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[RESENHA #971 Sombras Longas, de Patrícia Lavelle

“Articulando o semântico ao semiótico, a visualidade à sonoridade e ao deslocamento, esse movimento chama a atenção do leitor para o caráter performativo de palavras, imagens e pensamentos. Estes, em sua mútua afetação, focalizados muitas vezes narrativamente, enquanto produção contínua, descontínua e hesitante, nos transportam do mito à filosofia e à poesia, através de mãos, vozes e línguas várias. Desde Filomela e Penélope a Safo, Artemísia Gentileschi, Orides Fontela e Adília Lopes, entre outras, vão emergindo as muitas referências femininas que, desentranhadas de um cânone masculino – também representado por pintores, poetas e pensadores – habitam a poesia de Patrícia.”

__Célia Pedrosa

RESENHA

Neste novo trabalho de poesia de Patrícia Lavelle, uma das características mais notáveis é sua ênfase no aspecto simbólico. O uso das imagens é ainda mais proeminente, criando uma atmosfera visualmente cativante. A primeira parte do livro é composta por uma série de poemas que exploram a relação entre palavras e imagens, acompanhados de reproduções dos quadros mencionados. Um exemplo fascinante desse diálogo entre poesia e imagem, um paradigma transformador que mantém sua musicalidade sonora. O poema é habilmente construído, utilizando atributos meticulosamente camuflados. Essa abordagem minuciosa da forma destaca-se em uma produção relativamente revigorante.

A autora utiliza uma variedade impressionante de recursos formais. Ao lado de textos que transitam entre prosa e verso, criando uma teia intrincada, a autora nos leva à poderosas reflexões. Essa combinação entre prosa e verso livre ressoa tanto no nível da forma, como também no paralelo entre a reflexão filosófica e a elaboração poética. Partindo da imagem onde os sonhos escapam da especulação racional, emergimos em uma posição intrigante entre a figura paradoxal e a representação. Temas essenciais e intrinsecamente ligados ao feminino são explorados, como a questão da identidade e a natureza da linguagem. O que distingue a obra da autora, tanto em poesia quanto em ensaio, é sua perspicácia intelectual e o contínuo diálogo com autores que foram fundamentais para sua própria formação.

Navegando entre o ritmo decassilábico e a prosa poética, dialogando com imagens e referências, a autora se estabelece como uma criadora de uma poética lúdica e translúcida da poesia contemporânea brasileira.

Analisando o poema homônimo ao título da obra:

Nas sombras que um foco de luz
projeta no fundo de uma caverna

platão projetou a imagem do saber
ilusório das imagens

o meio-dia é a hora lúcida, a ghora do rigor vigoroso
 pensava Nietzsche, sem a sombra de uma dúvida

Mas ceras verdades sobrevivem às sombras:
são elas que obram nas sobras
 e como sombras se alongam
 quando declina o ângulo
 de incidência
 da luz

Esse poema apresenta uma análise antropológica sobre a relação entre o conhecimento humano e a realidade. O autor utiliza referências a filósofos famosos, como Platão e Nietzsche, para trazer uma reflexão sobre a natureza ilusória das imagens e a busca pela verdade.

A metáfora da caverna de Platão é evidentemente explorada no início do poema, onde a luz projetada cria sombras que representam o conhecimento ilusório das imagens. Isso sugere que aquilo que percebemos como realidade pode ser apenas uma interpretação criada por nossa mente.

Em contraste, Nietzsche é mencionado como alguém que pensa no meio-dia como a hora lúcida, sem dúvida. Aqui, o autor sugere que Nietzsche acreditava na existência de uma verdade absoluta, sem ambiguidade ou ilusão.

No entanto, o poeta argumenta que algumas verdades sobrevivem às sombras, obrigatoriamente trabalhando nas sobras. Essas verdades podem ser interpretadas como perspectivas ou interpretações da realidade que ainda possuem validade mesmo em meio a uma ilusão aparente. O fato de elas se alongarem quando o ângulo de incidência da luz declina sugere que essas perspectivas podem se fortalecer e se tornar mais visíveis quando se afasta da superficialidade e se aprofunda na realidade.

Em suma, essa análise antropológica do poema sugere que a busca pelo conhecimento e pela verdade envolve um constante questionamento sobre a natureza da realidade e a ilusão das imagens. O poeta argumenta que, apesar da ilusão aparente, existem verdades que permanecem e se fortalecem quando se aprofunda na realidade.

Os textos apresentam uma análise profunda e sofisticada das obras de Patrícia Lavelle. A crítica valoriza a habilidade de Lavelle em explorar a relação entre palavras, imagens e formas poéticas. Além disso, os textos destaca a perspicácia intelectual da autora, mostrando como eles dialogam com outros grandes pensadores e artistas. A crítica também ressalta a importância dos temas explorados, como identidade, linguagem e a busca pela verdade, o que contribui para a relevância da poesia contemporânea no Brasil.

[RESENHA #970] No espaço, com Lygia Pape, de Veronica Strigger

SINOPSE

Se, na época de Méliès, Mallarmé e Malevitch, o espaço sideral é ainda algo distante, intangível, aproximado apenas por meio do telescópio, na de Lygia Pape e dos irmãos Campos, esse espaço se torna mais próximo, mais concreto, alcançado por naves e navegado por homens e mulheres. O que há em comum a todos esses artistas é uma imaginação do espaço. Há como que uma captura da imagem do espaço sideral para servir como uma espécie de modelo à constituição do espaço gráfico (da página do livro ou da folha da gravura), pictórico ou até mesmo do espaço real, como no caso do Ballet neoconcreto e do Livro da criação, de Pape. É como se todos estivessem sempre a olhar para o céu, estrelado ou não, em busca não tanto de inspiração, mas de um companheiro de viagem.

RESENHA

No espaço com Lygia Pape é um livro escrito por Veronica Strigger, que proporciona uma visão esclarecedora e inspiradora sobre a vida e obra da renomada artista brasileira Lygia Pape. A obra de Lygia Pape é conhecida por sua originalidade e diversidade, e Strigger faz um excelente trabalho ao explorar as diferentes facetas do trabalho da artista. O livro aborda os principais aspectos históricos das realizações de Pape, incluindo sua performance. A autora vai além das discussões técnicas, ao mergulhar na vida e no contexto social em que Pape viveu. Ela explora as influências culturais que moldaram o trabalho de Pape.

No espaço com Lygia Pape não é apenas uma homenagem à artista, mas também uma reflexão sobre o poder da arte e seu impacto na sociedade. Strigger faz uma análise cuidadosa dos temas abordados por Pape, como pano de fundo principal, a criação de um filme, La Nouvelle Création, ao qual Pape desenvolveu para inscrevê-lo num concurso de curtas metragens, e por fim, sair vencedora, após ser a única brasileira inscrita concorrendo com outros 72 filmes. Sobre sua obra, Pape descreve: ❝Imaginei o homem não mais só sobre a terra, mas no espaço, pois começavam as grandes viagens interplanetárias. Consegui imagens da NASA sobre o primeiro voo de um cosmonauta: - ele surge (em branco/preto) na tela, evoluindo no espaço como um feto ligado à nave/útero por um cordão umbilical. Ele faz algumas evoluções, e de repente, a tela fica vermelha (em uma viragem) e ouve-se o choro de um bebê - nascia o novo homem: La Nouvelle Création.❞ (p.8)

A imagem do cosmonauta surgindo em preto e branco na tela, evoluindo como um feto ligado à nave ou útero por um cordão umbilical, pode representar o nascimento de uma nova era para a humanidade. As evoluções do cosmonauta no espaço podem simbolizar o crescimento e desenvolvimento do ser humano, tanto no aspecto físico quanto intelectual. No entanto, a reviravolta ocorre quando a tela se torna vermelha, provavelmente representando uma mudança significativa. O choro de um bebê pode ser interpretado como o nascimento de um novo homem, "La Nouvelle Création", sugerindo uma transformação profunda e uma nova forma de existência. Essa interpretação traz elementos de progresso, exploração espacial e renascimento do indivíduo e da humanidade como um todo. Ela pode sugerir esperança e potencial para um futuro melhor ou uma visão utópica de uma nova era em que o homem se expande além dos limites terrestres. Além disso, o livro também proporciona um olhar intimista sobre a personalidade de Pape, revelando sua paixão pela arte e seu compromisso em criar obras que desafiam as convenções e estimulam a reflexão. Através de depoimentos de pessoas próximas, Strigger mergulha na mente criativa da artista, revelando os desafios e conquistas enfrentados ao longo de sua carreira.

A obra de Pape é uma forma de elucidar sua genialidade em exprimir os sentimentos de uma nova criação por meio de um roteiro milimetricamente projetado para imersão abstrata do público em relação ao poema expresso na tela.

Uma das principais influências presentes nesta obra é a filosofia existencialista, que busca compreender a existência humana e sua liberdade de escolha. Lygia Pape utiliza elementos como a geometria e a abstração para criar um ambiente que convida o espectador a refletir sobre seu papel no mundo e suas possibilidades de ação.

Outra influência perceptível é a filosofia fenomenológica, que se concentra na experiência individual e na maneira como percebemos e interpretamos o mundo ao nosso redor. A artista utiliza formas e cores para criar uma experiência sensorial única, convidando o espectador a se envolver com a obra e refletir sobre sua própria percepção da realidade.

Além disso, é possível identificar influências do pensamento de Gilles Deleuze, especialmente sua teoria sobre o devir e a diferença. Pape explora a ideia de transformação constante e de como o indivíduo pode se reinventar e se adaptar às mudanças do mundo, refletindo os conceitos deleuzianos de multiplicidade e individualidade.No espaço com Lygia Pape é uma leitura enriquecedora e cativante para qualquer pessoa interessada em arte contemporânea e na história cultural do Brasil. Veronica Strigger oferece uma perspectiva relevante e esclarecedora sobre a obra de Pape, ao mesmo tempo em que nos leva a refletir sobre o poder transformador que a arte pode ter em nossas vidas.

[RESENHA #593] Também eu danço, de Hannah Arendt

 

APRESENTAÇÃO

Quem imaginaria que um dos maiores nomes da filosofia política do século XX nos legaria também poemas? Originalmente não destinados à publicação, temos nesta antologia 71 poemas escritos ao longo da vida de Hannah Arendt. Tendo por base a edição alemã estabelecida apenas em 2015 – uma publicação póstuma e recente, como se vê –, os poemas reunidos aqui atuam também como sinalizadores da biografia da filósofa, marcando suas alegrias, amores, amizades, perdas e reminiscências.

Segundo Patricia Lavelle, em seu texto de orelha: “Escritos entre 1924 e 1961, com uma longa interrupção entre 1933 e 1942, o lugar destes poemas líricos é a vida interior de Hannah, seus amores e amizades. Mas embora não fosse uma ‘profissional’, para usar a expressão irônica da poeta Ana Cristina César, a jovem precoce de Königsberg, que aos quatorze anos já lia Kant, Kierkegaard e os românticos alemães, também não era poeticamente ingênua.

A escrita poética prolonga a correspondência de Hannah Arendt, em endereçamentos a interlocutores que também foram intelectuais importantes. Um primeiro ciclo de poemas, que vai de 1924 à 1927, está relacionado à paixão de juventude que ela viveu com Martin Heidegger, então um carismático professor casado, mas ainda não comprometido com o nazismo. Mais tarde, compartilhou o gosto pela poesia com seu colega de estudos Gunter Anders, com quem se casou. No exílio, dedicou versos ao grande amor de sua vida, o também filósofo Henrich Blütcher, seu segundo marido.

Entre seus poemas, encontramos também homenagens a amigos como Walter Benjamin, que Arendt dizia pensar poeticamente, o escritor Hermann Broch ou ainda o sionista Blumenfeld, líder do movimento de resistência ao nazismo no qual ela atuou. Versos surgem ainda no seu ‘diário de pensamento’, em releituras de Goethe ou Platão, entre outras referências.”

RESENHA


O livro "Também eu danço" é uma coletânea de poemas da renomada filósofa e teórica política Hannah Arendt. Publicado postumamente em 1995, o livro apresenta uma faceta menos conhecida da autora, que é a sua habilidade como poeta.

Os poemas exploram uma variedade de temas, incluindo amor, solidão, natureza, morte e a condição humana. Através de sua linguagem poética, Arendt expressa suas reflexões profundas sobre a existência humana e as complexidades da vida moderna.

Além dos poemas, "também eu danço" também contém alguns ensaios e reflexões da autora. Essas reflexões ampliam nosso entendimento das ideias e preocupações de Arendt, abordando questões como a natureza da liberdade, a importância da ação política e a necessidade de pensar criticamente em tempos de crise.

Hannah Arendt é mais conhecida por suas obras filosóficas e políticas, como "Origens do Totalitarismo", "A Condição Humana" e "A Vida do Espírito". Ela foi uma das mais influentes pensadoras do século XX, contribuindo para o campo da filosofia política e para a compreensão das estruturas de poder, autoridade e liberdade.

Suas obras são caracterizadas por uma abordagem multidisciplinar, combinando elementos da filosofia, política, história e sociologia. Arendt foi uma crítica contundente dos regimes totalitários e do conformismo político, enfatizando a importância da ação individual e do engajamento político para a preservação da liberdade e da dignidade humana.

O poema "também eu danço" de Hannah Arendt é uma obra poética excepcional que merece ser apreciada e elogiada. Através de sua linguagem poética rica e evocativa, Arendt consegue transmitir uma profunda introspecção e uma reflexão sobre a existência humana.

Uma das grandes qualidades do poema é a sua capacidade de nos transportar para um mundo de imagens e emoções intensas. Arendt utiliza metáforas e analogias de forma magistral, criando uma atmosfera poética envolvente que nos faz refletir sobre os mistérios e as complexidades da vida.

Além disso, o poema aborda uma variedade de temas universais, como amor, solidão, morte e a busca por significado. Arendt mergulha profundamente nesses temas, explorando-os de maneira sensível e provocativa, o que nos leva a uma reflexão profunda sobre nossa própria existência e experiências.

A linguagem poética de Arendt é poderosa e cativante. Seus versos fluem harmoniosamente, criando um ritmo e uma musicalidade que adicionam uma dimensão adicional à experiência de leitura. Sua habilidade de escolher as palavras certas para expressar emoções complexas é notável e nos permite nos conectar de maneira íntima com suas reflexões.

Além disso, o poema "também eu danço" nos convida a uma jornada de autodescoberta e autoconhecimento. Arendt nos lembra da importância de nos conectarmos com nossas emoções e de nos permitirmos dançar com a vida, mesmo em meio às incertezas e desafios que enfrentamos.

Em suma, o poema "também eu danço" é uma obra de arte poética que nos convida a mergulhar em uma reflexão profunda sobre a existência humana. A linguagem poética de Hannah Arendt, combinada com sua sensibilidade e profundidade de pensamento, fazem deste poema uma leitura enriquecedora e inspiradora.

Um poema bastante marcante da obra ganha destaque na capa traseira da obra, sendo este, sonho:

Pés flutuando em brilho patético

Eu mesma,

também eu danço, 

livre do peso

no escuro, no imenso.

Espaços cerrados de eras passadas

distâncias trilhadas

começam a dançar, a dançar.


Eu mesma,

também eu danço,

Irônica e destemida

de nada esquecida

eu conheço o imenso

eu conheço o peso

eu danço, e danço

em brilho irônico.

O poema "Sonho" de Hannah Arendt é uma obra que carrega um significado profundo e complexo, refletindo a natureza da experiência humana e a busca por um sentido de liberdade e identidade. Através de sua poesia, Arendt explora temas como a alienação, a solidão e a esperança.

Arent usa de sua prosa prolífica e altamente fervorosa para descrever o caminho da vida por meio das tensões e dos resquícios do passado e do livre cargo das emoções e do peso do escuro e dos arrependimentos:

também eu danço, livre do peso, no escuro, no imenso. Também eu danço, irônica e destemida

A obra é extremamente visceral e dilacera o leitor de dentro para fora, usando de suas influências literárias profundas, Arent nos arrebata em sua essência para a transição do agora e do exercício de reflexão âmago que rege a vida e os momentos. A maioria de seus poemas não tem título, pois não se titula sentimentos, apenas sente-se. Indicado para todos, não há aqui exceção. HANNAH É E SEMPRE SERÁ, a poetisa mais prolífica e completa que este mundo já conheceu.

A AUTORA

Hannah Arendt foi uma filósofa e teórica política contemporânea. Judia nascida na Alemanha, Arendt vivenciou os horrores da perseguição nazista, o que motivou a sua pesquisa sobre o fenômeno do totalitarismo. Suas principais obras são “As Origens do Totalitarismo”, “Eichmann em Jerusalém”, “Entre o Passado e o futuro” e “A Condição Humana”.

[RESENHA #563] Dezessete anos, de Colombe Schneck


APRESENTAÇÃO

Em Dezessete anos, Colombe Schneck estabelece um diálogo direto com a escritora Annie Ernaux, Prêmio Nobel de Literatura. A ideia do livro surge como resposta ao que Schneck descreve como uma espécie de convocação de sua antecessora: “Senti como se ela se dirigisse a mim. Eu precisava contar o ocorrido naquela primavera de 1984”. Era preciso falar sobre a experiência do aborto, um dos atos mais frequentes e, também, mais secretos na história das mulheres. Assim, tal obra, agora no Brasil, traz uma importante contribuição a respeito desse tema tabu, sobre o qual tão pouco se falou na literatura e que envolve interditos ligados ao corpo da mulher.

RESENHA


O livro de Columbe Schneck é um relato difícil de ler de uma mulher no auge de seus dezessete anos que descobre o prazer e a perda do controle das ações. Ela era jovem, sentia-se, de alguma forma, presa, ela precisava descobrir-se livre de amarras e obrigações e sentimentos ociosos, queria desvendar o poder do sexo, da liberdade sexual e do poder de controlar o que poderia ou não experienciar. Seus pais, médicos, estavam apostos, presentes em alguns momentos, mas não em todos. Ela tinha dezessete anos e toda inocência de uma criança ou de alguém em tal período, ela sabia que era livre e feliz, mas ela queria uma confirmação.

A narrativa segue em forma de diário, ainda que não tendo datas ou marcações, a escrita mostra-se descontinuada, entre um trecho e outro, a autora aborda os sentimentos naquele momento, o que estava sentindo ou pensando. A procura pela liberdade sexual lhe custou tudo o que sempre sentiu: conforto e segurança. Após começar a sair com seu colega de sala, Vincente, ela decide ir mais a fundo, encontrá-lo sozinha, dormir em sua casa. Ele, de igual idade, possui toda liberdade que os pais dão a um garoto, o que é incomum para as meninas, talvez isso explique a busca pelo sentimento de liberdade da autora naquela ocasião. Ali, naquela cama de solteiro, de um garoto de dezessete anos, ela cria uma narrativa para que tudo flua bem, na cabeça dele, era era experiente, e apesar de não ser, foi o caminho adotado em sua narrativa para gerar confiança mútua, afinal, não se sabia se o grau de experiência de ambos era o mesmo.

O corpo era quente, os toques suaves e os movimentos sinfônicos, estava tudo ali...perfeito, a liberdade de poder escolher e vivenciar gritava por seus corpos. Aconteceu. FIM, era o fim, pelo menos naquele momento. A partir da escolha e do prazer, ela encontra-se desolada após um período, ela sabia que estava grávida, e todo abandono que ela jamais sentira, lhe toma conta do corpo. Ela não pode contar com os pais, o que eles pensariam sobre ela? O que ela estava sentindo naquele momento? era comum? Era um período difícil, e ela buscava algum tipo de refúgio, foi ai, que ela encontrou na literatura um amparo, alguém que havia sentido e passado por tudo o que ela passou: Annie Ernaux, em sua obra o acontecimento, onde ela descreve sua própria experiência com o aborto ilegal na França naquele período, o aborto, não é um tema lindo de ser, não é floreado e muito menos mágico, é o oposto disso. Ninguém em nenhum lugar, ainda que legal em alguns países, descreve sobre o processo e as dores sofridas e decorrentes do aborto, mas Ernaux descreveu...sua obra, na época, não teve grande repercussão, mas falou diretamente com ela... Seus sentimentos, tristezas e dores eram assim: palpáveis, era pele com pele e o desespero era o mesmo.

Era como se, nas palavras da autora, tivesse sido expulsa de seu mundo (p.28).  A culpa pesa ainda mais quando ela passa a refletir sobre o período histórico ao qual ela se encontra, afinal, tudo o que era pior já havia passado: guerras, luta por direitos, problemas civis, dentre outros. Então, porquê se sentir daquela forma naquele período? O que doía mais naquele momento?

Entro num mundo distinto, um mundo coercitivo no qual não se trata mais de fazer dever de casa, ver filmes, convidar ou não certas amigas. Trata-se de vida e de morte, da minha vida, do meu futuro, da minha liberdade, daquilo o que acontece no meu corpo e que pode ser a vida ou nada, e pelo qual sou responsável (p.28)

O livro é uma dor autodeclarada. A autora narra períodos difíceis, e podemos notar que, não cabe à nós julgar. Ela estava sozinha por diversos motivos, e os que mais doíam eram aqueles que a faziam ver que a culpa era toda sua, a escolha, sua liberdade e as consequências. Mas ela prossegue. Sua vida é o rastro do que sobrou naquele momento, todo processo, dor e acompanhamento médico são motivos de sobra para serem perseguidas, afinal, o que devemos sentir ao buscar ajuda e ouvir de um médico que interromper uma gravidez era uma atitude séria, impensada e que devesse ser pensada muito antes de concretizada? Alguém em busca de ajuda não deve ser julgada, pelo menos não com todo emocional fragilizado.

A obra de Colombe Schneck é isso: dor e crescimento. Uma obra escrita para reflexão interna e externa dos leitores, um exercício de compaixão. Não cabe à nós olhar com indiferença, apenas entender.

Dolorido do começo ao fim, um caminho repleto de dores e tristezas e insegurança. Uma obra de extrema importância e relevância. Dolorido como tem que ser.

A AUTORA

✨ Colombe Schneck, nascida em 9 de junho de 1966 na França, é escritora, jornalista e diretora de documentários. Autora de onze livros, de ficção e não ficção, recebeu prêmios da Académie Française, da Madame Figaro e da Society of French Writers, além de ter sido finalista dos prêmios Renaudot, Femina e Interallié. Seu trabalho foi traduzido para oito idiomas ao redor do mundo.

Bolsista da Villa Medicis de Roma e do Institut Français, além de uma bolsa Stendhal que permite que escritores franceses façam pesquisas e escrevam no exterior, ela também passou quinze anos como locutora do Canal Plus, France TV e Radio France.

Com uma obra de forte teor autobiográfico, plena de narrativas de filiação, relatos de infância, autoficções e romances autobiográficos, seu livro “Dezessete anos” foi lançado na França em 2015 e é o primeiro livro de Schneck a ser publicado no Brasil.

Trata-se da curta, densa e sóbria história de seu aborto, aos dezessete anos, a um mês de se formar no ensino médio. Um acontecimento nem banal nem dramático: nunca esquecido.

✍🏼 “E eis que aqui estou, aos dezessete anos, grávida, como tantas outras moças, como Annie Ernaux, filha de um pequeno comerciante de Yvetot, em 1964, como Marie-Claire, a adolescente de Bobigny, julgada em 1972. Fui atingida pela minha condição feminina, não sou mais aquela que se esquiva escrevendo a biografia de Napoleão, lendo cinco vezes seguidas a autobiografia de Lauren Bacall durante o verão dos meus onze anos.”

📚 O livro foi traduzido por Isadora Pontes e Laura Campos.

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