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[RESENHA #984] Destino Varanasi, de Patrícia Ruhman Seggiaro

SINOPSETudo o que acontece tem um sentido? Até que ponto podemos influenciar o nosso destino? Devemos aceitá-lo para atingir certa paz e, talvez, também a felicidade? Nina, brasileira, inicia uma viagem à Índia, desejando esquecer um passado perturbador e retomar o controle de sua vida. Um fotógrafo argentino, Pedro, viaja ao subcontinente para concretizar um projeto junto a Noah, escritor e jornalista israelense. Enquanto Noah anseia curar traumas de guerra, Pedro luta contra seus fantasmas pessoais. Mas a Índia recebe os peregrinos com seus próprios planos. Ao trio de viajantes, se somará Vishnu, indiano que Nina conhece assim que chega a Mumbai e que lhe transmite as tradições de seu país, misteriosamente próximas à sua alma. Cidade após cidade, os viajantes descobrirão um povo de costumes fascinantes. Quando os quatro caminhos confluírem em Varanasi e no Ganges imortal, cada um deles levará uma oferenda para encontrar o sentido de sua própria busca. As palavras de Borges, assim como as de Gandhi e de Buda, encontram em Destino Varanasi um eco longínquo, que a autora nos aproxima sob a forma deste romance cativante, que propõe uma maravilhosa aventura de autoconhecimento.


RESENHA


"Destino Varanasi" é um romance de estreia da escritora e advogada Patricia Ruhman Seggiaro, que narra a história de Nina, Pedro, Noah e Vishnu, quatro personagens cujos caminhos se cruzam na Índia. Cada um deles possui seus objetivos e motivações pessoais para viajar para este país tão fascinante.

A autora utiliza uma rica descrição da Índia desde o início da narrativa, apresentando ao leitor um país repleto de cores, aromas e sabores. Através dessa ambientação detalhada, somos transportados para as cidades caóticas como Déli e Mumbai, os monumentos históricos como Chand Baori e as cavernas de Ajanta e Ellora, e as regiões exóticas do Rajastão. A autora demonstra um profundo conhecimento e apreço pela cultura e religiosidade locais, o que enriquece ainda mais a história.

Ao longo da jornada dos personagens, o leitor acompanha não apenas suas experiências na Índia, mas também uma profunda reflexão sobre a busca por um sentido de vida e a superação de traumas pessoais. A autora explora a ideia de que o destino possui um propósito e busca questionar até que ponto nós podemos influenciar em nosso próprio destino. Através das experiências vividas pelos personagens, Patricia Ruhman Seggiaro provoca uma reflexão sobre a aceitação e a busca pela felicidade em meio às adversidades.

O romance se destaca pela sua narrativa fluida e envolvente, que mescla a história dos personagens principais com a história da Índia e suas tradições milenares. A autora utiliza a viagem como um elo entre os personagens e a cultura indiana, explorando os ensinamentos espirituais e as diferenças culturais que eles encontram ao longo do caminho.

"Destino Varanasi" é um livro que vai muito além de uma simples história de viagem. É uma obra que nos convida a refletir sobre o sentido da vida, a importância da superação e a busca pela felicidade. Com uma narrativa envolvente e uma ambientação rica em detalhes, Patricia Ruhman Seggiaro nos presenteia com uma história única e cativante. Certamente, seu romance de estreia é um grande sucesso e uma leitura imperdível para os apaixonados por literatura e pela cultura indiana.


Sobre a autora

Patricia Ruhman Seggiaro nasceu em 1965 em São Paulo, Brasil, onde passou a sua infância e juventude. Viveu alguns anos em Londres e Nova York, com seu marido, antes de se estabelecer na Argentina, onde reside com seus filhos e seu cachorro nos arredores de Buenos Aires. Advogada, é apaixonada pela literatura, pela história, pela arte, o contato diário com a natureza, a natação e a ioga.

Destino Varanasi é o seu primeiro romance, já publicado na Argentina em espanhol e disponível como Camino a Varanasi.

[RESENHA #687] Eu me amo (eu acho), de Sabrina Guzzon

Arte gráfica / Ed. Paraquedas

APRESENTAÇÃO

“Quando você ama, ama. Quando você quer, quer. Desculpas são usadas por quem perdeu ou nunca teve interesse em você”.

Como encontrar o amor, inclusive o próprio, depois de várias tentativas? Nesta prosa autoficcional divertida e às vezes ácida, Sabrina Guzzon conta a saga de uma mulher em busca de um final feliz. Prepare-se para um tratado honesto e contemporâneo sobre as relações amorosas e sobre o autoconhecimento.

“Ser amada, afinal, faz da vida verão”.

Neste texto em primeira pessoa, Sabrina Guzzon constrói uma personagem que não tem medo de expor fragilidades e traumas de maneira honesta e sem freios. Os cenários são de cinema, enquanto ela busca fazer da sua vida um filme. A jornada dessa (anti?) heroína é aprofundada a partir da sua longa lista de romances (ou projetos de) e de reflexões sobre o cotidiano, a pandemia e a maternidade.

Em meio a amores casuais, amassos na balada, enganações, abusos e tretas familiares, você também vai encontrar nessas páginas amor, ódio, redenção. E entender que todas as histórias merecem um final feliz.

RESENHA

O título da obra é uma resposta paradoxal da personagem em relação às diversas vezes que ouviu “você precisa se amar mais”. Nesta obra, a autora nos traz à tona um mix entre histórias e músicas que se casam em diferentes momentos de sua vida, por meio dos acontecimentos dramáticos e marcantes em sua vida amorosa.

Escrito em primeira pessoa, a obra “Eu me amo (eu acho)” descreve em cada um de seus 32 capítulos uma história diferente de submissão amorosa em relação a seus diversos companheiros, que diferem bastante entre si, não somente em profissão, mas também em locais e personalidades.

As narrativas se iniciam com a descrição de um relacionamento que agravou seu estado de sobriedade, levando-a a buscar ajuda psiquiátrica e medicamentosa. Dez anos se passaram e os efeitos ainda permanecem. Ainda que em tratamento, lê-se a frase “você queria o meu mal”. Uma história de devoção de mão única se faz presente em todos os capítulos. Alguém que buscou encontrar o amor em diferentes momentos e locais, com personagens distintos e repletos de si próprios, característica que, talvez, faltasse na protagonista.

Um homem que a encontra semanalmente prepara-se para gozar de forma solitária. Ela, usada e insatisfeita, reflete sobre as reais intenções que a fazem permanecer nessa roda solitária de “usa-o-meu-corpo”. Ele cantarolava como quem cantava para todas, os encontros eram famigerados e repletos de sensualidade e paixão, pelo menos esta era a visão que ela alimentava dentro de si.

As nuances transitam entre hotéis, casas e camas diversas. Eles eram cantores, entusiastas, amantes do sexo e do prazer. Ela buscava, até certo ponto, encontrar-se em alguém, o que lhe ocasionava em diversos momentos tristeza, dor, amargor e uma sequência interminável de pensamentos acerca dos reais impulsos que a faziam continuar em uma ronda interminável de encontros que lhe custavam a paz. Um encontro em uma boate de São Paulo revela-se efêmero. Ele levou dois minutos para o gozo (isso, dois minutos), casado, dono da boate e regrado a bebidas. Um ambiente onde ninguém de fato se conhecia ou ligava para o outro. Ela adormece no táxi e é roubada, a única coisa que lhe resta é agradecer a sorte de não ter sido morta ou abusada.

Um misto de homens compromissados atravessa seu caminho em diversos locais diferentes ao redor do mundo. Uma mulher abandonada em casa pelo marido empresário dono de boate, uma namorada largada às traças pelo namorado viajante, um cantor com compromissos e negócios a esconder. Nada parecia fazer sentido. Em diversos momentos, ela se questiona: por que os homens fazem isso?

"Minha autoestima piorou um pouco mais quando engordei. Eu já não me sentia atraente e merecedora de bons olhares e respeito" (p. 73, capítulo 12).

O homem aproxima-se, a química brota e nasce uma relação tortuosa e repleta de ofensas e sexo. A roda continuou girando acerca do relacionamento repleto de segredos e problemas mal resolvidos. Todos faziam questão daquele encontro e torciam para que desse certo (p. 77).

Uma obra se finaliza após a protagonista conhecer alguém que mudou sua vida, alguém que a fazia dançar sem motivos. O principal ensinamento é que talvez o amor seja questão de escolha. Um livro que narra em cada capítulo um episódio diferente de dor e crescimento, uma obra que transita entre o que queremos e o que recebemos, ou como reagimos quando recebemos algo com o qual não estamos habituados. Singelo e lindo, merecedor de muitas leituras e prêmios. Guzzon, você me cativou em cada relato.

A AUTORA

Mãe da Maria Flor e do Antonio, suas melhores obras. Publicitária e pesquisadora, já lançou três livros: Louco é quem não amaA terapeuta virtual e Emiliano. Apaixonada por ouvir pessoas e suas histórias, continua sendo uma estudante da vida cotidiana. Uma aprendiz de si própria, gosta de criar narrativas que dissequem a alma. Constantemente atrás de verdades que emocionem, considera a busca pelo amor próprio uma jornada sem fim

[REENHA #685] A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta, de Cynthia Araújo

 APRESENTAÇÃO

A partir de experiências profissionais e pessoais, e de um recorte de sua pesquisa de doutorado com pacientes com câncer metastático, Cynthia Araújo constrói uma reflexão sensível e contundente sobre o viver e o viver sob a perspectiva da morte. Como advogada da União, entre tantas atribuições, ela defendeu o Estado brasileiro em casos de fornecimento de medicamentos caros pelo SUS a pacientes com câncer. Centenas de processos e entrevistas com pacientes oncológicos depois, a autora levanta questões que interessam a cada um de nós, com câncer ou não, em A vida afinal.

Remédios que podem prolongar um pouco a vida de quem espera deles uma cura ou décadas inteiras pela frente — um abrir mão do presente com qualidade pela expectativa de um futuro que tantas vezes não vem. Escolheriam os mesmos tratamentos se soubessem o que realmente podem oferecer? Neste ensaio, o olhar da autora está voltado para as percepções sobre esse tempo a mais de vida de quem está próximo do fim e para a finitude que paira no ar de cada um. Sua escuta em depoimentos no Brasil e na Alemanha a conduzem pelo tortuoso caminho dos sentimentos, das emoções e das ações de quem não tem mais tanto tempo entre os seus afetos e sonhos.

RESENHA

A vida afinal é um livro escrito pela escritora e advogada Cynthia Araújo, publicado pela editora Paraquedas, selo da editora Claraboia.

O câncer é uma das doenças que mais matam no mundo. É conhecido por possuir tratamentos, mas não uma cura definitiva. Os medicamentos e as tecnologias atuais são, em sua maioria, uma tentativa de salvar a vida do paciente, o que nem sempre ocorre, levando em consideração o grau de avanço da doença pelo corpo. Um câncer metastático que está no auge de sua evolução requer paciência, compreensão e uma metodologia diferente das convencionais para o tratamento, não para a cura. Expor ao paciente de forma que ele entenda que está vivendo seus últimos dias é um dos processos mais complexos e difíceis da atualidade.

No Brasil, os registros dividem-se entre câncer de colon, próstata, mama e pele. Há, segundo estatísticas, 192 novos casos de câncer entre os homens a cada 100.000 habitantes, e entre as mulheres a taxa é de 179 casos a cada 100.000 habitantes. Em síntese, 51,4% para os homens e 48,6% para as mulheres.

A morte é um tabu. A única certeza que temos na vida é que ela um dia acabará, não importa o que você pensa sobre a vida ou como ela terminará, o fim chegará para todos. Cynthia desenvolve em sua obra uma perspectiva que ilumina os pensamentos e reflexões acerca da morte. Desenvolvido através de uma tese de doutorado, a obra desvendará os pensamentos acerca da morte e a ressignificação da vida durante diagnósticos ou vivência de câncer e doenças em estado terminal. Para a autora, realizar planos desmedidamente sem refletir sobre o caráter imprevisível da vida é uma forma de limitar o ser humano a viver a vida com mais afinco e verdade.

Para a autora, o mais necessário durante o progresso da doença é a clareza e exposição dos reais acontecimentos acerca da finitude da vida, preparando a pessoa para o momento cautelosamente, criando assim, a certeza de uma morte digna. Desta forma, o paciente pode se preparar para viver sonhos e metas realistas, não se pautando na incerteza do amanhã ou de uma cura que não virá. Entender que se está nos últimos dias ou meses de vida é crucial para se viver uma vida com mais afinco.

A autora descreve como seu papel como advogada da união influenciou sua decisão em abordar este tópico em uma tese de doutorado: “minha pesquisa investigou o papel da esperança em casos de doenças graves e refletiu sobre como a ilusão de sobreviver e projetar um futuro pode desviar a atenção do viver o presente da melhor forma possível (p.21).” Neste mesmo relato, a autora fala sobre como os processos de solicitação de medicamentos para tratamentos avançados de câncer eram previsíveis e todos com estado de urgência com características, em sua maioria, de metástase. Isso a fez refletir se, de fato, aqueles pacientes acreditavam mesmo em uma possibilidade de cura ou melhora. Como no caso de alguém na casa dos trinta anos que está se tratando com o terceiro quimioterápico, se realmente acreditava em uma melhora, ou no caso de uma idosa de oitenta anos com um tumor agressivo em uma condição tão frágil de vida e saúde realmente desejava receber mais tratamentos.

Seguindo o raciocínio, a autora declara que uma fala de um colega de profissão, o Dr. José Luiz Nogueira, acendeu em si uma confirmação de que suas teorias estavam certas. Em determinado momento de uma conferência, ela perguntou ao doutor sobre os medicamentos que eram liberados para os pacientes com câncer, e ele respondeu: “Olha, esses medicamentos que o senhor leu aqui, o paciente vai morrer. Todos. Com ou sem medicamento. Não tem mágica, não tem jeito, são pacientes com câncer em estágio avançado, metastático, péssimas condições. (p.21)”.

A tecnologia e os inúmeros tratamentos e medicamentos existentes não fomentam maior recuperação ou regressão para diversas doenças, mas podem, em suma, melhorar, mas não agir com efeitos ou milagres nos pacientes. Quando pensamos na morte — e pensamos raramente — sempre pensamos que ela chegará apenas para o idoso e para o debilitado ou adoecido, mas ela chega para todos, e pode ser em qualquer momento, e ter ciência da finitude da vida é uma forma de aproveitar todos os dias como se fosse o último, porque um dia será. E assim como rejeitamos a ideia de proximidade e noção da morte, rejeitamos diagnósticos de doenças e a previsibilidade da aproximação da morte próxima de nós — família, amigos, cônjuges, filhos, e nós mesmos.


Mesmo jovens. Mesmo jovens demais.

Mesmo saudáveis. Mesmo saudáveis demais.

Idealizamos que quem morre é sempre o outro. Até que não é mais.


Em síntese, a obra de Cynthia Araújo abre precedentes para um debate acerca da vida através da reflexão na morte, através do poder de valoração do dia-a-dia e da companhia de quem amamos, pois cada instante pode ser o último. A obra também questiona o papel do poder público, dos familiares e amigos durante o processo de descoberta e vivência de cânceres, em especial os metastáticos, em relação à exposição da verdade para o acometido pela doença. As reflexões também pautam-se na esperança que se é fomentada por promessas e omissão de informações para os pacientes, sejam por protocolos ou por pedido dos familiares. A vida afinal é uma obra poderosíssima que reflete a finitude da vida e o papel ético em relação à morte ao processo de vida nos últimos dias do paciente. Uma obra poderosa e necessária.

Sobre a autora

Cynthia Pereira de Araújo é advogada da União, membro da Advocacia-Geral da União desde 2009, e coordenou a atuação contenciosa na área de saúde de Minas Gerais (2014-2015). Mestre e doutora em Direito pela PUC-Minas, sua tese, Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida, foi indicada pelo programa de pós-graduação da PUC-Minas ao prêmio Capes de Teses 2020. Em 2021, foi convidada para expor sua pesquisa no 9º Simpósio Internacional Oncoclínicas e Dana Farber Cancer Institute.

Nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e mora em Belo Horizonte, em Minas Gerais, com o marido Daniel e a filha Beatriz, para quem compôs a música “Beatriz II”, lançada em 2022

ENTREVISTA | O prazer e a dor de amadurecer: uma entrevista com a escritora potiguar Clara Bezerra sobre o livro “Roupa de Ganho”

Composto por um pouco mais de 100 poemas e aforismos, Roupa de Ganho” (Editora Paraquedas, 140 pág.), primeira obra de Clara Bezerra (@clara_bezerra), presenteia o leitor com versos que descrevem as dores, os prazeres e os desencontros do crescimento. Para revestir as emoções, a autora se vale de um vocabulário ancorado na geografia marítima. As águas, portanto, são abundantes na escrita, e povoam o livro em suas mais diferentes formas, trazendo consigo um sem número de metáforas possíveis. 


A nomenclatura dos capítulos, inclusive, fazem alusão a esse universo. São eles: Córrego, Correnteza, Travessia, Mergulho e Fôlego. Em cada um, a escritora busca agrupar poemas relacionados e que de alguma forma conversam entre si. A cadência da escrita segue a metáfora dos nomes dados a cada parte do livro com a dramaticidade dos versos dilatando à medida que as páginas são viradas, como se fosse a metamorfose da inocência para consciência. 


As águas que se derramam por toda a obra tem influência do território ocupado por Clara Bezerra da infância até os dias de hoje. A potiguar, nascida em Acari e criada em Cruzeta, municípios vizinhos e que ficam a cerca de 215 km de Natal, hoje, adulta, vive na capital do Rio Grande do Norte. Formada em Letras - Língua Portuguesa e em Comunicação Social - Publicidade, Clara tem especialização em Planejamento Estratégico em Comunicação e mestrado em Estudos da Mídia. Trabalha com Comunicação Institucional e escreve de forma paralela, além de estudar psicanálise e dançar por prazer. 


Confira a entrevista completa com a autora:


O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

Este livro é a reunião de textos que escrevi desde os 20 anos, portanto, são os registros de processos de vida que se passaram em mim nos últimos 15 anos. Eles falam do meu amadurecimento, do meu caminho de me tornar adulta e mulher, das coisas que perdi, dos lugares por onde passei, dos meus medos, mas principalmente da minha coragem porque também é uma exposição muito íntima. Como poesia, não é linear, não conta uma história com início, meio e fim e o processo de decisão em fazê-lo também não foi assim. Pensei em fazê-lo inicialmente há uns cinco anos. Reuni o que tinha e desisti. Há dois anos decidi retomar o projeto. Filtrei os textos que já tinha escolhido, adicionei outros, pedi a uma amiga que me ajudasse com a ordem e a estrutura. No final de 2022 entrei em contato com algumas editoras e decidi publicá-lo pela Paraquedas.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?

Acho que a palavra que mais tem neste livro é água. A segunda é casa. Não são os temas, mas são significantes que dão uma certa condução ao livro. Eu diria que ele fala dos caminhos que uma mulher fez para validar sua existência, com fluidez como a água, mas na busca do abrigo que encontramos em uma casa. É uma mulher nordestina que sai do seu lugar de origem e passa por muitos outros, buscando construir um lugar de morada dentro de si. O nome “Roupa de Ganho” veio de uma inspiração nas lavadeiras que conheci na minha infância. Essa expressão era usada na cidade onde cresci para designar as mulheres que lavavam roupa como trabalho. Quando postei a capa do livro uma amiga historiadora perguntou se tinha a ver com “escravos de ganho”. Fui pesquisar o que era e descobri que lavagem de roupa era um dos serviços que esses escravos prestavam a fim de receber renda, a qual era revertida em parte para os “seus donos”. A capa do livro é uma foto de 1886, de lavadeiras, e imagino que poderiam ser escravas. Alguns textos do livro trazem essa temática, especialmente o da página 57 (óvulo). Essa coincidência me lembra também o misticismo e a intuição que estão no poema “água de anil”, na página 16. Este título, inclusive, seria o nome do livro. Mudei em uma conversa com uma amiga, quando falei a expressão “Roupa de ganho” e ela perguntou do que se tratava. A partir daquele momento considerei que esse outro título dava mais concretude ao livro. Por se tratar de caminhos, busca, também o vejo como um processo de libertação. Ele está dividido em cinco partes: Córrego, que traz o início desse percurso; Correnteza, quando essas águas que vão seguir começam a ficar mais fortes, mais volumosas e mais claras do que são; Travessia, que marca os lugares atravessados; Mergulho, tocando a busca pelo amor, e Fôlego, dedicado ao trabalho com a palavra, que dá forma a isso tudo.

Por que escolher esses temas?

Eles não foram escolhidos, foram percebidos e extraídos dos textos escritos nesses últimos 15 anos. Como uma admiradora da psicanálise, é como se fossem a leitura extraída do inconsciente, que aos poucos vai construindo uma história e um conhecimento não conhecido. Eles foram sendo construídos no meu percurso de vida e de escrita.

Quais são as suas principais influências literárias? 

Cresci lendo os livros da biblioteca pública da cidade onde morava e do armário da minha mãe, que era professora de Língua Portuguesa. Meus primeiros contatos foram quase que diretamente com os clássicos da literatura brasileira e portuguesa: li uma coleção inteira de Aluísio de Azevedo com cerca de 12 anos, se não me engano, além de Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz e por aí vai. Uma paixão dessa época é José Mauro de Vasconcelos e o Meu Pé de Laranja Lima. Minha mãe não gostava muito de poesia, lembro de apenas um livro de poemas entre os que ela guardava: Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade. Encontrei a poesia nos trechos que vinham nos livros didáticos da escola e em outros materiais. Desde o início me fisgaram. Eu saltava as páginas dos livros de Língua Portuguesa no início do ano para ver o que encontrava. Então, inicialmente, foram os poetas brasileiros, principalmente os do Modernismo, que costumavam estar mais presentes nesses materiais. Depois fui encontrando aos poucos, aleatoriamente, e construindo um caminho de leitura que me levou a Cecília Meireles, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar, Manoel de Barros, Drummond, Orides Fontela, entre outras e outros.


Que livros influenciaram diretamente “Roupa de Ganho”?


Os que li nesse percurso, mas alguns de forma mais forte. Penso que existe nele as marcas de uma melancolia que encontrei em um José Mauro de Vasconcelos e em um Manuel Bandeira, de uma certa coragem e transgressão de uma Ana Cristina Cesar, de um misticismo que vi em Hilda Hilst, de uma certa doçura que encontrei em Cecília Meireles, de uma força transformadora que vejo em Drummond e de uma simplicidade que aprendi com Manoel de Barros.


Tenho um texto que gosto muito sobre essa minha relação com os livros. Vou deixar aqui o link: https://medium.com/@clarabezerra/carta-de-amor-aos-livros-c90ff769a3cb

Escreve desde quando? Como começou a escrever?

A primeira lembrança de escrita que tenho é de quando eu tinha oito anos. Estava na segunda série e a professora trouxe um poema para a gente copiar em um cartão para o Dia das Mães. De forma muito espontânea, sem nem perguntar se podia, eu não copiei o poema: fiz os meus próprios versos. Lembro até hoje: “Mamãe, mamãezinha, / Me ensina por favor / Esse mistério tão bonito / Que é o amor”. O cartão eu dei para minha mãe e ela perdeu, mas também lembra até hoje das palavras. Depois disso, a escrita sempre foi minha companheira, mas era algo muito secreto, que eu não mostrava a ninguém. Com as redes sociais, comecei a compartilhar algumas coisas, mas sempre de uma forma muito espontânea também, como legendas de fotos e reações a coisas que sentia. Lançar este livro é dar concretude à pessoa que venho me tornando, mas também de dizer para mim mesma: sim, eu escrevo.

Como você definiria seu estilo de escrita?

Difícil para mim dizer isso. Como água, acho que é fluido, mas consistente, formando imagens fortes, mas de forma cuidadosa e delicada. Ele se aprofunda nos dilemas de uma mulher, mas faz isso de uma forma simples, ao passo que leitoras e leitores de diferentes formações podem se atrair e se identificar.

Como é o seu processo de escrita?

Espontâneo, acho que essa é a melhor palavra. Quando o texto vem não espera e também não dificulta a escrita (talvez por isso também seja fluido). Posso trabalhar também de uma forma determinada e objetiva, mas a grande maioria dos textos que estão neste livro surgiram de forma espontânea, sem planejamento: como se eles simplesmente saíssem de mim, claro que com um trabalho posterior de burilamento, às vezes até reescrita.

Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?

Não. Pretendo experimentar uma rotina de escrita para ver o que sai disso, mas até agora, tudo o que escrevi de forma paralela ao trabalho de comunicadora veio de forma espontânea.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Neste momento, curtir o lançamento deste que é o meu primeiro livro.

[#LeiaNacional] Entrevista com Cris Oliveira, autora de ❝Escova de dentes❞


Com uma escrita experimental, que traz influências da poesia concreta, da poesia narrativa e do haicai japonês, "Escova de dentes” (104 pág) é o livro de estréia da bibliotecária paulistana Cris Oliveira (@cris_taiane), uma das finalistas da chamada de publicação em poesia da Editora Claraboia. Publicado pelo selo de publicação assistida da Claraboia, a Editora Paraquedas, o livro tem orelha assinada pela escritora Ana Rüsche, finalista do Prêmio Jabuti em 2019. 


Nascida em 1974 em São Paulo, capital, Cris Oliveira é formada em Biblioteconomia e Documentação pela USP e trabalha com gestão de coleções digitais e metadados na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, na Suíça, onde reside. Participou em antologias da I Jornada de Poesia Virtual e do VI Festival de Poesia de Lisboa, tem textos publicados na Ruído Manifesto, selo Off Flip e no blogue da Bibliotrónica Portuguesa da Universidade de Lisboa. 


Hoje, Cris nos conta um pouco mais sobre como se deu seu processo criativo em uma entrevista esclarecedora. Confira abaixo:

1. Escova de dentes é um livro sobre cotidiano e sobre como somos afetados por momentos, tensões e sentimentos no decorrer do dia a dia, porém, a obra não constitui um fio condutor, tornando a leitura fluida e única para cada leitor. Como optou por escrever uma obra nesta temática e com essa forma tão específica?

Sim, escrevi os poemas ao longo de quatro anos a partir de observações e reflexões feitas durante minhas perambulações e em momentos do cotidiano que envolvem desde tarefas triviais a experiências mais importantes como relações e sentimentos. Essa pergunta é muito boa porque me obriga a tentar entender a minha escrita, coisa que ainda não domestiquei, e que também não quero. Acho que a obra foi tomando um rumo sem eu me dar conta, e durante o processo surgiram perguntas, crises e muita reescrita. Encontrei poemas mais antigos que estavam na gaveta e que cabiam, e assim acho que foi nascendo o conjunto da obra, que fui descobrindo enquanto fazia. Acho que isso é o que mais gosto da escrita, a descoberta, seja fechando um poema com um verso ou uma rima, seja na revisão, na construção e reconstrução. Citando Peninha, “quando a poesia fez folia em minha vida”, o que mais me fascinava, e ainda me fascina, é a ideia da poesia nesse lugar onde tudo é possível, que nos convida a sair do costumeiro, de regras e formatos, de padrões, que nos convida a mudar o olhar. Eu acho que feras devem ser eternamente feras, e a escrita é isso pra mim, um bicho lindo, um instinto de criação que vem da natureza, de fora e de dentro da gente, que cria e recria sem parar, com a qual devemos conviver e compartilhar, não controlar. Momentos bons são momentos de harmonia com essa força, a poesia só pode ser isso, e é preciso entender menos e sentir mais. Pensar com o corpo. Esse é o lugar onde quero estar. A poesia é o portal e é o destino ao mesmo tempo. Gosto muito das provocações, do encanto poético, alguns poemas são mesmo respostas a poemas de grandes mestres, um atrevimento que é todo meu nessa experimentação que flerta com o sublime da poesia concreta, do haicai e da poesia narrativa. Talvez seja esse um fio condutor, a poesia experimental, essa forma. E, quando prestamos atenção, o ponto exato está ali, num detalhe. A palavra é o invento que faz o livro. Enfim, a poesia é tão primorosa que ela pode ser o que ela quiser, gosto de pensar que ela me dá carona. A última parte do livro, “Free soul”, é também essa afirmação. 

2. O título do livro é homônimo a um de seus poemas que exprime toda ideia central da obra. Ele foi o primeiro a ser escrito? Como optou pelo nome da obra?

Na verdade, o poema de título homônimo ao título do livro é um dos mais recentes, eu acho que foi o penúltimo poema que escrevi antes da publicação. Dar títulos a poemas não é uma tarefa fácil para mim. Eu brinco que um título pode ser um spoiler ou pode arruinar um poema, sobretudo quando limita a interpretação e condiciona a leitura. O Escova teve dois outros títulos, um pouco tristonhos. Precisei entender o que queria com minha escrita; gosto do encantamento da poesia através do humor, do jogo de palavras e de imagens. Foi relendo o “Escoliose” da Ana Frango Elétrico e o “Grapefruit” da Yoko Ono que tomei coragem de ousar, e o título veio do poema “visual arts”, e já tinha escrito o poema da epígrafe, que passou a ser epígrafe quando escolhi o título. “Hábitos atômicos” veio depois. Em espanhol tem uma palavra que eu adoro (por sua sonoridade e significado), que é “desubicado”, que é algo ou alguém fora do lugar, e a escova de dentes na geladeira é arte, é distração e é provocação para sair do piloto automático. O Escova talvez seja um livro desubicado.

3. Uma obra que aborda coragem e determinação ao mesmo passo em que somos tomados por sentimentos e aflições, um convite a encorajar-se nas questões difíceis. O caminho percorrido nas linhas tem algum motivo específico? por que decidiu falar sobre sentimentos de forma tão implícita?

Touché. Puxa, eu acho uma maravilha essa troca que a poesia proporciona, gosto de pensar que podemos ter a arte como cura porque ela é, é nosso alento, é inspiração, é nossa voz, é nossa resistência, é nossa união e identidade, individual e coletiva. Não é possível nadar no mar sem sentir a força das ondas, é meio clichê, mas a vida são esses movimentos, são momentos, a sensação que o tempo nos dá de ancorar, de não dar mais pé, de afundar, ou de boiar, esse entendimento de que é uma parceria mais do que uma luta para poder seguir nadando. Ao mesmo tempo, o poeta é um fingidor, bem disse Fernando Pessoa, os últimos anos não foram fáceis para ninguém. Quiçá na minha busca pela palavra exata, as dores sou eu e o verso são os outros. Quanto à franqueza, vou culpar a minha lua em virgem.

4. Pretende lançar outras obras dentro da mesma temática?

Eu gostaria muito de, independentemente do tema, conversar mais com o lirismo contemporâneo, que pra mim é um lirismo sem frescura, é lúcido, crítico e bem humorado, é popular e sofisticado ao mesmo tempo. Este é um desejo que surgiu quando li Marília Garcia, Alice Sant’anna, Filipa Leal e Ana Martins Marques: gosto da poesia narrativa. Talvez seja a continuação ou o contar de uma história o que me atrai como próximo desafio. Por outro lado, sempre gostei de poemas curtos. Quanto ao tema, eu ainda não sei ao certo, mas estou num ponto de inflexão na minha vida e novas reflexões não faltarão.

5. Como você se sente com as recepções que sua obra vem tendo?

Quando eu comecei a escrever eu não sabia o que queria com minha escrita e não imaginava que chegaria a publicar um livro. Eu fazia postagens de versos novos no instagram ou mostrava para pessoas mais próximas, e só quis publicar o livro quando me senti menos insegura (demorou). Pula para 2023, meu livro foi lançado em maio e tive um retorno muito caloroso da minha família e amigos num primeiro momento. Como novata, estou aprendendo os tempos do livro e me surpreendendo com o seu alcance. Gosto muito de como as leituras podem ser variadas, aprendo com cada comentário que me mandam e com as resenhas, me emociono. Adoro quando me mandam mensagens: até agora foram todas positivas. Veremos!

6. A obra possui uma divisão específica em capítulos que leva o leitor a uma abordagem metodológica em relação ao porvir, por que optou por não usar um sumário em sua obra?

Originalmente, no processo de organização do livro, quando criei as quatro partes, também criei um sumário, mas não entrou na diagramação.

7. Qual sua relação com a poesia? Por que decidiu escrever uma obra poética?

Gosto muito de contar essa história, meu contato diário com a literatura e o cancioneiro popular começou desde muito criança, eu acho que é o caso de muitos brasileiros, somos muito musicais. Digo isso porque eu acho que as rimas e as métricas da canção e como e onde ela nos toca, tudo isso foi muito importante na minha formação de poeta. Eu gostava das aulas de redação na escola, nunca abandonei a leitura, mas no mercado de trabalho só escrevia textos técnicos, e-mails e memorandos. Eu acho que meus poemas, que brotavam diariamente, surgiram num primeiro momento de uma necessidade de expressão, talvez de uma crise precoce de meia idade e de identidade, na minha condição de estrangeira morando em Genebra. Genebra é uma cidade internacional onde a gente anda de ônibus e ouve cinco ou seis línguas facilmente, é algo fascinante. Eu tinha perdido um pouco o contato com o que estava acontecendo na cena musical brasileira contemporânea antes de descobrir o programa Som a Pino da Roberta Martinelli, quem gentilmente topou assinar a quarta capa do meu livro. E quis muito que fosse assim por ela ter sido o cupido. A Roberta faz um trabalho muito lindo, ela mantém um espaço importantíssimo para artistas fora do mainstream e para nós ouvintes e amantes da música. Eu jamais tomaria conhecimento, morando longe do Brasil, de tanto repertório. Então foi mesmo um marco importante, foi quando eu passei a frequentar shows de música e voltei a escrever cada vez mais, até que decidi me matricular no curso de poesia da Universidade de Oxford. Nessa época, ainda não havia cursos à distância em língua portuguesa, muito menos de poesia.

8. Todo seu manuscrito nos leva para reflexões diárias e algumas até passageiras, qual a relação do seu emocional no ato da escrita com o resultado final da obra?

Alguns poemas que compõem o Escova de Dentes passaram por diferentes fases. Acho que sim, o emocional está presente até nesse inventar. Eu já chorei e já ri com meus próprios poemas, e ainda acontece. No início, ousava mais e era mais ingênua, e fui amadurecendo a escrita com leituras e reescrita. Nessa persistência, que durou dois anos, eu acho que consegui tirar o eu da poesia. Nos cursos discutimos a questão do distanciamento necessário para que o poema não seja sobre ou para mim mesma. Aprendi diferentes técnicas, mas não gosto de formas predefinidas e regras na hora da criação, tenho a impressão que o consciente é para reescrever, a criatividade e a loucura para criar precisam de outros recursos mentais ligados à espontaneidade e ao inconsciente, e por que não, à emoção.

9. Qual conselho daria para quem está começando seu primeiro livro?

Eu acho que participar de saraus, bate-papos de literatura, clubes do livro, cursos e oficinas, e enviar poemas para revistas e blogs independentes de literatura são excelentes oportunidades para mostrar nosso trabalho e ao mesmo tempo conhecer outros poetas e leitores de poesia. Eu uso as redes sociais e acho que funciona para ganhar seguidores e também conhecer o trabalho de outros poetas, às vezes acontece toda uma troca de dicas e de belezas. Ou seja, tirar os poemas da gaveta, revisá-los e organizá-los, circular sem medo de se expor, é um bom começo para depois publicar. Já com o manuscrito organizado, eu recomendaria fazer uma leitura beta ou crítica como parte do processo de revisão e finalização antes de mandar para as editoras. 

10. Quais são seus projetos para seus próximos livros, o que podemos esperar por aí?

Ainda não tenho projeto de livro, mas continuo escrevendo. Em maio sucumbi às tais newsletters e criei o “Poetim Frívolos Trejeitos”, um boletim poético de notícias do momento, é meu flerte com a prosa, que na verdade é um desejo de prosear com leitores. Estou começando, e aqui fica o convite para quem quiser acompanhar (vou adorar): https://crisoliveira.substack.com. Tem até uma carta pra Clarice Lispector. Além disso, meus planos até o final do ano são curtir a publicação do “Escova de dentes” e me dedicar ao estudo e prática de tradução literária.

[RESENHA #571] escova de dentes, de Cris Oliveira


APRESENTAÇÃO

A poeta não é uma fingidora. O que ela fingiu por um tempo foi que não era poeta. Segurou, disfarçou, mas as palavras que ela tanto tinha começaram a sair, a ocupar espaço, a voar. Palavra presa quer sair; pessoa, então... “Minha coragem é minha liberdade”, ela escreveu e eu li.

Corajosa e livre, Cris Oliveira lança seu primeiro livro colocando nosso cotidiano em poesia e nos fazendo repensar cada palavra. Para ler e reler sem cansar e sempre descobrindo coisas novas.

— Roberta Martinelli

RESENHA

Cris Oliveira é uma escritora nata, em seu primeiro livro ela desdobra sobre as minúcias do cotidiano da vida, como escovar os dentes ou espetar o bolo quente com palito de dente. Sua prosa altamente revigorante transita entre o agora e o amanhã, livre de pretensões ou planejamentos, é tudo assim, solto no ar como a poesia deve ser. 

A obra é um emaranhado poético elaborado com um fio condutor espelhado, não começando do início e não tendo um caminho específico à se tomar, mas se estilhaçando em diversos pedaços e lugares distintos, pois sua poética soma-se em sua totalidade, alternando entre um poema e outro sempre com resquícios de um poema anterior, todos fomentados de forma minuciosa pelas descrições do cotidiano, do medo, do fracasso, da dor e dos desejos que circundam a esfera cívica emocional.

o poema palito de dente, na página 22 é uma descrição sobre a vida cotidiana que as vezes levamos solitariamente de forma descontinuada sem percebermos enquanto vivenciamos o agora, a crítica é, de certa forma, uma forma de pensar e repensar o agora e o depois por meio da própria companhia, bem como o desenvolvimento que encontramos na solitude que desfrutamos em nossa própria companhia.

ando meio sem verbo nem verbete

tenho um pingente

de coração

uso palito de dente

para furar

bolo quente

fincar azeitonas

limpar as unhas

desentupir o bico da super cola

quase não vejo gente


ando sem ter o que

dizer sem

saber o quem

pra quem (p.22)

o poema que dá título ao livro é uma descrição daquilo o que fazemos continuamente todos os dias, daquilo que ansiamos e sentimos saudade, é a experimentação da prova do desapego às rotinas, ao passo de que somos levados à completar-nos com a saudade do que fazíamos e do que fazemos para distrair a saudade daquilo o que costumávamos vivenciar. A obra contem 102 páginas e diversos poemas que transitam entre os sentimentos aflorados no cotidiano e nos sentimentos que sentimos ou deixamos de sentir por meio da ação do tempo, cada poema carrega em si uma particularidade única que torna a experiência com a escrita da autora algo mágico, único e que vale a pena viver, não apenas uma outra vez, mas sempre, como num exercício de autoreflexão.

Já no poema sobre o desperdício (p.45), a autora nos fala sobre a importância de dizer o que temos para declarar ou enfatizar, de não deixar passar a hora, nem o momento não desperdiçando oportunidades de falar o que sentimos no momento em que sentimos.

tudo o que eu não digo

cai no despercebido

um maldito não dito (p.45)

 já o poema se (p.49), é o mais proeminente quanto o assunto é sentir e viver.

se

não cutucar mais a ferida

botar panos quentes

tocar o sapato velho

descascar o abacaxi

arrumar a gaveta

vestir a camisa

acertar os relógios

juntar             o ir e vir

dobrar mais uma esquina

jogar o jogo

não perder o      fôlego

voltar para casa

virar a maçaneta

entrar

A obra de Cris trabalha na síntese de que somos tomados por sentimentos durante o dia-a-dia, observa-se, que, em seu primeiro livro, a autora optou por uma abordagem não-direta, abrindo caminhos para interpretações eu em detrimento do sentimento que nos evoca no momento, entre outras palavras, a obra tensiona uma experimentação individual de cada leitor, afinal, cada um vive e sente de uma forma diferente, mas a receita é apenas uma: o dia-a-dia.

la bise, poema que me tomou por completo, pag. 91, é uma experimentação acerca dos sentimentos que nos tomam quando menos esperando -  quando bate o vento frio, são ares ou pesares? quando somos tomados pela ansiedade somos invadidos pelo processo do agora, mas não focamos no final, e por fim, somos dominados pelo poder do agora, não refletindo no porvir, tudo não passa de um eterno ferme de budé, p.90 :

penso no vento

que balança

o trigo

penso no trigo

não penso no pão.

poemas que nos lembram da brevidade dos momentos, como em na fotografia:

não sei e você está tirando ou calçando o sapato, p.87.

Em síntese, a obra é um convite à experienciarmos o simples da vida. Neste primeiro livro a autora traz questões relevantes para uma reflexão diária, a leitura de seus poemas torna-se necessária durante todos os dias, como um exercício de auto-análise e reflexão. Sem dúvidas, uma autora proeminente que conquistará uma legião de fãs de poesias.

A AUTORA

Cris Oliveira (@cris_taiane) (São Paulo, 7 de março de 1974) é formada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo e trabalha com gestão de coleções digitais e metadados na sede da OMS em Genebra. Frequentou os cursos Escrevendo Poesia da Oxford University, Escrita Criativa da Esc. Escola de Escrita e Narrativas Curtas da Universidade de Cambridge. Atualmente frequenta o curso de Tradução: Inglês-Português da Universidade de Toronto. Participou em antologias da I Jornada de Poesia Virtual e do VI Festival de Poesia de Lisboa, tem textos publicados na Ruído Manifesto, selo Off Flip e no blogue da Bibliotrónica Portuguesa da Universidade de Lisboa. Escova de dentes (Paraquedas, 2023) é seu primeiro livro.


[RESENHA #559] Meu caminho de volta para casa, de Dani Floresani

FLORESANI, Dani: Meu caminho de volta para casa / Dani Floresani. - 1ed. - São Paulo: Paraquedas, 2022. 184p

A busca por um propósito em meio da dor, livro de Dani Floresani é um emaranhado poético da busca pelo divino em meio á dor de momentos e lembranças enraizados no amor e afeto maternal.

Meu caminho de volta para casa, de Dani Floresani, é um discurso poético e doloroso da autora, uma descrição precisa, dolorida e minuciosa de um período ao qual não podemos fugir: a dor. A narrativa aborda os acontecimentos e percalços enfrentados pela autora ao descobrir o diagnóstico da doença de sua mãe: ELA (esclerose lateral amiotrófica), uma doença degenerativa progressiva que afeta o sistema nervoso central causando paralisia motora irreversível, os pacientes desta doença morrem de forma precoce ao perder a capacidade de executar tarefas cruciais como comer, caminhar e falar.

O diagnóstico veio de forma precoce, causando dor e sofrimento à toda a família, impactando diretamente o sentimental e emocional de Floresani, ela narra os períodos em que duvidou das certezas e da existência de um Deus, sobretudo, por sua ausência de contato com a religião, bem como sua ausência de conhecimento e sentimento de incapacidade de sentir os milagres impostos pela crença, o que a levou experienciar diversas religiões, sem preconceito, enxergando ali, a beleza da crença e da devoção.

O apoio emocional era apenas de uma amiga próxima, ao qual ela chamava carinhosamente de Tata, que por fim, morrera cedo, deixando-o órfã de um poderoso acolhimento. Agora, precisava se reerguer para o triste fim de sua mãe, enquanto os sintomas avançavam, até o momento em que sua mãe passa à depender de uma bengala para caminhar, o que a fez buscar um curso sobre a doença em um hospital, rodeado de pessoas e equipe médica que estavam transitando ou haviam transitado pelo período. A descoberta da progressão por meio de vídeos e palestras à fez chorar copiosamente, quase que de forma inconsolável, à levando para a capela do hospital para buscar acolhimento em Deus, na crença à qual ela, naquele instante, não era detentora.


A autora então, decide mudar-se para Três Lagoas, cidade interiorana localizada em Mato Grosso do Sul, o local de morada de sua mãe, onde crescera e compartilhara lembranças da fazenda onde morara, das brincadeiras, banhos de mangueira, momentos de descontração e felicidade, tudo isso, descrito como algo estranhamente certo à se fazer.

Nada fácil, nada difícil, apenas uma decisão que eu não gostaria de ter tomado. Porém, ela foi inspirada por uma estranha certeza. O próximo passo seria, então, tomar todas as providências práticas para aquela transição.

Naquele momento, a autora decidira mudar os rumos de sua vida e adotar novos caminhos, delineando novas rotas e sentimentos, abandonando para trás, tudo o que não lhe cabia, ela então se desfaz de tudo o que não quer levar para a nova vida: roupas, objetos, detalhes, lugares e momentos, era de fato, uma despedida para o inicio de um novo ciclo. Tudo isso para que ela pudesse se reconectar com Deus, o que a fez enxergar que o que ela buscara para o alívio estava ali o tempo todo: a fé.

Depois de um encontro como esse, a vida jamais voltaria a ser como era antes. Porém, para os olhos externos, eu era apenas mais uma paciente.

A partir dai, a autora narra viagens, encontros e desencontros dela com Deus, consigo mesma e com a mãe, tudo parte de um processo difícil de aceitação do momento, mas agora, sem o pesar da dor, mas a beleza da fé e das convenções por ela imposta. A autora descreve momentos lindos de conversa na varanda, de perdão, de entrega e de descoberta, sua narrativa é fluida e completamente envolvente, impossível não se emocionar. Uma obra, certamente, incrível e completa, dedico esta leitura à todos os amantes de uma escrita afetuosa, e para todos os desamparados buscando por soluções ou uma luz no fim do túnel, esta é, e sempre será, uma boa pedida.

Em cada lugar que eu visito, eu me lembro dela.

A autora

 Dani Floresani é formada em psicologia. Se mudou para os Califórnia, nos Estados Unidos, onde morou por onze anos, se tornou mestre em medicina tradicional chinesa e seguiu se especializando na China. Regressou ao Brasil e continuou seus estudos em terapias energéticas, integrando a sua prática. Trabalhou anos com atletas, aplicando a medicina chinesa para preparação e recuperação de competições. Foi professora na Faculdade Ebramec, em São Paulo e no Rio de Janeiro. É pesquisadora das artes cênicas desde a infância, e participou de grupos de estudos no teatro Vendo Forte e Grupo Tapa. Na Califórnia participou também de workshops e vivências. Começou a escrever poesia em 2018 e esta é sua primeira obra publicada.

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