades agrícolas durante a "era religiosa". Embora não possamos medir a felicidade dessas atividades, elas claramente ofereciam momentos de prazer e alívio das duras rotinas de trabalho e das restrições da vida agrícola.

O trabalho, especialmente para artesãos urbanos, oferecia uma sensação de satisfação e orgulho, enquanto as atividades sexuais, embora limitadas por normas sociais e religiosas, ainda eram buscadas por muitos. A infância, apesar das dificuldades, proporcionava oportunidades de brincadeiras livres e espontâneas, que contrastavam com a supervisão adulta.

As sociedades agrícolas desenvolveram uma variedade de formas de entretenimento, como contação de histórias, jogos, esportes populares e festivais. Os festivais, em particular, eram eventos importantes que uniam comunidades em celebrações coletivas, oferecendo uma pausa vital nas rotinas diárias.

Esses prazeres populares, que frequentemente ocorreram em conjunto com atividades religiosas, mostravam a criatividade das pessoas em buscar diversão e satisfação, apesar das dificuldades da vida agrícola. As opções de entretenimento eram limitadas e esporádicas, mas proporcionavam momentos de felicidade que ajudavam a suportar a monotonia e as dificuldades do dia a dia.

O capítulo "A Revolução da Felicidade, 1700-1900" explora como, nos séculos XVII e XVIII, uma nova abordagem sobre a felicidade emergiu na Europa Ocidental e América do Norte, desafiando as concepções tradicionais e redefinindo expectativas pessoais. Este período, que se estendeu até o século XIX, coincidiu com a transição da Era da Agricultura para o início da sociedade industrial.

Durante esse tempo, debates intensos sobre o significado da felicidade surgiram, e várias tentativas foram feitas para implementar essas novas ideias. A Revolução Industrial trouxe mudanças significativas nos padrões de vida, lazer e vida familiar, complicando ainda mais a adaptação a essas novas expectativas de felicidade.

Embora descrita como uma "revolução", essa transformação foi inicialmente limitada ao Ocidente, com seu impacto global sendo restrito por um tempo considerável. O poder imperial e econômico da Europa durante esse período pode ter retardado a disseminação global dessas novas ideias sobre felicidade.

O capítulo "A Revolução da Felicidade no Ocidente" analisa como, durante os séculos XVIII e XIX, uma mudança significativa nas ideias sobre felicidade ocorreu na Europa Ocidental e na América do Norte. Essa revolução foi marcada pela crença de que os seres humanos podiam controlar seus destinos e que o prazer e o conforto terrenos eram objetivos legítimos. A felicidade passou a ser vista como algo que deveria estar ao alcance de todos, com sociedades bem organizadas ampliando as oportunidades para a satisfação mental e material.

Essa nova abordagem desafiou ideias mais antigas que associavam a felicidade à virtude ou à vida após a morte. O Iluminismo desempenhou um papel crucial ao promover a razão e sugerir que o progresso e a melhoria contínua eram possíveis. A felicidade passou a ser discutida não apenas como um conceito filosófico, mas também como um objetivo social e político, com implicações para a organização da sociedade e das políticas governamentais.

A revolução da felicidade trouxe novos comportamentos, como um aumento no consumismo e uma maior ênfase no prazer individual. O individualismo ganhou destaque, e a busca pela felicidade tornou-se um direito pessoal. Essa transformação também influenciou movimentos sociais e políticos, inspirando protestos populares e revoluções que buscavam a felicidade coletiva através de reformas.

Apesar das críticas e resistências de grupos religiosos e conservadores, as novas ideias sobre felicidade tiveram um impacto duradouro, moldando expectativas e comportamentos que ainda influenciam as sociedades ocidentais modernas. A revolução da felicidade não foi universalmente aceita, mas marcou uma mudança fundamental nas percepções de felicidade e nos objetivos de vida.

O capítulo "A Expansão da Felicidade? As Novas Expectativas Encontram a Sociedade Industrial" analisa como o século XIX viu a continuidade da revolução da felicidade iniciada no século XVIII, enquanto a sociedade enfrentava os desafios e transformações da Revolução Industrial. As ideias de felicidade se expandiram, influenciando práticas culturais e sociais no Ocidente, mas também enfrentaram novos desafios.

O século XIX presenciou a incorporação contínua de ideias iluministas sobre felicidade, destacando o prazer e a satisfação pessoal. No entanto, a industrialização trouxe mudanças significativas na estrutura social, separando família, trabalho e lazer. As famílias começaram a ser vistas como refúgios emocionais, e a felicidade familiar tornou-se um ideal valorizado.

A industrialização também complicou a relação entre trabalho e felicidade, com muitos trabalhadores enfrentando condições difíceis e alienação. No entanto, a crescente atenção ao lazer e ao consumismo abriu novos caminhos para a busca da felicidade. O aumento do tempo de lazer e a disponibilidade de novos produtos e entretenimentos, como parques de diversões e esportes, contribuíram para a satisfação individual e coletiva.

Apesar das novas oportunidades, a felicidade no século XIX foi marcada por desigualdades de classe e gênero, e as expectativas de felicidade nem sempre foram alcançadas. A sociedade industrial trouxe novas tensões, mas também expandiu as possibilidades para a busca da felicidade no contexto moderno.

O capítulo "Mudanças Globais nos Séculos XVIII e XIX" explora como, durante esse período, as ideias ocidentais sobre felicidade não se difundiram globalmente de maneira uniforme. Enquanto o Ocidente passava por transformações culturais e econômicas, muitas regiões mantinham suas tradições religiosas e culturais, com continuidade prevalecendo sobre a mudança.

Na China e no Império Otomano, as tradições existentes, como o confucionismo e as reformas do Tanzimat, continuaram a influenciar as concepções de felicidade, apesar das pressões externas e internas. Na China, a instabilidade econômica e social, agravada pela interferência ocidental, levou à Rebelião Taiping, que misturava valores cristãos e chineses em uma busca por felicidade por meio da obediência coletiva.

O imperialismo europeu trouxe impactos negativos significativos, especialmente na América Latina e na África Subsaariana, onde a colonização e a exploração econômica provocaram sofrimento e uma visão de mundo marcada pela melancolia. Na América Latina, o pensamento iluminista influenciou líderes como Simón Bolívar, que defendiam a felicidade através da independência e do nacionalismo.

Na Rússia e no Japão, as reformas e a industrialização criaram contextos distintos. Na Rússia, a modernização gerou debates entre ocidentalizadores e conservadores, enquanto no Japão, a era Meiji promoveu a industrialização e uma mistura de tradições japonesas com influências ocidentais, sem adotar completamente as ideias ocidentais de felicidade. Apesar de algumas influências ocidentais, muitas regiões mantiveram suas tradições e desenvolveram respostas únicas às pressões externas e internas, resultando em um mosaico complexo de atitudes em relação à felicidade que persistiriam no século XX.

No início do século XXI, a cultura do sorriso se tornou um fenômeno global, impulsionada pelas redes sociais, onde mostrar felicidade em selfies se tornou uma norma. No entanto, não havia uma história única da felicidade globalmente, com abordagens variando entre diferentes regiões, influenciadas por padrões materiais e tradições culturais.

Apesar das diferenças, algumas tendências comuns surgiram, principalmente a influência da cultura de consumo ocidental, que se espalhou com a industrialização e urbanização global. Isso ajudou a desafiar ideias antigas sobre felicidade e começou a formar uma abordagem mais global ou multirregional.

No Ocidente, o compromisso com a felicidade permaneceu forte, mas enfrentou desafios internos e influências de outras culturas. Paralelamente, houve tentativas deliberadas de desenvolver alternativas aos modelos ocidentais de felicidade, como no comunismo e em atualizações de valores tradicionais.

O século passado também foi marcado por divisões cronológicas internas, como as disputas sobre felicidade nas décadas após as guerras mundiais e a Grande Depressão. Após 1945, com o fim da Guerra Fria, algumas dimensões globais da felicidade começaram a emergir, interagindo com tendências regionais.

Com a industrialização se expandindo globalmente, as últimas décadas possibilitam uma avaliação provisória das implicações da industrialização para a felicidade, comparando-as com o advento da sociedade agrícola, embora as conclusões permaneçam complexas e inconclusivas.

O capítulo "Disputa pela Felicidade, 1920-1945" explora as diversas tendências que influenciaram a felicidade durante o período das guerras mundiais e da Grande Depressão. A Primeira Guerra Mundial causou um impacto negativo significativo na felicidade na Europa Ocidental, gerando pessimismo e desespero. Por outro lado, nos Estados Unidos, houve uma continuidade e ampliação dos temas de felicidade, com o desenvolvimento de novas abordagens culturais e de consumo.

O surgimento do fascismo na Europa rejeitou a primazia da felicidade individual, enfatizando o dever e a lealdade ao Estado em vez de prazeres pessoais. Movimentos anticoloniais e nacionalistas, liderados por figuras como Gandhi e Ataturk, promoveram visões alternativas de felicidade, muitas vezes baseadas em tradições culturais e na construção de nações independentes.

Apesar das dificuldades econômicas e sociais, algumas sociedades ocidentais continuaram a buscar o prazer, com a indústria do entretenimento desempenhando um papel importante. Nos Estados Unidos, a felicidade permaneceu um tema central, com inovações como a Disney e a trilha de risadas na mídia, além de esforços para associar felicidade ao trabalho por meio da Psicologia industrial.

O período também viu mudanças significativas na relação com a morte e o luto, com a morte se tornando menos comum e mais distante na experiência cotidiana, resultando em uma redefinição de práticas de luto e uma ênfase em emoções positivas.

A diversidade de abordagens à felicidade nesse período reflete a complexidade global das décadas entre guerras, com diferentes regiões desenvolvendo suas próprias respostas às crises e desafios, muitas vezes em oposição aos modelos ocidentais tradicionais.

O capítulo "Felicidade Comunista" examina como as sociedades comunistas, começando com a União Soviética em 1917, abordaram o conceito de felicidade. Os líderes comunistas enfrentaram o desafio de definir a felicidade de maneira distinta do Ocidente, que associavam ao consumismo e ao individualismo burgueses. Em vez disso, os comunistas procuraram promover a felicidade através do progresso social, igualdade e um ideal de futuro sem classes.

Na União Soviética, a felicidade foi associada ao trabalho árduo e ao progresso coletivo, com ênfase na educação, saúde pública e mobilidade social. Propagandas e programas coletivos, como férias patrocinadas pelo Estado, foram usados para promover um senso de satisfação popular. No entanto, o consumismo individual foi desencorajado, e os produtos disponíveis eram frequentemente de baixa qualidade.

Na China comunista, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, a felicidade também foi vinculada ao progresso coletivo e à lealdade ao Partido. A educação e a saúde pública foram ampliadas, mas a ênfase estava na transformação social e cultural, com pouca atenção aos bens materiais. A Revolução Cultural promoveu a ideia de felicidade através do trabalho árduo e do sacrifício coletivo.

Ambos os regimes enfrentaram dificuldades em equilibrar a promoção de uma felicidade distinta com as pressões da industrialização e do consumismo. Após o colapso da União Soviética e as reformas na China, ambos os países viram um aumento no consumismo e um retorno a valores mais individuais. No entanto, ainda enfrentam desafios em definir e promover a felicidade em um contexto pós-comunista, com um legado de abordagens anteriores e novas pressões sociais e econômicas.

O capítulo "Comparando a Felicidade nas Sociedades Contemporâneas" aborda a complexidade de comparar a felicidade entre diferentes países, destacando as dificuldades devido a diferenças culturais e de linguagem. Após a Segunda Guerra Mundial, as características regionais continuaram a influenciar as concepções e níveis de felicidade, mesmo com o aumento dos contatos globais.

Dois grandes projetos de pesquisa foram realizados no final dos anos 1950 e início dos 1960, e novamente nos anos 1970, analisando expectativas e preocupações em vários países. As conclusões mostraram que, embora fatores econômicos fossem importantes, as visões culturais e políticas desempenhavam um papel significativo na formação das expectativas de felicidade. As pesquisas revelaram que as esperanças superavam as preocupações na maioria dos lugares, mas as diferenças culturais influenciavam as visões sobre família e riqueza.

Estudos de caso sobre a Índia e o Japão ilustram essas diferenças. Na Índia, tradições espirituais e o foco na família influenciam as concepções de felicidade, enquanto o consumismo e o entretenimento moderno estão em ascensão. No Japão, o conceito de ikigai, que combina dever e realização pessoal, guia a busca pela felicidade, mas também enfrenta desafios devido à estagnação econômica e mudanças sociais.

O capítulo destaca que a felicidade não se correlaciona diretamente com indicadores econômicos e que as comparações entre países são complexas. No entanto, a análise comparativa é essencial para entender as diferenças regionais e refletir sobre as próprias concepções de felicidade. A globalização continua a promover uma mistura de influências culturais em relação à felicidade.

O capítulo "A Sociedade Ocidental na História Contemporânea: Cada Vez Mais Feliz?" explora se a sociedade ocidental está se tornando mais feliz ao longo do tempo, analisando fatores culturais, econômicos e sociais. A pesquisa de 2015 destacou que pais em sociedades ocidentais, como França, Canadá e Estados Unidos, priorizam a felicidade dos filhos, refletindo um compromisso cultural contínuo com a felicidade.

O capítulo afirma que a revolução da felicidade continua forte no Ocidente, mas também levanta questões e desafios. O consumismo desempenha um papel central, com um aumento significativo na busca por bens materiais e experiências como um caminho para a felicidade. A Disney, a literatura de autoajuda, a publicidade e as happy hours são exemplos de como a cultura ocidental promove a felicidade.

No entanto, novas questões surgem, como o paradoxo de Easterlin, que mostra que o aumento da prosperidade não se traduz necessariamente em maior felicidade. Além disso, a pressão cultural para ser feliz pode tornar a tristeza e a depressão mais difíceis de lidar, afetando a saúde mental.

A psicologia positiva e os programas de bem-estar surgiram como respostas para ajudar indivíduos a encontrar a felicidade duradoura, enfatizando o florescimento humano e a gratidão. Embora esses movimentos tenham ganhado popularidade, eles também enfrentam críticas por serem excessivamente otimistas.

Em resumo, a sociedade ocidental mantém um compromisso forte com a felicidade, mas enfrenta desafios significativos, incluindo as complexidades do consumismo, as expectativas de felicidade e as implicações emocionais dessas dinâmicas.

O capítulo "A Felicidade se Globaliza" explora como a aceleração da globalização no final do século XX e início do XXI influenciou as concepções de felicidade em todo o mundo. Enquanto as diferenças culturais e econômicas persistem, surgiram características globais de felicidade que vão além da simples adoção dos padrões ocidentais por outras sociedades. Esses padrões refletem reações à urbanização, melhorias nos padrões de vida e saúde, e contribuições de outras regiões, como o Sul da Ásia, enriquecendo as discussões globais sobre felicidade.

A globalização trouxe um foco maior na felicidade como meta política, com a ONU estabelecendo o Dia Internacional da Felicidade em 2012. Governos ao redor do mundo, incluindo os Emirados Árabes Unidos e a Nova Zelândia, criaram programas específicos para promover o bem-estar e a felicidade, enquanto iniciativas de bem-estar e psicologia positiva se espalharam globalmente.

O capítulo também discute como o consumismo e as celebrações de boas festas se tornaram fenômenos globais, com o Natal e aniversários sendo comemorados em muitos países. Além disso, práticas culturais de diferentes regiões, como a meditação do Sul da Ásia e o método Konmari do Japão, influenciaram abordagens globais à felicidade.

A Pesquisa Mundial de Valores fornece dados sobre tendências de felicidade ao longo do tempo, mostrando que a maioria dos países viu melhorias nos níveis de felicidade entre 1981 e 2007, embora desafios recentes, como a Grande Recessão e a pandemia de coronavírus, tenham impactado negativamente alguns países. Enquanto o interesse global pela felicidade aumentou e as definições se expandiram, as diferenças culturais e regionais continuam a complicar o quadro, tornando difícil prever o futuro da felicidade global.

O capítulo "Conclusão" aborda a complexidade e a evolução da felicidade ao longo da história, ressaltando que a felicidade tem sido influenciada por fatores como religião, iluminismo, capitalismo e cultura popular. A felicidade é uma emoção que variou em significado e prática dependendo das circunstâncias históricas e culturais.

A história da felicidade é complexa e não segue uma narrativa linear. Diferentes regiões e épocas têm suas próprias abordagens, e a pesquisa sobre o tema ainda é desigualmente distribuída, com um foco desproporcional no Ocidente. A relação entre textos formais sobre felicidade e práticas populares concretas é um desafio recorrente, e a religião desempenha um papel central, mas variado, na definição da felicidade.

Alguns temas recorrentes na história da felicidade incluem o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais, a sorte versus a agência humana, e o papel da família. Esses temas ajudam a organizar comparações e a entender as escolhas feitas por indivíduos e sociedades.

Importantes pontos de inflexão na história da felicidade incluem a transição para a agricultura e civilizações formais, o advento de religiões complexas e a "revolução da felicidade" no Ocidente a partir do século XVIII. A industrialização trouxe novos desafios e oportunidades para a felicidade, com melhorias materiais, mas também novas tensões e expectativas.

O capítulo finaliza ressaltando a fragilidade da felicidade, tanto para indivíduos quanto para sociedades, e a importância de se considerar o bem maior ao buscar a felicidade. A história oferece insights sobre como diferentes abordagens à felicidade evoluíram e quais podem ser seus pontos fortes e limitações.

A obra oferece uma fascinante jornada pela história da felicidade, revelando como essa emoção universal é moldada por contextos históricos e culturais variados. Desde as concepções religiosas até as influências do iluminismo e do capitalismo, o livro traça um panorama enriquecedor sobre as mudanças nas percepções de felicidade ao longo do tempo.

Os capítulos exploram como diferentes eras e regiões definiram a felicidade de maneiras únicas. Na "Era da Agricultura", a transição para sociedades agrícolas trouxe novos desafios, como desigualdades e dificuldades, mas também narrativas de uma Era de Ouro perdida. As filosofias clássicas deram forma a conceitos de felicidade, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e os chineses, a harmonia e simplicidade.

O surgimento das grandes religiões introduziu a ideia de felicidade transcendente, ligada a um plano espiritual. Já a "Revolução da Felicidade" nos séculos XVIII e XIX, impulsionada pelo iluminismo, redefiniu a felicidade como um direito humano, inspirando movimentos sociais e políticos.

O livro também aborda como a globalização e a industrialização impactaram as concepções de felicidade, trazendo novos desafios e oportunidades. A era contemporânea vê a felicidade se tornar uma meta política global, com influências de práticas culturais de todo o mundo.

Com uma análise rica e detalhada, a obra destaca a complexidade da felicidade e a importância de considerá-la em contextos históricos e culturais. É uma leitura envolvente que oferece insights sobre como a busca pela felicidade continua a evoluir e a influenciar nossas vidas.

O AUTOR

Peter N. Stearns formou-se em História em Harvard e é professor de História na George Mason University, nos Estados Unidos. Escreveu muito sobre história mundial e sobre o campo cada vez mais importante da História das emoções e ministra disciplinas em ambas as áreas regularmente. Desde cedo se destacou pela atividade docente (trabalhou na Universidade de Chicago, Rutgers, entre outras) e pelo empenho em escrever livros, tanto para especialistas, quanto para um público mais amplo. Foi editor de importantes publicações especializadas nos EUA, como o Journal of Social History. Sua preocupação com a história mundial e seu empenho em mostrar práticas sociais em diferentes culturas orientaram a escrita de importantes livros, como "A infância", "História das relações de gênero", "História da sexualidade" e "História da Felicidade", publicados pela Contexto.


[RESENHA #723] Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski

Publicado em 1861, após dez anos de exílio na Sibéria, Humilhados e ofendidos ocupa uma posição-chave na produção de Fiódor Dostoiévski. Por um lado, é sua obra mais ambiciosa até o momento, na qual revisita e leva ao limite as suas concepções de literatura e sua visão dos males da sociedade. Por outro, suas páginas abrem o caminho para uma forma de romance que vai ganhar corpo nos grandes livros de sua maturidade, e não por acaso o leitor encontra nesta obra conflitos e personagens que parecem prefigurar suas criações posteriores. Para compor a trama de Humilhados e ofendidos, romance no qual deposita enormes esperanças, Dostoiévski coloca no centro da ação a figura do escritor Ivan Petróvitch, que é também o narrador do livro, e cuja vida guarda tantas semelhanças com a sua que não é equivocado ler certas passagens como um ensaio de autoficção avant la lettre ― gesto arriscado, que não foi plenamente compreendido pela crítica da época. Os leitores, porém, não tiveram dúvidas. Desde sua primeira aparição como folhetim no número inicial da revista O Tempo, o romance fascinou o público, que reconheceu ali um modo inédito de narrar, capaz de trazer à luz os sentimentos mais obscuros com uma intensidade nunca vista ― intensidade que encontrou sua equivalência precisa na tradução de Fátima Bianchi e nas gravuras de Oswaldo Goeldi.

RESENHA


A obra de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski é geralmente dividida em duas fases pelos críticos literários e estudiosos do escritor russo. A primeira fase ocorreu antes de sua prisão na Sibéria no início da década de 50 do século XIX, quando escreveu os romances: Gente pobre, O duplo, Noites brancas e Niétotchka, além de alguns contos e novelas. A segunda fase começou após seu retorno para São Petersburgo em 1859, após ter passado aproximadamente cinco anos preso na Sibéria, submetido a trabalhos forçados por ter supostamente feito parte de um grupo que pretendia depor o Czar Nicolau I. Após esse período, cumpriu mais quatro anos de serviço militar compulsório no Cazaquistão. Essa fase é considerada sua fase mais criativa e madura, com a publicação de suas obras-primas, os romances: Crimes e Castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamazov. Contudo, é importante salientar uma fase que poderíamos considerar de transição em sua obra, que inclui um livro autobiográfico - narrando suas experiências e impressões da prisão -, Recordação da casa dos mortos (com seus primeiros capítulos sendo publicados em forma de folhetim, entre os anos de 1860 e 1861), e os romances: Humilhados e Ofendidos (também publicado em folhetim no ano de 1861) e Notas do subterrâneo (1864 – este, inclusive já é considerado por muitos críticos como a obra que inaugura a brilhante segunda fase do autor, que publicaria dois anos depois seu primeiro grande sucesso literário após o retorno a São Petersburgo, o livro Crime e Castigo).

O romance Humilhados e Ofendidos, que também recebeu uma ótima acolhida de crítica e público, possui uma forte conotação autobiográfica (como alguns outros romances de Dostoiévski, citando como exemplo O jogador). Seu personagem principal e narrador da história, Ivan Petrovich, vulgo Vania, é um escritor pobre, que teve sua primeira obra bem recepcionada pela crítica (no romance o narrador cita B, clara alusão a Belinski, grande crítico da época.

Neste romance, já podemos notar, de forma embrionária, vários dos principais elementos que imortalizaram a obra de Dostoiévski. Os primeiros passos de sua narrativa polifônica, onde as vozes dos personagens rivalizam com a do narrador para construir a trama e apresentar ao leitor o íntimo de suas almas, já são perceptíveis. A análise psicológica que tanto caracterizou a obra do autor russo também se faz presente. Nesta obra, Dostoiévski utiliza, assim como na maioria de seus livros, como modelo o romance realista da primeira metade do século XIX, para criar uma base para suas análises psicológico-dialéticas do íntimo de suas personagens, contraditórias e atormentadas por natureza. A crítica social, porém, ainda é o ponto principal do romance, resgatando, de uma certa maneira, suas preocupações já demonstradas em Gente Pobre. Contudo, em Humilhados e Ofendidos, a crítica social é permeada por personagens que não se contentam em apenas fazer os papéis de humilhados, de ofendidos, ou de algozes e prepotentes senhores aristocráticos. A narrativa dostoievskiana nos coloca a descoberto os dramas, as contradições, os desesperos e as angústias dos personagens. A diferença é que neste romance Dostoiévski ainda não dá o protagonismo à sua psicologia-dialética, sua preocupação maior ainda é com a denúncia das humilhações e ofensas sofridas pelas pobres gentes, por parte de uma aristocracia decadente, mas ainda poderosa, opressora, e arrogante.

De um lado, temos os humilhados e ofendidos: o casal Ikhmeniev, que devido à ingenuidade e bondade de Nikolai Serguievich Ikhmeniev, se vêm destituídos de sua propriedade, através de um processo jurídico pernicioso e repleto de falsas acusações; Natália Nikolaievna Ikhmeniev, que para os padrões da época havia desonrado sua família, abandona o lar por amor a um homem que, por fraqueza de caráter, a submete a situações de profundas humilhações; Ivan Petrovich, o narrador, que percebe que ser um escritor conhecido e elogiado, não o faz superar as barreiras sociais, apesar de frequentar, esporadicamente, o meio aristocrático que despreza. Sua fama não lhe trouxe riqueza e tampouco o privou das humilhações e ofensas dos poderosos, como veremos em suas relações com o príncipe Valkovskii; Nelly, a órfã maltrapilha, que apesar de ser levada a pedir esmolas na rua, traz em si uma altivez quase nobre (e o motivo disso só descobriremos nas páginas finais); e até mesmo Masloboiev, que através de sua esperteza, golpes e arranjos, consegue transitar em um universo diferente daquele a que pertence por origem, mas que também, ao final, é humilhado e ofendido pela nobreza aristocrática que tanto menospreza. Por outro lado, temos os opressores, os que se utilizam de sua posição, de direito e de herança, para humilhar e tripudiar dos menos favorecidos de berço e de fortuna: o príncipe Piotr Alexandrovich Valkovskii; seu filho Aliosha; e todo um séquito de condessas, condes e princesas que gravitam em torno de uma elite aristocrática restrita e decadente, na qual, não raramente, os casamentos por interesses financeiros são a única forma de manterem seu “status quo”.

A história de "Humilhados e Ofendidos" oscila entre dois eixos centrais. O primeiro é o drama de amor entre Natasha e Aliosha, e consequentemente as tentativas do príncipe Valkovskii de desestabilizar o casal e convencer seu filho a se casar com Kátia, enteada da condessa - velha amiga do príncipe - e herdeira de grande fortuna. O segundo eixo é a história de Nelly, órfã que se liga afetuosamente a Vania. Durante a narrativa, nos compadecemos com a dupla humilhação de Ikhmeniev, que além de ver sua filha desonrada e ameaçada pelo príncipe, é vítima de um terrível e injusto processo jurídico perpetrado pelo mesmo príncipe. Também nos tocamos com a doença e abandono da pequena Nelly, e finalmente com a estoica abnegação de Natasha. Mas é nos diálogos e no sutil escrutínio das complexas almas dos personagens que o romance ganha seu valor literário. O personagem Aliosha é sem dúvida um dos mais repulsivos da história da literatura. O escritor russo conseguiu criar um personagem execrável, sem caráter e abjeto, mas que contudo possui uma alma boa, pura, um coração ingênuo. Entretanto, sua pureza e ingenuidade são levadas ao paroxismo, tornando o personagem odioso, mimado e irresponsável aos olhos do leitor. Ser bom, ter um bom coração, não faz sentido algum se o indivíduo não tem força de vontade e caráter para fazer a coisa certa e moralmente correta. É o que se

Mas é o pai de Aliosha, o príncipe Valkovskii, o grande personagem do livro. Nele vemos antecipado grandes temas que Dostoiévski irá discutir mais aprofundadamente em seus futuros romances. O príncipe reúne em si todas as características deletérias que o escritor russo vê no estereótipo da decadente aristocracia russa: a dissimulação, o egoísmo, a hipocrisia, o cinismo. O príncipe encarna a antítese cristã. Todos os seus atos são premeditados e encobertam interesses pessoais. O perfil de sua personalidade vai sendo desvendado aos poucos, através do brilhante uso que Dostoiévski já faz da polifonia. Isso se dá através dos longos diálogos do príncipe e Natasha; dos diálogos entre Aliosha e Natacha, onde Aliosha reproduz as conversas que tem com o pai que ele admira e venera, e devido à sua ingenuidade que beira a estupidez, mas que em momento algum suplanta sua arrogância nobiliárquica, ele se deixa enganar pela argúcia maldosa do príncipe; mas é principalmente nos diálogos do príncipe com Vania que percebemos, ou melhor, que entrevemos a alma negra do príncipe, até que finalmente ele retira teatralmente sua máscara ao convidar o narrador para jantar, assim que saem de uma visita à casa da condessa. Depois de beber bastante, o príncipe vai aos poucos colocando as cartas na mesa.

"Humilhados e Ofendidos" é uma obra-prima da literatura russa. Dostoiévski, com sua narrativa polifônica, consegue criar personagens complexos e profundos, que nos fazem refletir sobre a natureza humana e a sociedade em que vivemos. O romance é uma crítica contundente à aristocracia russa decadente, que oprime e humilha os menos favorecidos. A história é envolvente e emocionante, e os diálogos são brilhantes. O livro é uma leitura obrigatória para quem aprecia a boa literatura.

[RESENHA #722] O duplo, de Dostoiévski



Sobre O duplo, seu segundo romance, publicado em 1846, Dostoiévski declararia: "nunca dei uma contribuição mais séria para a literatura do que essa". De fato, ao retratar o drama de um pequeno funcionário de personalidade cindida, que passa a enxergar e conviver com seu próprio duplo, o autor russo antecipa aqui seus grandes romances de maturidade, como Crime e castigo e O idiota. Influenciada por Hoffmann e Gógol, esta surpreendente história ganha aqui sua primeira tradução direta do russo, que busca preservar toda a radicalidade e o humor do texto original, e vem acompanhada de uma seleção das belas ilustrações do artista expressionista austríaco Alfred Kubin.

RESENHA


O Duplo é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1846. A história gira em torno de Iákov Petróvitch Goliádkin, um funcionário público sem grande expressão social, que começa a ser atormentado por um duplo, que é uma cópia exata dele mesmo. O livro é uma obra-prima da literatura russa e é considerado um dos primeiros trabalhos de Dostoiévski. A obra é uma crítica à sociedade da época, que muitas vezes se baseava em preconceitos e estereótipos para julgar as pessoas. O livro é repleto de humor e ironia, e o narrador onisciente revela a dedicação do protagonista que, na verdade, fica obcecado com seus estudos na área de psiquiatria. Além disso, ele aborda os temas da identidade, da loucura e da alienação. O Duplo é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer a literatura russa e a obra de Dostoiévski.

Dostoiévski é um dos maiores escritores russos de todos os tempos e é frequentemente comparado a Freud e Nietzsche por sua exploração das bases irracionais e inconscientes da psiquê humana. A Rússia na década de 1840 era um mundo em mudança, resistindo freneticamente à pressão por mudanças, que vinha tanto de dentro da Rússia, quanto da Europa Ocidental. O próprio Czar insinuou a abolição da servidão, e o círculo de debates do qual Dostoiévski participou foi ignorado pelas autoridades durante anos. No entanto, o advento das revoluções europeias de 1848 pôs fim a toda conversa e tolerância. Assim, a interrupção da carreira de Dostoiévski em 1849 coincidiu com a ruptura brusca na vida política e cultural russa, quando ele foi preso acusado de conspiração contra o Czar. Dez anos depois (1859), foi solto, o que coincidiu com um período com menos censura e com a relativa liberdade política. Tudo isso mudou a forma de pensar de Dostoiévski. O Duplo é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1846. A história gira em torno de Iákov Petróvitch Goliádkin, um funcionário público sem grande expressão social, que começa a ser atormentado por um duplo, que é uma cópia exata dele mesmo. O livro é uma obra-prima da literatura russa e é considerado um dos primeiros trabalhos de Dostoiévski. A obra é uma crítica à sociedade da época, que muitas vezes se baseava em preconceitos e estereótipos para julgar as pessoas. O livro é repleto de humor e ironia, e o narrador onisciente revela a dedicação do protagonista que, na verdade, fica obcecado com seus estudos na área de psiquiatria. Além disso, ele aborda os temas da identidade, da loucura e da alienação. O personagem principal, Iákov Petróvitch Goliádkin, é um homem solitário e inseguro que se sente deslocado na sociedade em que vive. Ele é um funcionário público sem grande expressão social, que começa a ser atormentado por um duplo, que é uma cópia exata dele mesmo. O duplo é uma representação da parte sombria e reprimida da personalidade de Goliádkin, e o livro explora a luta interna do personagem para lidar com essa dualidade. O livro é importante por ser uma das primeiras obras de Dostoiévski e por abordar temas que seriam recorrentes em sua obra posterior. Além disso, é uma obra-prima da literatura russa e é considerado um dos melhores trabalhos de Dostoiévski.

Joseph Frank, o maior biógrafo de Dostoiévski, afirmou que “O Duplo” é uma confissão do próprio autor. Como Golyadkin, Dostoiévski também sofria de “alucinações”, que podiam muito bem incluir delírios parecidos com Golyadkin; e era de uma timidez que beirava a anormalidade. Esses aspectos de autorretrato que estão contidos em “O Duplo” constituem apenas um elemento de sua composição; outros provêm de suas influências literárias externas. Era (nas palavras de Joseph Frank) um hoffmanista russo. Os primeiros capítulos de “O Duplo” contêm uma brilhante descrição da personalidade dividida de Goliátkin antes de sua completa dissociação em duas entidades independentes. De um lado, há o evidente desejo de aparentar uma posição elevada e uma imagem mais lisonjeira de si mesmo – daí a carruagem e o libré, as orgias consumistas, como a compra de móveis elegantes, como se fosse um noivo prestes a casar, até mesmo o detalhe de trocar seu dinheiro em notas menores para dar a impressão de ter um bolso mais recheado de dinheiro. Suas pretensões de amor por Clara Olsúfievna não é causa, mas a expressão de um afã de subir na escala social e de salvar o próprio ego.

O Duplo é uma obra-prima da literatura russa e é considerado um dos melhores trabalhos de Dostoiévski. O livro é uma crítica à sociedade da época, que muitas vezes se baseava em preconceitos e estereótipos para julgar as pessoas. Além disso, é uma obra que explora temas como a identidade, a loucura e a alienação de forma brilhante. A descrição da personalidade dividida de Goliátkin é um dos pontos altos do livro, e a obra é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer a literatura russa e a obra de Dostoiévski. A influência literária externa de Dostoiévski é evidente em “O Duplo”, e o livro é um exemplo da habilidade do autor em criar personagens complexos e intrigantes. Em resumo, “O Duplo” é uma obra-prima da literatura russa e uma das melhores obras de Dostoiévski.

[RESENHA] Espumas flutuantes, Castro Alves


“Espumas Flutuantes” é a única obra publicada em vida pelo poeta Castro Alves. Publicado em 1870, o livro reúne 53 textos, incluindo versões de poesias de autores como Victor Hugo e Lord Byron.

A obra é marcada por imagens grandiloquentes da natureza (como mar, céu, tufão, sol) e pelo uso abundante de recursos retóricos. Enquanto a poesia de cunho social predomina em outras obras de Alves, aqui o principal tema é o amor.

Ao retratar o amor, Castro Alves segue caminhos diferentes dos poetas das gerações anteriores. Em vez do amor espiritualizado de Gonçalves Dias ou do onírico de Álvares de Azevedo, retrata suas musas com sensualidade quase erótica.

A inspiração para muitos desses versos vem do romance com a atriz portuguesa Eugênia Câmara. Suas experiências e inspirações amorosas refletem-se, por exemplo, em “Boa-Noite”, “Adormecida” e “Hebreia”, três dos melhores poemas.

Apesar de alguns versos de gosto duvidoso, quando bem-sucedido, o poeta é capaz de apontar tendências parnasianas – no rigor da forma, nas descrições plásticas e precisas, nas imagens escultóricas e nas referências a elementos do mundo greco-romano.

Castro Alves também recebeu influências decisivas da geração ultrarromântica: a subjetividade, a paisagem que se incorpora aos dotes da amada ou do amante, os sentimentos impulsivos e explosivos. Ele também tinha um gosto pelo tema da morte, que integra “Espumas Flutuantes” – mas sem o tom dos ultrarromânticos.

Em resumo, “Espumas Flutuantes” é uma obra lírica significativa que une experiência e inspiração, dando uma nova face à poesia amorosa. A linguagem da poesia de Castro Alves é saborosa, apresenta uma perspectiva crítica e revela alguns traços do Realismo.

“Espumas Flutuantes” é a única obra publicada em vida pelo poeta brasileiro Castro Alves. Publicada em 1870, o livro reúne 53 textos, incluindo versões de poesias de autores renomados como o francês Victor Hugo e o inglês Lord Byron.

Período Histórico

Castro Alves nasceu durante o Segundo Reinado, que durou de 1840 a 1889, sob o comando de Dom Pedro II. O debate sobre a escravidão teve avanços importantes nesse período. A abolição da escravatura só ocorreu em 1888, com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.

Relevância Cultural

Castro Alves é conhecido como o “Poeta dos Escravos”, expressando em suas poesias a indignação aos graves problemas sociais de seu tempo. Ele é o patrono da cadeira n.º 7 da Academia Brasileira de Letras.

Inspirações

As biografias do poeta mostram que a inspiração para muitos desses versos vem do romance com a atriz portuguesa Eugênia Câmara. Suas experiências e inspirações amorosas refletem-se, por exemplo, em “Boa-Noite”, “Adormecida” e “Hebreia”, três dos melhores poemas.

Sinopse da Obra

“Espumas Flutuantes” é uma coletânea de poemas que abrangem os mais variados temas de sua poética. A obra tematiza o amor, o erotismo e o lamento pela chegada da morte. Enquanto em outras obras predomina a poesia de cunho social, aqui o principal tema é o amor. Ao retratá-lo, Castro Alves segue caminhos diferentes dos poetas das gerações anteriores: em vez do amor espiritualizado de Gonçalves Dias ou do onírico de Álvares de Azevedo, retrata suas musas com sensualidade quase erótica, em cenas em que demonstra maturidade no trato do feminino.

A obra é notável por sua linguagem saborosa, perspectiva crítica e revela alguns traços do Realismo. No entanto, a linguagem desta coletânea de poemas é essencialmente romântica e muito carregada de emoção e paixão. A lírica amorosa de “Espumas Flutuantes” apresenta bem poucos poemas que contenham vestígios de um amor platônico e da idealização feminina. Em vez da “virgem pálida”, a mulher nos poemas de Castro Alves é um ser concreto e participa ativamente do envolvimento amoroso.

[ANÁLISE] Poema Sujo, Ferreira Gullar



ANÁLISE DA OBRA "POEMA SUJO", DE FERREIRA GULLAR

O AUTOR

Em 1970, Ferreira Gullar é obrigado a deixar o Brasil, vivendo em várias cidades, foi em Buenos Aires, que o poeta escreveu em 1975 entre maio e outubro o “Poema Sujo” que foi muito bem acolhido pelos intelectuais.

Eram realizados encontros e foi na casa de Augusto Boal, em Buenos Aires, entre grupo de amigos, liderados por Vinícius de Moraes que conheceram e se apaixonaram pelo “Poema sujo”, assim Vinícius de Moraes leva o poema para o Rio de Janeiro escondido em fita-cassete, por razões de segurança.

Já no Brasil Vinícius promove sessões de audição privada para intelectuais e jornalistas, e o editor Ênio Silveira resolve publicá-lo no ano seguinte, sem a presença do poeta, ainda exilado. Esse poema abriu as portas para o seu retorno ao país, que foi em março de 1977.

OS CRÍTICOS

A crítica foi benevolente com o poema, segundo:

Vinícius de Moraes, esse “é o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”;

Otto Maria Carpeaux considera-o um “poema nacional”, uma verdadeira “encarnação do exílio”, trazendo todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças de vida do homem brasileiro.

Clarice Lispector classifica-o de “escandalosamente belíssimo”.

A PROPÓSITO DO TÍTULO

Afirmou:

Luiz Carlos Junqueira Maciel:

Diz que Ferreira Gullar afirma que o título “... é porque eu pego o que tem de escuro, de sujo, as cadeiras velhas, os armários velhos, e coloco uma luz. Vou até embaixo, no fundo, e subo trazendo tudo junto: o que é poesia e o que não é poesia”.

Maria Zaira Turchi:

Ao questionar o título do “Poema sujo”, indaga se esse adjetivo teria a mesma conotação de pornográfico, imoral, contrário às normas tradicionais de boas maneiras. Ma o “Sujo” não se localiza nos palavrões, nas tiradas eróticas;

O sujo está na miséria, na fome, na obscena divisão de classes. O sujo está inserido no tempo da enunciação do texto: anos 70, ditadura militar, milagre econômico a enriquecer uma minoria, tortura e censura obscurecendo o país, o poeta exilado, em sua vida clandestina, prestes a ser preso ou fuzilado a qualquer momento;

O “Poema sujo” é um painel-memorial onde se acham acontecimentos tristvida até aquele momento.

É “Poema sujo”, por não seguir as regras poéticas de métrica, rima, palavras adequadas e vocabulário. Há gírias, palavrões e, até mesmo, obscenidades na linguagem. Ainda pode ser “Poema sujo” por ser de um autor perseguido na época, contrário ao regime do seu tempo de rapaz.

O ESTILO DA ÉPOCA

Gullar afirma que suas obras são fruto de reflexões sobre os acontecimentos, a vida e as pessoas, escrita com coerência. O “Poema sujo”, que é seu livro mais conhecido internacionalmente, já foi publicado na Alemanha, Espanha, Colômbia e EUA, é considerado a obra mais ousada de Ferreira Gullar.

Esta obra como diz o autor, é uma obra que traz uma reflexão vigorosa e penetrante sobre a infância e o resgate.

O poeta escreveu as cinco primeiras laudas em um só fôlego:

“Ao terminá-las, sabia de tudo: que o poema ia ter por volta de cem páginas, que teria vários movimentos como uma sinfonia e que se chamaria “Poema sujo”. Hoje, ao refletir sobre aqueles momentos, estou certo de que o poema me salvou: quando a vida parecia não ter sentido e todas as perspectivas estavam fechadas, invente, através dele, outro destino.”

Escreveu-a numa época de forte repressão política, Gullar sentia-se perseguido pela ânsia de relembrar o passado e a dificuldade de expressar, em linguagem poética, o universo interior, o que transparece logo nos primeiros versos, no nível formal do texto:

turvo turvo

a turva

mão do soprocontra o muro

escuro

menos menos

menos que escuro

menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo escuro

mais que escuro:

claro

Como água? Como pluma? Claro mais que claro claro: coisa alguma

e tudo

(ou quase)

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando (desde coisa alguma)

e tudo

(ou quase)

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando...

Há, nessa passagem, o uso consciente de vogais e consoantes que sugerem um conflito entre o desejo pela expressão exata e a impossibilidade de transpor para o verso as impressões da vida real. Esse embate repercute na utilização das consoantes oclusivas [t] e [p], que reproduzem sons fortes e pesados, mostrando que o poema começa a se revelar, mas ainda se acha à mercê dos óbices de transformar em linguagem poética a experiência profunda, armazenada como sentimentos, emoções e recordações. Por outro lado, as vogais [o] e [u] também causam a sensação de fechamento e escuridão, sem mencionar que a palavra muro realça esse labor com a linguagem.

Logo em seguida aparecem outros estilísticos que demonstram a superação das primeiras barreiras. O jogo de antíteses (escuro x claro, menos x mais, mole x duro) reforça uma ambigüidade: ora a imagem emerge espontânea, ora se esconde no pensamento.

Claro claro

Mais que claro

Raro

O relâmpago clareia os continentes passados.

Em razão de uma originalidade sempre buscada, no” Poema sujo” ele se esmera (aprimora) na coragem despudorada de revelar explicitamente a sordidez e a impureza do cotidiano humano em passagem insólitas (incomum), embora amaparadas por uma consciência poética que torna esses rompantes expressivos alheios a um simples e pueril desejo de subverter ou chocar. Em alguns momentos, o poeta declara abertamente:

“Tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre [as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta] como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras)...

O poema é estruturado em versos livres (em alguns momentos, há versos em redondilha maior – quadra de versos de sete sílabas, na qual rimava o primeiro com o quarto e o segundo com o terceiro, seguindo o esquema abba) explorando com liberdade o espaço gráfico, recorrendo, às vezes, a expedientes concretistas:

“nada

vale

nada

vale

quem

não

tem

nada

v

a

l

e

TCHIBUM!!!” (p.36)

O poema é um corpo constituído de quatro temas principais: infância/ família – corpo/prazer – tempo/tempos – cidade/vida. Nele há uma mistura de tristeza e alegria, esperança e angústia, caráter histórico e mistério existencial, corpo humano e espaço urbano. A forma poética é também híbrida (misturada), recorrendo a versos curtos e longos, versos livres e metrificados, linguagem clássica e linguagem chula, narrativas e fragmentos, léxico popular e erudito, anáforas, sinestesias, aliterações, assonâncias, onomatopeias.

Ao observar o movimento de versos e estrofes, as páginas e seus espaçamentos, pressente-se que existe de fato uma arquitetura nesse corpo poético. A paginação rigorosa obedece a um desenho que pode ser assemelhado às partituras, e o número de páginas do poema corresponde à média de páginas que possui a edição de uma sinfonia.

Há a influência do concretismo/neoconcretismo pode ser identificada em várias passagens da obra, em que o espaço em branco é ocupado graficamente pelo verso.

MONTAGEM DO POEMA

Embora o poema não apresente subtítulos, capítulos ou subdivisões, podemos apontar, através de espaços deixados entre as suas 103 páginas, 09 blocos distribuídos assimetricamente: enquanto o menor tem quatro páginas, o maior tem 26.

PRIMEIRO BLOCO: da página 11 à 24

Na oposição entre o turvo e o claro, o poema nasce no nível da inconsciência, da pré-fala, buscando atingir a fala consciente.

O primeiro grande impacto do poema vem nos seguintes versos:

“azul

era o gato

azul

era o galo

azul

o cavalo

azul

teu cu”.

Como observa Turchi, a última palavra chula quebra o encantamento azul da infância e da fantasia, “e fecha como que o inconsciente para acordar o consciente na busca da realidade da vida”.

SEGUNDO BLOCO: da página 25 à 36

Neste segundo bloco começa evocando o rio Anil, sujo e miserável, com seus bagres e lama podre. Num tempo em que o menino não conhecia Homero, Dante nem Boccaccio; evoca a locomotiva que se parecia com um paquiderme (de pele espessa com um elefante), o poema abusa das onomatopéias (“tchi tchi/ trã trã trã trã”) e, compõe esses versos singelos e líricos:

“Lá vai o trem com o menino

lá vai a vida a rodar

lá vai ciranda e destino

cidade e noite a girar

lá vai o trem sem destino

pro dia novo encontrar

correndo vai pela terra”.

Até então, dá para perceber que o “Poema sujo” o autor relata a sua vida, a sua trajetória.

TERCEIRO BLOCO: da página 37 à 62

O poeta prossegue escavando a memória, remexendo na terra suja do quintal, evocando os mortos do passado e, simultaneamente, falando de seu presente.

De volta ao passado, o poeta voa sobre a miséria de São Luís, na fábrica de Camboa, onde os operários eram explorados (não deixa de ser uma crítica); referente ao amigo de infância (Esmagado) e às casas de palafitas. Nas lembranças do poeta, acionadas pela noite, há o contraste entre a burguesia e os operários.

Neste bloco “A noite” é uma imagem recorrente:

“(Maria do Carmo

que entregava os peitos enormes

pros soldados chuparem

na Avenida Silva Maria

sob os oitizeiros

e deixava que eles esporrassem

entre suas coxas quentes (sem meter)

mas voltava para casa

com ódio do pai

e mal-satisfeita da vida)”

QUARTO BLOCO: da página 63 à 69

Este bloco será pontuado com a história dos pássaros, reproduzindo as ocupações profissionais, os pássaros serão relacionados com as histórias humanas: o curió que cantava na barbearia puxa o caso da filha do barbeiro que fugiu com o filho do carteiro, provocando um comentário racista das vizinhanças:

“Se tivesse fugido

com um branco

ao menos ia poder casar”

As diferenças sociais são apontadas a partir da referência aos pássaros. Através dos pássaros, o poeta evoca outros dramas, como o de seu Neco, que matou a mulher que punha chifres.

O autor encerra esse bloco com referências míticas aos guerreiros (que conhecem a história dos pássaros) e ao vento que sopra nas árvores de São Luis, que irá soprar a memória do poeta no próximo bloco.

QUINTO BLOCO: da página 70 à 77

O protagonista deste bloco é o pai do poeta, Newton Ferreira.

SEXTO BLOCO: da página 78 à87

Os versos giram em torno da cidade de São Luis, verde e úmida, com seus ventos sonoros. A memória do autor busca os capinzais e sinestésicas evocações sexuais:

“vertigem de vozes brancas ecos de leite

De cuspo morno no membro

O corpo que busca o corpo”.

A sujeira acompanha implacável cada lembrança:

“buscando

Em mim mesmo a fonte de uma alegria

Ainda que suja e secreta”.

Ainda neste bloco, o título do poema se aclara (esclarece) nesta confidência do sanluisense:

“Ah, minha cidade suja

de muita dor em voz baixa

de vergonha que a família abafa

em suas gavetas mais fundas
de vestidos desbotados

de camisas mal cerzidas

de tanta gente humilhada

comendo pouco

mas ainda assim abordando de flores

suas toalhas de mesa

suas toalhas de centro

de mesa com jarros”

SÉTIMO BLOCO: da página 88 à 91

A cozinheira Bizuza, no seu “universo de panelas e canseiras” é a personagem citada neste bloco, ao lado da cidade de São Luis. De novo vem à reflexão sobre tempo e espaço, de novo o poeta evoca os mortos, os habitantes que não existem, mas são ressuscitados pela força da memória.

OITAVO BLOCO: da página 92 à 98

Este bloco trata da reflexão a respeito das coisas do cotidiano, a crença no trabalho humano, a valorização das coisas, etc.

NONO BLOCO: da página 99 à 103

Neste bloco o poeta, antecipando o seu último livro publicado, busca relacionar as coisas umas com as outras, deixa o fragmento e atinge a totalidade; o poeta, ao falar da sua infância, da família e dos objetos, cria uma intensa e tensa rede de relações, que se prendem à história. Dando um balanço em sua vida e em sua obra, em seu livro memórias, Ferreira Gullar conclui: “A vida não é o que poderia ter sido e sim o que foi. Cada um de nós é a sua própria história real e imaginária”.

A força poética da obra gullariana reside, portanto, na qualidade das sugestões psicológicas, no emprego inusitado da palavra e na capacidade de, como o próprio autor afirma: “explodir a linguagem” em versos que marcaram, pela singularidade, os rumos da criação poética brasileira. Isso sem mencionar a dignidade e a sinceridade co que assume a dureza da existência humana e a transfigura em poemas que evocam não apenas o universo paradisíaco da infância, mas também inscrevem um novo sentido ético, que seguramente nos torna mais conscientes dos mistérios de existir num mundo que, como diz Gullar, “espanca e comove”.

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