APRESENTAÇÃO
Um dos livros de Annie Ernaux mais adorados pela crítica e pelo público, Paixão simples é também um dos mais ambiciosos por sua tentativa de dar conta da radicalidade da experiência de se apaixonar. Nas breves páginas deste relato profundamente humano, publicado pela primeira vez em 1992, a vencedora do prêmio Nobel de 2022 esmiúça o estado de enamoramento absoluto que experimentou quando, já divorciada e mãe de dois filhos crescidos, viveu um relacionamento com um homem casado. Durante os meses em que se relacionou com A., toda a existência da autora foi regida por um novo signo, que ela disseca com precisão e franqueza. “Graças a ele”, afirma, “eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado”. Essa proximidade do limiar, tão própria do sujeito apaixonado, assume formas variadas no relato. A primeira fronteira a ser deixada para trás é a da razão, que cede espaço ao pensamento mágico por meio do qual se manifesta a expectativa agonizante de ser correspondida. Cada evento, palavra ou pessoa ao redor só tem interesse para Ernaux na medida em que a faz pensar em A. Cada minuto longe dele é uma espera que transcorre de forma diversa do ritmo da vida real. Tema recorrente na obra da escritora, o tempo em Paixão simples não obedece à lógica ou à História. “Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência”, eis o aspecto radical da paixão. Uma vez terminada a relação, o tempo entra em cena novamente, desta vez como índice do rastro deixado por um acontecimento marcante: “Estava sempre calculando, ‘há duas semanas, cinco semanas, ele foi embora’, e ‘no ano passado, nessa data, eu estava aqui, fazendo isso e aquilo’ […]. Pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura”. Verdadeira anatomia da alma apaixonada, este livro é também uma reflexão sobre o poder da escrita e um elogio ao luxo que é viver um grande amor.
RESENHA
O livro paixão simples da autora francesa Annie Ernaux, ganhadora do prêmio Nobel de literatura em 2022, com tradução de Marília Garcia, com lançamento no Brasil através da Fósforo editora é a obra mais distinta da autora que se diferencia não em grandiosidade descritiva, mas em intensidade e paixão. A obra lançada originalmente em 1992 se debruça em descrever os períodos de paixão e êxtase absoluto enfrentados pela autora ao se relacionar com 'A', um homem casado que participou de sua vida durante o período turbulento da vida de mãe solo de um casamento recém-acabado.
Ao conversar com outras pessoas, os únicos assuntos que rompiam minha indiferença estavam relacionados a esse homem, ao trabalho dele, ao país de onde vinha, aos lugares que conhecia. (p.8)
Ernaux descreve os efeitos efêmeros provocados pelos encontros casuais sem hora marcada com A, e toda a rotina que precedia de um aviso prévio de que, talvez, em uma hora algo pudesse rolar, como em uma paixão febril e avassaladora que toma conta do corpo mediante a oportunidade de um encontro adolescente regrado de sensualidade.
Se ele anunciava que viria dentro de uma hora — uma “oportunidade” tinha aparecido, ou melhor, uma desculpa para chegar tarde em casa sem que sua mulher desconfiasse [...] Meu desejo era não fazer nada além de esperá-lo (p.9)
Os encontros demoravam a acontecer, e quando finalmente aconteciam, ela não parecia se conectar completamente com o momento. Apenas com a ilusão do efêmero, que sabia que acabaria de forma repentina. Havia um tempo para que tudo se desenrolasse, e isso a deixava apreensiva. Não pelo medo do fim, que sabia que iria ocorrer, mas sim pela forma como se desdobrava.
Ele parecia não sentir algo tão intenso como ela, o que a fazia descrever minuciosamente sua preocupação em relação ao tempo e ao relógio que evitava usar, ao contrário dele, que nunca tirava do pulso. Isso a deixava desconcertada, incomodada e questionando o verdadeiro significado de suas conexões.
Durava apenas algumas horas. Eu nunca cava de relógio, tirava logo antes de ele chegar. Ele mantinha o dele, e eu temia o momento em que o consultaria discretamente. Quando ia à cozinha buscar gelo, eu olhava para o relógio em cima da porta, “mais de duas horas”, “uma hora”, ou “daqui a uma hora estarei aqui e ele terá ido embora”
E, ao final de cada encontro, ela permanecia imóvel contemplando o ambiente e a forma como a qual tudo se desdobrou. Acabou. Ela permanecia imóvel refletindo sobre os copos, talheres e sobre a bagunça, que, de certa forma, mantinham o encontro vivo e palpável. Aqui, ela descreve como uma adolescente em chamas pela paixão, a tristeza e cansaço que lhe tomavam ao findar dos encontros.
Os encontros demoravam a acontecer, e quando finalmente aconteciam, ela não parecia se conectar completamente com o momento. Apenas com a ilusão do efêmero, que sabia que acabaria de forma repentina. Havia um tempo para que tudo se desenrolasse, e isso a deixava apreensiva. Não pelo medo do fim, que sabia que iria ocorrer, mas sim pela forma como se desdobrava.
Depois que ele saía, um cansaço extremo me paralisava. Não conseguia arrumar as coisas de imediato. Ficava um tempo olhando os copos, os pratos com as sobras, o cinzeiro cheio, as roupas e peças de lingerie espalhadas pelo corredor e pelo quarto, o lençol sobre o carpete. Minha vontade era manter aquela desordem tal como estava. (p.11)
Após os encontros e os pensamentos sobre as vezes que viriam ou que poderiam vir a ocorrer, ela passava dias pensando nas carícias, no sexo, na presença e na forma como tudo se conectava, ainda, que, para mim, seus desejos não eram tão correspondidos se levarmos em consideração a forma como ela se entregava ao esplendor do ambiente e dos momentos, em contrapartida, suas descrições sobre a forma como ele admirava o ambiente e preocupava-se com a fluidez líquida dos encontros. O que, de certa forma, comprova que todo este âmago, de certa forma, eram apenas um prazer efêmero da descoberta de novas aventuras sexuais em uma vida pós-abandono, o que, claro, não tira em nenhum instante o mérito inflamável das descrições acaloradas de um amor que se renovava no dia-a-dia.
Ela descreve suas preocupações sobre um período de distanciamento com A, o que a fez querer buscar respostas com cartomantes, mas o que abandonou de ímpeto após pensar na possibilidade, de, que, talvez, seus temores fossem confirmados em relação à ausência dele. O alto teor preocupante da narrativa se intensifica através de um único pensamento da autora:
Uma noite, fui tomada pela vontade de fazer um exame de HIV: “Pelo menos isso ele teria deixado em mim” (p.30)
O pensamento de que, talvez, ele tivesse à deixado com o vírus do HIV correndo em seu corpo durante um período sem cura ou sem grandes expectativas é preocupante, mas se iguala em nível de paixão avassaladora, sobretudo, apenas pela vontade de possuir algo dele ainda em si, o que, talvez, acabasse com o sofrimento de sua partida repentina. Algo que, nem se ele quisesse, poderia toma-la.
Ela passou o ver em sonhos, em pensamentos e no dia-a-dia até mesmo nas coisas mais banais, seus pensamentos eram tomados de súbito enquanto pensava nos horários de um trem ou durante uma anotação qualquer, ele estava sempre lá, sempre presente. E essa descrição da autora em relação a como se sucederam os outros dias e momentos são intensificadas por suas breves divagações em forma de diário onde ela expõe sua rotina com a presença quase que palpável dele.
A obra se finaliza com a constatação do retrocesso de uma vida passada ao lado de A, ela descreve com um sentimento de livramento o sentimento e o último encontro, sobretudo, do nascimento do presente livro, ao qual ela descreve sutilmente: Ora, mas não escrevi um livro sobre ele, nem sobre mim mesma. Apenas expressei com palavras — que talvez ele nem leia, e que não são destinadas a ele — o que a existência dele, por si só, me trouxe. Um tipo de dom reverso. A paixão descrita pela autora é, sobretudo, bela em sua essência e única em características próprias da autora: sua capacidade de descrever com clareza e sentimentalismo profundo o mais perfeito encontro de um ser humano com o sentimento do amor - ou da paixão - que nos toma sempre em um momento inesperado da vida. Diferente de tudo o que já li da autora, mas único e incomparável como qualquer coisa expressa por Ernaux, certamente, um livro merecedor de muitos outros prêmios.