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Resenha: História da felicidade, de Peter N. Stearns



APRESENTAÇÃO

Ser feliz é algo diferente para cada pessoa, mas também tem sido diferente ao longo da história, em diversas regiões do planeta. Sempre houve a busca por existências felizes, mas o que é considerado felicidade e a forma como as pessoas conseguem configurar suas experiências variam muito e dependem de circunstâncias históricas específicas. Assim, a visão histórica melhora nossa compreensão dessa emoção humana, mesmo para observadores interessados principalmente em padrões contemporâneos. Neste livro veremos como a felicidade é produto das concepções religiosas do passado, do iluminismo, do capitalismo comercial, da imensa indústria do entretenimento moderno, do aconselhamento psicológico, além de todas as possíveis variáveis pessoais, familiares e locais adicionadas à mistura. " A grande revolução, como se acompanha no livro, está na Idade Contemporânea. O aumento da importância da felicidade é um fenômeno dos séculos XVIII e XIX.." - Leandro Karnal "Stearns faz percursos que singularizam o tema da felicidade e o desembaça por meio de explicações que o tornam em determinados períodos mais que evidente.

RESENHA


O livro História da felicidade destaca como fatores como o iluminismo, o capitalismo, a industrialização e as grandes religiões contribuíram para definir o que significa ser feliz em diferentes contextos históricos. Ao abordar temas recorrentes como o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais e o papel da família, Stearns nos convida a refletir sobre as complexidades e nuances da felicidade. Com uma abordagem que combina história, filosofia e psicologia, "História da Felicidade" não apenas ilumina o passado, mas também oferece valiosas lições para o presente, ajudando-nos a compreender de onde vêm nossas ideias atuais sobre felicidade e como podemos buscar uma vida mais plena e satisfatória.

O capítulo "As bases psicológicas" explora a complexidade da felicidade e a dificuldade em defini-la, abordando como psicólogos e a psicologia positiva têm investigado o tema nas últimas décadas. Destaca-se que, embora a disciplina não tenha solucionado todos os mistérios da felicidade, ela oferece parâmetros para compreender suas características principais. Inicialmente, a felicidade foi associada à juventude e baixas aspirações, mas estudos posteriores mostraram que idosos também relatam felicidade, e que pessoas ambiciosas podem ser felizes.

A felicidade é vista como uma emoção básica, expressa universalmente através do sorriso, e desempenha funções importantes, como reforçar comportamentos benéficos e equilibrar emoções negativas. A psicologia distingue entre "satisfação com a vida" e "bem-estar subjetivo", conceitos que ajudam a entender a felicidade em diferentes contextos e ao longo do tempo.

O capítulo aborda debates sobre o papel da genética na predisposição para a felicidade, sugerindo que, embora exista um componente genético, as pessoas podem modificar seu nível de felicidade através de ações e mudanças de perspectiva. Psicólogos também discutem a importância de fatores como saúde, relacionamentos saudáveis, altruísmo e conexão espiritual na promoção da felicidade.

O autor reconhece que a busca excessiva pela felicidade pode ser contraproducente e que as diferenças culturais e sociais influenciam como a felicidade é percebida e vivenciada. A psicologia e a história, juntas, podem oferecer uma compreensão mais abrangente da felicidade, considerando tanto as influências coletivas quanto individuais.

O capítulo "A Era da Agricultura" aborda o surgimento e desenvolvimento das economias agrícolas, que começaram há cerca de 11 mil anos e dominaram a maior parte da população mundial por pelo menos 6 mil anos. Essa era é dividida em vários períodos principais, incluindo o período formativo, o surgimento das primeiras civilizações hidráulicas, o período clássico (aproximadamente de 600 a.C. a 500/600 d.C.), o período pós-clássico e o início do período moderno (1450 a 1750).

Durante o período clássico, importantes sistemas filosóficos emergiram, abordando a definição de felicidade. O capítulo também menciona o impacto das grandes religiões e o desenvolvimento dos entretenimentos populares, especialmente a partir de 300 d.C. até o século XVII. Essa periodização ajuda a entender a história da felicidade, embora não a defina completamente. Os capítulos seguintes exploram essas divisões cronológicas, destacando as transformações culturais e econômicas significativas ao longo da era agrícola.

O capítulo "Os primórdios da sociedade agrícola" explora a transição das sociedades de caçadores-coletores para a agricultura, sugerindo que essa mudança pode ter reduzido o nível de felicidade humana. As sociedades de caçadores-coletores eram relativamente igualitárias, com boa nutrição e menos desigualdade, mas a introdução da agricultura trouxe novas dificuldades, como dietas menos nutritivas, maior carga de trabalho, doenças e desigualdades sociais e de gênero.

A agricultura permitiu maior produção de alimentos e crescimento populacional, mas também gerou desigualdades significativas. Aristocratas e proprietários de terras desfrutavam de privilégios, enquanto a maioria enfrentava condições difíceis. As sociedades agrícolas desenvolveram narrativas de uma Era de Ouro passada, refletindo a percepção de uma deterioração em comparação com a vida anterior.

O capítulo sugere que, embora a agricultura tenha trazido avanços, também introduziu desafios que aumentaram a complexidade da felicidade humana. As sociedades agrícolas tiveram que criar novos modos de vida e conceitos para mitigar as dificuldades e buscar a felicidade, diferenciando-se das experiências mais simples e satisfatórias dos caçadores-coletores.

O capítulo "Dos filósofos: a felicidade no período clássico" explora como as sociedades clássicas, especialmente no Mediterrâneo e na China, desenvolveram filosofias e conceitos em torno da felicidade, refletindo sobre a sua natureza e como alcançá-la. Com o surgimento das primeiras civilizações, surgiram também ideias mais complexas sobre felicidade, influenciadas por condições objetivas e sistemas de valores. 

No Egito antigo, por exemplo, a felicidade era associada à gratidão aos deuses e à continuidade da vida terrena na vida após a morte, enquanto na Mesopotâmia, a visão era mais melancólica e os deuses exigiam obediência. No mundo clássico, debates filosóficos sobre a felicidade foram centrais, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e a razão como caminhos para a verdadeira felicidade, diferenciando-se dos prazeres materiais. Aristóteles, por exemplo, via a felicidade como uma atividade da alma expressando virtude, enquanto os estoicos defendiam a limitação dos desejos.

Na China, o confucionismo enfatizava a harmonia com a ordem natural e a importância das conexões humanas, enquanto o taoísmo valorizava a simplicidade e a sintonia com o universo. Ambas as tradições filosóficas buscavam distinguir o verdadeiro prazer da satisfação superficial, oferecendo uma visão que compensava as dificuldades da vida.

O capítulo também aborda o impacto dessas filosofias, questionando até que ponto influenciaram a experiência real de felicidade e destacando a tensão entre os conceitos filosóficos e as práticas populares de entretenimento. As filosofias clássicas tiveram um impacto duradouro, com o confucionismo moldando a visão chinesa de felicidade e as ideias gregas e romanas sendo reinterpretadas ao longo do tempo, especialmente com a ascensão de novas religiões.

O capítulo "Das grandes religiões: felicidade – e esperança?" analisa como as grandes religiões, surgidas principalmente entre 600 a.C. e 1400 d.C., impactaram as concepções de felicidade. Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo, embora distintas, compartilham a ideia de que a verdadeira felicidade transcende a existência terrena e está ligada a um plano espiritual ou vida após a morte.

O hinduísmo estabelece uma hierarquia de felicidade, culminando na realização espiritual após sucessivas reencarnações, enquanto o Budismo, fundado por Buda, propõe que a verdadeira felicidade resulta do desapego dos desejos mundanos, alcançando o Nirvana. O Cristianismo enfatiza a vida eterna no céu como a verdadeira felicidade, incentivando a esperança e a moderação dos prazeres terrenos. O Islamismo, semelhante ao Cristianismo, valoriza a vida após a morte, mas reconhece as bênçãos terrenas como dádivas de Deus.

Todas essas religiões ofereceram não apenas um caminho para a felicidade espiritual futura, mas também formas de alcançar satisfação e comunidade na vida presente, através de práticas como meditação, oração e caridade. No entanto, a ênfase na vida após a morte e a crítica aos prazeres mundanos também introduziram um elemento de ansiedade e culpa, especialmente no Cristianismo.

A expansão dessas religiões foi, em parte, uma resposta às instabilidades e desafios dos tempos, oferecendo esperança frente às dificuldades da vida terrestre. Elas continuam a influenciar as visões de felicidade até os dias atuais, destacando a tensão entre a vida material e a busca por um propósito espiritual mais profundo.

O capítulo "Prazeres populares" explora as atividades e diversões que proporcionaram satisfação e possivelmente felicidade nas sociedades agrícolas durante a "era religiosa". Embora não possamos medir a felicidade dessas atividades, elas claramente ofereciam momentos de prazer e alívio das duras rotinas de trabalho e das restrições da vida agrícola.

O trabalho, especialmente para artesãos urbanos, oferecia uma sensação de satisfação e orgulho, enquanto as atividades sexuais, embora limitadas por normas sociais e religiosas, ainda eram buscadas por muitos. A infância, apesar das dificuldades, proporcionava oportunidades de brincadeiras livres e espontâneas, que contrastavam com a supervisão adulta.

As sociedades agrícolas desenvolveram uma variedade de formas de entretenimento, como contação de histórias, jogos, esportes populares e festivais. Os festivais, em particular, eram eventos importantes que uniam comunidades em celebrações coletivas, oferecendo uma pausa vital nas rotinas diárias.

Esses prazeres populares, que frequentemente ocorreram em conjunto com atividades religiosas, mostravam a criatividade das pessoas em buscar diversão e satisfação, apesar das dificuldades da vida agrícola. As opções de entretenimento eram limitadas e esporádicas, mas proporcionavam momentos de felicidade que ajudavam a suportar a monotonia e as dificuldades do dia a dia.

O capítulo "A Revolução da Felicidade, 1700-1900" explora como, nos séculos XVII e XVIII, uma nova abordagem sobre a felicidade emergiu na Europa Ocidental e América do Norte, desafiando as concepções tradicionais e redefinindo expectativas pessoais. Este período, que se estendeu até o século XIX, coincidiu com a transição da Era da Agricultura para o início da sociedade industrial.

Durante esse tempo, debates intensos sobre o significado da felicidade surgiram, e várias tentativas foram feitas para implementar essas novas ideias. A Revolução Industrial trouxe mudanças significativas nos padrões de vida, lazer e vida familiar, complicando ainda mais a adaptação a essas novas expectativas de felicidade.

Embora descrita como uma "revolução", essa transformação foi inicialmente limitada ao Ocidente, com seu impacto global sendo restrito por um tempo considerável. O poder imperial e econômico da Europa durante esse período pode ter retardado a disseminação global dessas novas ideias sobre felicidade.

O capítulo "A Revolução da Felicidade no Ocidente" analisa como, durante os séculos XVIII e XIX, uma mudança significativa nas ideias sobre felicidade ocorreu na Europa Ocidental e na América do Norte. Essa revolução foi marcada pela crença de que os seres humanos podiam controlar seus destinos e que o prazer e o conforto terrenos eram objetivos legítimos. A felicidade passou a ser vista como algo que deveria estar ao alcance de todos, com sociedades bem organizadas ampliando as oportunidades para a satisfação mental e material.

Essa nova abordagem desafiou ideias mais antigas que associavam a felicidade à virtude ou à vida após a morte. O Iluminismo desempenhou um papel crucial ao promover a razão e sugerir que o progresso e a melhoria contínua eram possíveis. A felicidade passou a ser discutida não apenas como um conceito filosófico, mas também como um objetivo social e político, com implicações para a organização da sociedade e das políticas governamentais.

A revolução da felicidade trouxe novos comportamentos, como um aumento no consumismo e uma maior ênfase no prazer individual. O individualismo ganhou destaque, e a busca pela felicidade tornou-se um direito pessoal. Essa transformação também influenciou movimentos sociais e políticos, inspirando protestos populares e revoluções que buscavam a felicidade coletiva através de reformas.

Apesar das críticas e resistências de grupos religiosos e conservadores, as novas ideias sobre felicidade tiveram um impacto duradouro, moldando expectativas e comportamentos que ainda influenciam as sociedades ocidentais modernas. A revolução da felicidade não foi universalmente aceita, mas marcou uma mudança fundamental nas percepções de felicidade e nos objetivos de vida.

O capítulo "A Expansão da Felicidade? As Novas Expectativas Encontram a Sociedade Industrial" analisa como o século XIX viu a continuidade da revolução da felicidade iniciada no século XVIII, enquanto a sociedade enfrentava os desafios e transformações da Revolução Industrial. As ideias de felicidade se expandiram, influenciando práticas culturais e sociais no Ocidente, mas também enfrentaram novos desafios.

O século XIX presenciou a incorporação contínua de ideias iluministas sobre felicidade, destacando o prazer e a satisfação pessoal. No entanto, a industrialização trouxe mudanças significativas na estrutura social, separando família, trabalho e lazer. As famílias começaram a ser vistas como refúgios emocionais, e a felicidade familiar tornou-se um ideal valorizado.

A industrialização também complicou a relação entre trabalho e felicidade, com muitos trabalhadores enfrentando condições difíceis e alienação. No entanto, a crescente atenção ao lazer e ao consumismo abriu novos caminhos para a busca da felicidade. O aumento do tempo de lazer e a disponibilidade de novos produtos e entretenimentos, como parques de diversões e esportes, contribuíram para a satisfação individual e coletiva.

Apesar das novas oportunidades, a felicidade no século XIX foi marcada por desigualdades de classe e gênero, e as expectativas de felicidade nem sempre foram alcançadas. A sociedade industrial trouxe novas tensões, mas também expandiu as possibilidades para a busca da felicidade no contexto moderno.

O capítulo "Mudanças Globais nos Séculos XVIII e XIX" explora como, durante esse período, as ideias ocidentais sobre felicidade não se difundiram globalmente de maneira uniforme. Enquanto o Ocidente passava por transformações culturais e econômicas, muitas regiões mantinham suas tradições religiosas e culturais, com continuidade prevalecendo sobre a mudança.

Na China e no Império Otomano, as tradições existentes, como o confucionismo e as reformas do Tanzimat, continuaram a influenciar as concepções de felicidade, apesar das pressões externas e internas. Na China, a instabilidade econômica e social, agravada pela interferência ocidental, levou à Rebelião Taiping, que misturava valores cristãos e chineses em uma busca por felicidade por meio da obediência coletiva.

O imperialismo europeu trouxe impactos negativos significativos, especialmente na América Latina e na África Subsaariana, onde a colonização e a exploração econômica provocaram sofrimento e uma visão de mundo marcada pela melancolia. Na América Latina, o pensamento iluminista influenciou líderes como Simón Bolívar, que defendiam a felicidade através da independência e do nacionalismo.

Na Rússia e no Japão, as reformas e a industrialização criaram contextos distintos. Na Rússia, a modernização gerou debates entre ocidentalizadores e conservadores, enquanto no Japão, a era Meiji promoveu a industrialização e uma mistura de tradições japonesas com influências ocidentais, sem adotar completamente as ideias ocidentais de felicidade. Apesar de algumas influências ocidentais, muitas regiões mantiveram suas tradições e desenvolveram respostas únicas às pressões externas e internas, resultando em um mosaico complexo de atitudes em relação à felicidade que persistiriam no século XX.

No início do século XXI, a cultura do sorriso se tornou um fenômeno global, impulsionada pelas redes sociais, onde mostrar felicidade em selfies se tornou uma norma. No entanto, não havia uma história única da felicidade globalmente, com abordagens variando entre diferentes regiões, influenciadas por padrões materiais e tradições culturais.

Apesar das diferenças, algumas tendências comuns surgiram, principalmente a influência da cultura de consumo ocidental, que se espalhou com a industrialização e urbanização global. Isso ajudou a desafiar ideias antigas sobre felicidade e começou a formar uma abordagem mais global ou multirregional.

No Ocidente, o compromisso com a felicidade permaneceu forte, mas enfrentou desafios internos e influências de outras culturas. Paralelamente, houve tentativas deliberadas de desenvolver alternativas aos modelos ocidentais de felicidade, como no comunismo e em atualizações de valores tradicionais.

O século passado também foi marcado por divisões cronológicas internas, como as disputas sobre felicidade nas décadas após as guerras mundiais e a Grande Depressão. Após 1945, com o fim da Guerra Fria, algumas dimensões globais da felicidade começaram a emergir, interagindo com tendências regionais.

Com a industrialização se expandindo globalmente, as últimas décadas possibilitam uma avaliação provisória das implicações da industrialização para a felicidade, comparando-as com o advento da sociedade agrícola, embora as conclusões permaneçam complexas e inconclusivas.

O capítulo "Disputa pela Felicidade, 1920-1945" explora as diversas tendências que influenciaram a felicidade durante o período das guerras mundiais e da Grande Depressão. A Primeira Guerra Mundial causou um impacto negativo significativo na felicidade na Europa Ocidental, gerando pessimismo e desespero. Por outro lado, nos Estados Unidos, houve uma continuidade e ampliação dos temas de felicidade, com o desenvolvimento de novas abordagens culturais e de consumo.

O surgimento do fascismo na Europa rejeitou a primazia da felicidade individual, enfatizando o dever e a lealdade ao Estado em vez de prazeres pessoais. Movimentos anticoloniais e nacionalistas, liderados por figuras como Gandhi e Ataturk, promoveram visões alternativas de felicidade, muitas vezes baseadas em tradições culturais e na construção de nações independentes.

Apesar das dificuldades econômicas e sociais, algumas sociedades ocidentais continuaram a buscar o prazer, com a indústria do entretenimento desempenhando um papel importante. Nos Estados Unidos, a felicidade permaneceu um tema central, com inovações como a Disney e a trilha de risadas na mídia, além de esforços para associar felicidade ao trabalho por meio da Psicologia industrial.

O período também viu mudanças significativas na relação com a morte e o luto, com a morte se tornando menos comum e mais distante na experiência cotidiana, resultando em uma redefinição de práticas de luto e uma ênfase em emoções positivas.

A diversidade de abordagens à felicidade nesse período reflete a complexidade global das décadas entre guerras, com diferentes regiões desenvolvendo suas próprias respostas às crises e desafios, muitas vezes em oposição aos modelos ocidentais tradicionais.

O capítulo "Felicidade Comunista" examina como as sociedades comunistas, começando com a União Soviética em 1917, abordaram o conceito de felicidade. Os líderes comunistas enfrentaram o desafio de definir a felicidade de maneira distinta do Ocidente, que associavam ao consumismo e ao individualismo burgueses. Em vez disso, os comunistas procuraram promover a felicidade através do progresso social, igualdade e um ideal de futuro sem classes.

Na União Soviética, a felicidade foi associada ao trabalho árduo e ao progresso coletivo, com ênfase na educação, saúde pública e mobilidade social. Propagandas e programas coletivos, como férias patrocinadas pelo Estado, foram usados para promover um senso de satisfação popular. No entanto, o consumismo individual foi desencorajado, e os produtos disponíveis eram frequentemente de baixa qualidade.

Na China comunista, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, a felicidade também foi vinculada ao progresso coletivo e à lealdade ao Partido. A educação e a saúde pública foram ampliadas, mas a ênfase estava na transformação social e cultural, com pouca atenção aos bens materiais. A Revolução Cultural promoveu a ideia de felicidade através do trabalho árduo e do sacrifício coletivo.

Ambos os regimes enfrentaram dificuldades em equilibrar a promoção de uma felicidade distinta com as pressões da industrialização e do consumismo. Após o colapso da União Soviética e as reformas na China, ambos os países viram um aumento no consumismo e um retorno a valores mais individuais. No entanto, ainda enfrentam desafios em definir e promover a felicidade em um contexto pós-comunista, com um legado de abordagens anteriores e novas pressões sociais e econômicas.

O capítulo "Comparando a Felicidade nas Sociedades Contemporâneas" aborda a complexidade de comparar a felicidade entre diferentes países, destacando as dificuldades devido a diferenças culturais e de linguagem. Após a Segunda Guerra Mundial, as características regionais continuaram a influenciar as concepções e níveis de felicidade, mesmo com o aumento dos contatos globais.

Dois grandes projetos de pesquisa foram realizados no final dos anos 1950 e início dos 1960, e novamente nos anos 1970, analisando expectativas e preocupações em vários países. As conclusões mostraram que, embora fatores econômicos fossem importantes, as visões culturais e políticas desempenhavam um papel significativo na formação das expectativas de felicidade. As pesquisas revelaram que as esperanças superavam as preocupações na maioria dos lugares, mas as diferenças culturais influenciavam as visões sobre família e riqueza.

Estudos de caso sobre a Índia e o Japão ilustram essas diferenças. Na Índia, tradições espirituais e o foco na família influenciam as concepções de felicidade, enquanto o consumismo e o entretenimento moderno estão em ascensão. No Japão, o conceito de ikigai, que combina dever e realização pessoal, guia a busca pela felicidade, mas também enfrenta desafios devido à estagnação econômica e mudanças sociais.

O capítulo destaca que a felicidade não se correlaciona diretamente com indicadores econômicos e que as comparações entre países são complexas. No entanto, a análise comparativa é essencial para entender as diferenças regionais e refletir sobre as próprias concepções de felicidade. A globalização continua a promover uma mistura de influências culturais em relação à felicidade.

O capítulo "A Sociedade Ocidental na História Contemporânea: Cada Vez Mais Feliz?" explora se a sociedade ocidental está se tornando mais feliz ao longo do tempo, analisando fatores culturais, econômicos e sociais. A pesquisa de 2015 destacou que pais em sociedades ocidentais, como França, Canadá e Estados Unidos, priorizam a felicidade dos filhos, refletindo um compromisso cultural contínuo com a felicidade.

O capítulo afirma que a revolução da felicidade continua forte no Ocidente, mas também levanta questões e desafios. O consumismo desempenha um papel central, com um aumento significativo na busca por bens materiais e experiências como um caminho para a felicidade. A Disney, a literatura de autoajuda, a publicidade e as happy hours são exemplos de como a cultura ocidental promove a felicidade.

No entanto, novas questões surgem, como o paradoxo de Easterlin, que mostra que o aumento da prosperidade não se traduz necessariamente em maior felicidade. Além disso, a pressão cultural para ser feliz pode tornar a tristeza e a depressão mais difíceis de lidar, afetando a saúde mental.

A psicologia positiva e os programas de bem-estar surgiram como respostas para ajudar indivíduos a encontrar a felicidade duradoura, enfatizando o florescimento humano e a gratidão. Embora esses movimentos tenham ganhado popularidade, eles também enfrentam críticas por serem excessivamente otimistas.

Em resumo, a sociedade ocidental mantém um compromisso forte com a felicidade, mas enfrenta desafios significativos, incluindo as complexidades do consumismo, as expectativas de felicidade e as implicações emocionais dessas dinâmicas.

O capítulo "A Felicidade se Globaliza" explora como a aceleração da globalização no final do século XX e início do XXI influenciou as concepções de felicidade em todo o mundo. Enquanto as diferenças culturais e econômicas persistem, surgiram características globais de felicidade que vão além da simples adoção dos padrões ocidentais por outras sociedades. Esses padrões refletem reações à urbanização, melhorias nos padrões de vida e saúde, e contribuições de outras regiões, como o Sul da Ásia, enriquecendo as discussões globais sobre felicidade.

A globalização trouxe um foco maior na felicidade como meta política, com a ONU estabelecendo o Dia Internacional da Felicidade em 2012. Governos ao redor do mundo, incluindo os Emirados Árabes Unidos e a Nova Zelândia, criaram programas específicos para promover o bem-estar e a felicidade, enquanto iniciativas de bem-estar e psicologia positiva se espalharam globalmente.

O capítulo também discute como o consumismo e as celebrações de boas festas se tornaram fenômenos globais, com o Natal e aniversários sendo comemorados em muitos países. Além disso, práticas culturais de diferentes regiões, como a meditação do Sul da Ásia e o método Konmari do Japão, influenciaram abordagens globais à felicidade.

A Pesquisa Mundial de Valores fornece dados sobre tendências de felicidade ao longo do tempo, mostrando que a maioria dos países viu melhorias nos níveis de felicidade entre 1981 e 2007, embora desafios recentes, como a Grande Recessão e a pandemia de coronavírus, tenham impactado negativamente alguns países. Enquanto o interesse global pela felicidade aumentou e as definições se expandiram, as diferenças culturais e regionais continuam a complicar o quadro, tornando difícil prever o futuro da felicidade global.

O capítulo "Conclusão" aborda a complexidade e a evolução da felicidade ao longo da história, ressaltando que a felicidade tem sido influenciada por fatores como religião, iluminismo, capitalismo e cultura popular. A felicidade é uma emoção que variou em significado e prática dependendo das circunstâncias históricas e culturais.

A história da felicidade é complexa e não segue uma narrativa linear. Diferentes regiões e épocas têm suas próprias abordagens, e a pesquisa sobre o tema ainda é desigualmente distribuída, com um foco desproporcional no Ocidente. A relação entre textos formais sobre felicidade e práticas populares concretas é um desafio recorrente, e a religião desempenha um papel central, mas variado, na definição da felicidade.

Alguns temas recorrentes na história da felicidade incluem o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais, a sorte versus a agência humana, e o papel da família. Esses temas ajudam a organizar comparações e a entender as escolhas feitas por indivíduos e sociedades.

Importantes pontos de inflexão na história da felicidade incluem a transição para a agricultura e civilizações formais, o advento de religiões complexas e a "revolução da felicidade" no Ocidente a partir do século XVIII. A industrialização trouxe novos desafios e oportunidades para a felicidade, com melhorias materiais, mas também novas tensões e expectativas.

O capítulo finaliza ressaltando a fragilidade da felicidade, tanto para indivíduos quanto para sociedades, e a importância de se considerar o bem maior ao buscar a felicidade. A história oferece insights sobre como diferentes abordagens à felicidade evoluíram e quais podem ser seus pontos fortes e limitações.

A obra oferece uma fascinante jornada pela história da felicidade, revelando como essa emoção universal é moldada por contextos históricos e culturais variados. Desde as concepções religiosas até as influências do iluminismo e do capitalismo, o livro traça um panorama enriquecedor sobre as mudanças nas percepções de felicidade ao longo do tempo.

Os capítulos exploram como diferentes eras e regiões definiram a felicidade de maneiras únicas. Na "Era da Agricultura", a transição para sociedades agrícolas trouxe novos desafios, como desigualdades e dificuldades, mas também narrativas de uma Era de Ouro perdida. As filosofias clássicas deram forma a conceitos de felicidade, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e os chineses, a harmonia e simplicidade.

O surgimento das grandes religiões introduziu a ideia de felicidade transcendente, ligada a um plano espiritual. Já a "Revolução da Felicidade" nos séculos XVIII e XIX, impulsionada pelo iluminismo, redefiniu a felicidade como um direito humano, inspirando movimentos sociais e políticos.

O livro também aborda como a globalização e a industrialização impactaram as concepções de felicidade, trazendo novos desafios e oportunidades. A era contemporânea vê a felicidade se tornar uma meta política global, com influências de práticas culturais de todo o mundo.

Com uma análise rica e detalhada, a obra destaca a complexidade da felicidade e a importância de considerá-la em contextos históricos e culturais. É uma leitura envolvente que oferece insights sobre como a busca pela felicidade continua a evoluir e a influenciar nossas vidas.

O AUTOR

Peter N. Stearns formou-se em História em Harvard e é professor de História na George Mason University, nos Estados Unidos. Escreveu muito sobre história mundial e sobre o campo cada vez mais importante da História das emoções e ministra disciplinas em ambas as áreas regularmente. Desde cedo se destacou pela atividade docente (trabalhou na Universidade de Chicago, Rutgers, entre outras) e pelo empenho em escrever livros, tanto para especialistas, quanto para um público mais amplo. Foi editor de importantes publicações especializadas nos EUA, como o Journal of Social History. Sua preocupação com a história mundial e seu empenho em mostrar práticas sociais em diferentes culturas orientaram a escrita de importantes livros, como "A infância", "História das relações de gênero", "História da sexualidade" e "História da Felicidade", publicados pela Contexto.


Resenha: Noites cruas, de Jean Soter

Divulgação / Mandawa Estúdio

APRESENTAÇÃO

Expulsa de casa após uma briga com a mãe, Karina conhece a garota de programa Rose em um posto de gasolina na rodovia. Naquela mesma noite, saem com dois caminhoneiros.

Noites Cruas centraliza seu enredo na trajetória errática dessas duas mulheres, com seus sonhos, frustrações e esperanças, e tem como cenário a rua, o bordel, a rodovia.

RESENHA

Em “Noites cruas”, Jean Soter nos mostra que a vida acontece mesmo quando a maioria não está prestando atenção. Focado na trajetória de duas personagens, Karina e Rose, esse romance leva o leitor para a beira da estrada. Mas essa história não é uma road trip divertida de duas amigas universitárias fazendo um mochilão para descobrir o que querem fazer da vida, Karina e Rose são prostitutas que têm seus destinos costurados uma a outra em um banco de posto de gasolina.

“Mulher de vida fácil”, diz a cultura popular para se referir às putas. “Mulher perdida” também. Jean Soter, ao retratar essa face da vida noturna, foge de frases prontas como essas. Lírico, cru, fluido, a obra expõe os riscos vividos no ofício, o efeito do envelhecimento nos rendimentos das mulheres que vivem de programa, a miséria que as ameaça até em tempos de bonança e os laços afetivos possíveis nesse contexto, sem jamais impor julgamentos morais ao leitor.

As ilustrações de Pedro Graça ajudam a compor a atmosfera do livro. Em especial, as imagens que abrem os onze capítulos e tem como característica o fundo escuro, como a noite, e o traço branco que parece ter sido feito de giz em um quadro negro e pode ser apagado a qualquer momento.

Mais do que sobre prostituição, “Noites cruas” é sobre travessia. Suas personagens estão tentando criar meios de seguir em frente. As rodovias que cortam esse romance são as passagens que Karina e Rose encontram para levar a vida adiante. E, nessa lida de tentar sobreviver, elas percorrem cidades nunca nomeadas, se afastam do ponto de partida e também voltam atrás, enquanto reconhecem e também estranham as mudanças promovidas pelo tempo nas paisagens e nelas mesmas.

Thaís Campolina é escritora, mediadora de leitura e especialista em Escrita e Criação pela Unifor. Seu livro de poesia “eu investigo qualquer coisa sem registro” (2021) foi premiado no concurso Poesia InCrível 2021. Sua próxima obra será publicada em breve pela Macabéa Edições.

O AUTOR


Jean Soter é autor das coletâneas de contos A Transferência (2007) e O Vendedor (2018). No momento, trabalha como autônomo no mercado de ações; nos intervalos, lê e escreve literatura. Natural do interior de São Paulo, onde nasceu em 1974, vive no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, desde 2009.

Resenha: MST: A construção do comum, de Susana Bleil


APRESENTAÇÃO

Publicada originalmente em francês sob o título “Vie et luttes des Sans Terre au sud du Brésil”, a obra é o resultado da imersão que autora por quatro anos no assentamento Santa Maria (Copavi), em Paranacity, no noroeste do Paraná, fundado em 1993.Além de registrar a história de uma das mais bem sucedidas experiências do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Bleil usa a sociologia para analisar a complexidade e os desafios de convivência, produção e resistência na luta pela reforma agrária no Brasil. Com seu trabalho etnográfico a autora revela em detalhes o funcionamento da cooperativa e como são tomadas as decisões políticas e as dificuldades da construção coletiva.Trata-se de leitura fundamental para todas as pessoas que pretendem compreender melhor a história do MST e os valores que o presidem.

RESENHA

A obra "A Construção do Comum", da socióloga Susana Bleil, oferece uma análise profunda e intimista do assentamento Santa Maria, parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), localizado em Paranacity, Paraná. Publicada originalmente em francês, esta obra se destaca por seu enfoque etnográfico, resultado de anos de pesquisa e imersão no cotidiano da cooperativa, estabelecida em 1993. Bleil não apenas documenta a história da Copavi, mas também investiga os dilemas enfrentados por seus membros na busca pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

A autora começa descrevendo a natureza da comunidade, que antes era composta por laços de sangue e casamento, mas que, ao longo do tempo, se transforma. Ela argumenta que, apesar do desaparecimento da comunidade tradicional, a necessidade de recriar um espaço de convivência onde a cooperação e a solidariedade prevaleçam se faz cada vez mais urgente. A proposta central do livro se estrutura em torno da busca por um "comum" – um espaço onde as experiências compartilhadas e as relações humanas possam florescer e construir significados coletivos.

"A Construção do Comum", de Susana Bleil, não é apenas um relato sobre um assentamento rural, mas um convite à reflexão sobre a complexidade das relações humanas em um mundo que tende a fragmentar laços e a promover a individualidade em detrimento da coletividade. A partir da sua análise etnográfica, somos confrontados com a ideia de que o 'comum' é uma construção contínua, que requer esforço, cuidado e compromisso.

A obra ressalta que, ao contrário da visão simplificada de comunidades como meros aglomerados de indivíduos, as comunidades são organismos vivos, pulsantes, onde cada interação tem o potencial de reafirmar ou desmantelar laços de solidariedade. O assentamento Santa Maria mostra que a busca por uma vida coletiva não só é uma necessidade, mas um ato político vital em um cenário global que valoriza cada vez mais a concorrência e a exclusão. O desafio de transformar experiências pessoais em significados coletivos é um reflexo fiel das tensões enfrentadas por aqueles que buscam não apenas a sobrevivência, mas também uma vida digna.

Outro aspecto potente do trabalho de Bleil é a ideia de "família política". Nesse sentido, o assentamento Santa Maria se torna um microcosmo das lutas sociais mais amplas, onde a política se entrelaça com a vida cotidiana e as emoções. A solidariedade não é apenas uma estratégia de resistência, mas uma forma de afetividade que permeia todas as interações. Essa interconexão entre a política e a vida afetiva revela um aspecto crucial das lutas sociais: que as mudanças estruturais não podem ser efetivas sem uma base relacional sólida que una os militantes em torno de uma causa comum. A política, portanto, se transforma em um campo de batalha onde as experiências pessoais se tornam relevantes, e os vínculos formados no seio da comunidade se tornam a verdadeira força motriz de transformação.

Além disso, o livro nos força a reconsiderar o significado de ‘comunidade’ em um tempo de crescente desumanização e desassociação. A transformação narrativa de laços de sangue para laços de solidariedade nos lembra que, em uma sociedade que muitas vezes segmenta e aliena, é na criação de novos vínculos que reside a chave para um futuro mais equitativo. A obra de Bleil se posiciona como uma crítica contundente à desumanização que permeia muitos âmbitos da vida contemporânea, ao mesmo tempo que propõe uma alternativa: a construção de espaços coletivos que valorize a empatia, a compreensão e o apoio mútuo.

Os relatos dos sócios da Copavi revelam a complexidade da vida em comunidade. A obra questiona se os militantes têm espaço para expressar suas discordâncias e como as crises são geridas coletivamente. Nesse contexto, cada experiência pessoal é situada na trama maior da luta pela reforma agrária, destacando valores como fraternidade, inclusão e solidariedade. Bleil não hesita em mostrar os desafios e as tensões que surgem nesse ambiente, enfatizando que a sobrevivência do grupo depende da consciência coletiva de pertença e da confiança mútua entre seus membros.

A narrativa etnográfica de Bleil é enriquecida por seus encontros com os militantes, cujas histórias pessoais e visões de mundo acrescentam profundidade ao entendimento dos processos de construção da comunidade. Momentos de troca e riso, bem como as disputas e tensões, são analisados com rigor e sensibilidade, tornando visíveis as nuances da vida cotidiana no assentamento. Essa abordagem ajuda a moldar a ideia de que a construção do "nós" no coletivo é um trabalho contínuo, que se alimenta de práticas e rituais que promovem a união e o compromisso dos membros.

Bleil também evoca a ideia de uma "família política", onde os laços de solidariedade extrapolam o espaço familiar e se transformam em uma rede de apoio e luta common. O compromisso dos militantes com a causa do MST se entrelaça com suas vidas pessoais, demonstrando que a política e a afetividade não estão desconectadas, mas sim interligadas em múltiplas camadas de significado.

Ao longo da leitura, fica evidente que "A Construção do Comum" é mais do que uma simples crônica da vida em um assentamento: é uma reflexão profunda sobre a necessidade de valores éticos e comunitários numa sociedade que frequentemente ignora a força das relações humanas. A obra fornece uma base fundamental para quem deseja compreender não só a história do MST, mas também os princípios que fundamentam a luta por justiça social e a construção de novos modelos de convivência.

A obra de Susana Bleil é uma contribuição ímpar ao entendimento das dinâmicas sociais e políticas no Brasil contemporâneo, fazendo ecoar a importância do comum em um mundo que cada vez mais se distancia da convivência solidária. Seja para estudantes, militantes, ou qualquer pessoa interessada em questões sociais, "A Construção do Comum" é uma leitura indispensável, capaz de inspirar reflexões sobre a coletividade e a luta por um futuro mais justo.

Ademais, é crucial observar que os desafios enfrentados pela comunidade não são apenas obstáculos, mas oportunidades para crescimento e reconfiguração. A capacidade dos militantes de expressar suas discordâncias e lidar com crises coletivamente revela um dinamismo intrínseco à vida comunitária. Essa ideia de que as tensões não são sinônimos de fracasso, mas partes integrantes de um processo vital, sugere que a solidariedade é, na verdade, uma prática que se refina por meio de conflitos construtivos e diálogos honestos.

Em última análise, "A Construção do Comum" é uma obra que se desdobra em múltiplas camadas de significado. Ela nos desafia a pensar sobre o que realmente significa viver em sociedade e convida a uma reflexão profunda sobre a necessidade de encontrarmos nossos 'comuns' em tempos de crescente individualismo. O ensinamento mais importante que podemos extrair dessa obra é que a luta por um espaço coletivo não é apenas uma aspiracional, mas uma urgência. E, mais importante, que essa luta deve ser alimentada por uma percepção ética de comunidade, onde cada indivíduo, com suas particularidades e experiências, é respeitado, ouvido e integrado na construção de um futuro mais justo e solidário.

Resenha: A cabeça da medusa: e outras lendas gregas, de Orígenes Lessa



 APRESENTAÇÃO

A rica mitologia grega, com seus deuses e heróis, é referência até os dias atuais, em várias áreas de estudo. Em A cabeça de Medusa e outras lendas gregas, Orígenes Lessa, baseado na obra do escritor norte-americano Nathaniel Hawthorne, reconta seis narrativas maravilhosas.Nesta obra estão presentes algumas das mais famosas lendas gregas, como: A cabeça de Medusa, A caixa de Pandora, O toque de ouro, O cântaro milagroso, A quimera e As três maçãs de ouro. A linguagem ágil de Orígenes nos transporta à história da civilização da Grécia Antiga e à origem de mitos importantes e significativos presentes até hoje na cultura ocidental.O livro conta com as belíssimas ilustrações de Cláudia Scatamacchia. É leve, divertido e atual como todo clássico. Um livro para ser lido com a imaginação.

RESENHA

"A Cabeça da Medusa: E Outras Lendas Gregas" é uma antologia de histórias da mitologia grega adaptadas por Orígenes Lessa. Este fascinante compêndio nos oferece a oportunidade de mergulhar no rico universo das lendas, resgatando personagens icônicos como Perseu, Dânae e a temível Medusa, enquanto ficamos imersos em narrativas que abordam temas como coragem, traição e a busca pelo heroísmo.

A narrativa central, que dá nome ao livro, gira em torno de Perseu, um herói cuja vida é marcada por uma profecia que prevê a morte de seu avô, o rei Acrísio. O temor das consequências dessa profecia leva Acrísio a tomar uma decisão drástica — colocar Dânae e Perseu em um barco e abandoná-los ao mar. Essa abertura já estabelece um ambiente de tensão que ronda a história, refletindo o contraste entre as intenções humanas e o desígnio dos deuses.

À medida que crescem os desafios que Perseu enfrenta, o leitor é apresentado a uma rica tapeçaria de elementos mitológicos. A fúria de Medusa, uma das górgonas, simboliza tanto um desafio a ser superado quanto a luta interna do herói contra suas próprias limitações e medos. Lessa retrata Perseu como um jovem audacioso, mas também vulnerável, cativando os leitores com sua determinação em atender ao pedido traiçoeiro do rei Polidecto. A astúcia do vilão e a complexidade dos laços familiares são bem exploradas, conferindo profundidade ao enredo.

A prosa de Lessa é envolvente; sua narrativa é rica em descrições vívidas e diálogos que capturam a essência das interações humanas e divinas. Lessa não apenas reconta as lendas, mas também as recontextualiza, permitindo que novos leitores e aqueles familiarizados com a mitologia grega apreciem a experiência. Os trechos relacionados ao encontro de Perseu com Mercúrio, por exemplo, são particularmente mais intesos, pois destacam a importância da ajuda e da sabedoria adquirida através da experiência, elementos que ecoam profundamente na condição humana. Além disso, a obra ressalta temas universais, como a luta entre o bem e o mal, lealdade, e a inevitabilidade do destino, o que a torna não apenas um repositório de histórias antigas, mas uma fonte de reflexão sobre a natureza humana.

As adaptações de Lessa são acessíveis para leitores de todas as idades, tornando este livro uma excelente introdução à mitologia grega para jovens e adultos igualmente. Sua habilidade em contar histórias se combina perfeitamente com a herança cultural que as mitologias oferecem, celebrando-as de forma dinâmica e envolvente.

Em suma, "A Cabeça da Medusa: E Outras Lendas Gregas" é uma obra que não só narra aventuras e desafios épicos, mas que também nos convida a refletir sobre nossas propias histórias, medos e desejos. A leitura é uma viagem através do tempo que confronta as questões eternas da vida, fazendo deste livro uma verdadeira joia da literatura infanto-juvenil e um excelente recurso para aqueles que desejam explorar as raízes da mitologia grega de uma maneira acessível e cativante.

Resenha: O negro no Brasil hoje, de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes

APRESENTAÇÃO

Para entender “nossa” história e “nossa” identidade é preciso começar pelo estudo de todas as suas matrizes culturais. Neste livro muito bem ilustrado, os autores tentam contar um pouco da história esquecida dos povos africanos que ajudaram a construir o país em que vivemos, um país que pertence a todos os brasileiros sem nenhuma distinção.

RESENHA

A obra "Negro no Brasil de Hoje", escrita por Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes, é um marco na literatura brasileira que investiga a identidade negra no contexto contemporâneo, compilando reflexões profundas sobre a história, cultura e desafios enfrentados pela população negra no Brasil. Munanga e Gomes não apenas respondem a questões cruciais sobre quem somos como povo, mas também nos levam a compreender a riqueza e a complexidade da formação da identidade brasileira, que é um verdadeiro mosaico cultural.

Aprender e conhecer sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro é aprender a conhecer a história e a cultura de vários povos que aqui se encontraram e contribuíram com suas bagagens e memórias na construção deste país e na produção da identidade brasileira. Essa história, na versão de alguns, teve início com os aventureiros e navegadores portugueses que chegaram a uma terra da qual se consideraram descobridores. Embora essa terra já estivesse ocupada e tivesse seus donos, os portugueses anunciaram o seu descobrimento e dela tomaram posse, estendendo para além da Europa seus domínios.

O livro parte de uma análise histórica para desconstruir mitos recorrentes, como a visão de uma passividade dos africanos durante o período da escravidão. Os autores demonstram com contundência que, ao contrário do que muitos ainda pensam, os negros nas terras brasileiras lutaram e resistiram ativamente contra a opressão, participando de revoltas e movimentos que raramente são mencionados nos livros didáticos. Essa perspectiva é essencial para reverter narrativas que perpetuam estigmas e preconceitos, reforçando a importância de um reconhecimento histórico mais justo e equilibrado.

O livro se desdobra ao desvencilhar, de forma minuciosa e precisa, aspectos da história do negro na criação do Brasil atual. Ele aborda tópicos como o encontro de culturas devido à miscigenação dos povos originários em terras brasileiras, a origem e a contribuição dos negros, o histórico da escravidão de mão de obra cativa, descrições do regime escravista, um panorama geral sobre os quilombos, a Revolta dos Malês, a Revolta da Chibata, a redemocratização, e a copeira como uma expressão de arte. Também explora o surgimento e o desenvolvimento da cultura negra, além de fornecer descrições sobre termos como etnia, racismo, etnocentrismo e preconceito racial. Por fim, inclui uma série de citações de homens e mulheres negros que contribuíram para a formação do Brasil como o conhecemos atualmente.

Além disso, Munanga e Gomes exploram a imensidão das contribuições culturais dos negros ao Brasil, defendendo que a musicalidade, a religiosidade e as diversas manifestações artísticas são, sem dúvida, a espinha dorsal da cultura brasileira. A resistência política e cultural do povo negro, capaz de transformar trajetórias e diálogos sociais ao longo da história, é um dos pontos altos da obra. Os capítulos sobre a produção cultural negra e a religiosidade afro-brasileira são especialmente iluminadores, revelando a riqueza das tradições e a beleza dessa cultura que, muitas vezes, é deixada à margem das narrativas dominantes.

Os autores também abordam questões atuais, como o racismo estrutural que ainda permeia a sociedade brasileira, fornecendo dados e reflexões que nos instigam a pensar criticamente sobre o nosso papel na construção de um Brasil mais igualitário. A análise das políticas de ação afirmativa e a pertinência de discussões sobre raça mostram a urgência em se reconhecer as desigualdades persistentes e os direitos dos negros no Brasil.

Uma passagem marcante da obra - das diversas existentes - é o estudo e apresentação do contexto de revolta coletiva em relação a repulsa em desfavor da escravidão no Brasil. O que ocasionou em um movimento de luta do povo negro, tornando possível a criação de quilombos, redes de apoio, insurreições, guerrilhas, insurreições urbanas. Essa crescente onda de resistência ocasionou em diversas revoltas e batalhas, como: A revolta dos Alfaiates (1798); Cabanagem (1835-1840); Sabinada (1837-1838) e a Balaiada (1838-1841).

E uma citação marcante e atemporal:

No contexto de organização do movimento negro brasileiro não podemos nos esquecer do importante papel assumido pelas mulheres negras e suas organizações. Apesar das transformações nas condições de vida e papel das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de 1960, a mulher negra continua vivendo uma situação marcada pela dupla discriminação: ser mulher em uma sociedade machista e ser negra numa sociedade racista.

Negro no Brasil de Hoje é um livro imprescindível não apenas para aqueles que buscam compreender a identidade negra, mas para todos que desejam aprofundar-se nas discussões sobre diversidade, resistência e os desafios sociais que ainda permeiam nossas vidas. A obra é uma leitura reveladora, apaixonada e necessária para quem deseja entender as complexas teias que constituem a sociedade brasileira contemporânea.

Por tudo isso, recomendo veementemente a leitura desta obra. Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes nos presenteiam com um estudo enriquecedor que não só educa, mas também promove a reflexão crítica sobre a identidade e a condição do negro no Brasil de hoje.

Você pode adquirir o livro na Amazon ou site Oficial da Global Editora.

Resenha: O filho do pescador, de Texeira & Sousa


APRESENTAÇÃO

Esta edição de O filho do pescador, cuidadosamente preparada pela Sophia, tem o objetivo de fornecer aos leitores ferramentas para que apreendam detalhes preciosos do romance de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa. Estão contextualizados, por exemplo, termos em latim, referências à mitologia grega, logradouros do Rio de Janeiro antigo e palavras comuns ao português falado no Brasil durante o século XIX. O filho do pescador foi publicado em 1843. É apontado por estudiosos como o primeiro romance brasileiro. Com a reedição desta obra, a Sophia – cabo-friense, assim como o autor – pretende colaborar com a difusão da obra de Teixeira e Sousa, cujo protagonismo merece ser amplamente reconhecido. Esta edição exclusiva tem 596 notas de rodapé elaboradas por Gustavo Rocha, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ). Teixeira e Sousa deixou uma vasta produção literária, conforme nos conta Hebe Cristina da Silva no prefácio: romances [O Filho do Pescador (1843), As Fatalidades de Dois Jovens (1846), Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta (1847), Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes (1848 — 1851), Maria ou A Menina Roubada (1852 — 1853), A Providência (1854)], poesias [Cânticos Líricos (1841 — 1842), Os Três Dias de um Noivado (1844), A Independência do Brasil (1847 — 1855)], peças teatrais [Cornélia (1844), O Cavaleiro Teutônico ou A Freira de Marienburg (1855)], traduções [Lucrécia, de M. Ponsard (tragédia — 1845), Mazepa, de Lord Byron (novela — 1853)] e obras diversas [Os Coros do Concerto-Monstro (letras de canções — 1845), As Mensageiras de Amor (letras de modinhas — 1851), A Sorte (“livro de divertimento” — 1851)]. Teixeira e Sousa nasceu em 1812 e morreu em 1861, aos 49 anos, vítima de uma hepato-enterite. Seu legado está imortalizado em obras como O filho do pescador, capítulo dos mais importantes da história do romance nacional.

RESENHA

O filho do pescador, obra proeminente do escritor brasileiro Texeira & Sousa, frequentemente considerada, por estudiosos como José Veríssimo e Ronald de Carvalho, o primeiro romance escrito no Brasil, em 1843. A obra, agora recebe uma edição revista e ampliada através da Sophia Editora.

A editora Sophia lançou uma edição revisada de "O filho do pescador" com o objetivo de oferecer aos leitores uma compreensão mais rica dos aspectos deste romance de Teixeira e Sousa. Nesta versão, há explicações de termos em latim, referências à mitologia grega, locais históricos do antigo Rio de Janeiro e vocabulário do português do século XIX no Brasil. Publicado originalmente em 1843, esse romance é considerado por estudiosos como o primeiro romance brasileiro. Sophia, oriunda da mesma região de Cabo Frio que o autor, quer promover a obra de Teixeira e Sousa, um autor que merece mais destaque. Esta edição conta com 596 notas de rodapé feitas por Gustavo Rocha, doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O Filho do Pescador nos envolve de imediato em um cenário primaveril hipnotizante, onde o alvorecer molda a baía de Niterói e a praia de Copacabana com uma beleza de tirar o fôlego. Essa paisagem quase mágica serve de pano de fundo para uma jovem mulher, vestida de luto, que parece encontrar um momento de paz e reflexão em meio à natureza exuberante. A cena é interrompida pela chegada de um jovem, cuja declaração de amor sincero ignora as barreiras financeiras e sociais que poderiam separá-los.

O filho do pescador é uma obra emocionante que narra os percalços e mistérios envolvendo o casamento entre Laura e Augusto, filho do pescador, indicado por um naufrágio, em Copacabana. Laura, que aos treze anos foi raptada por Sérgio, é deixada posteriormente por ele, que leva seu filho consigo. Ela então tenta refazer sua vida ao lado de um novo amante, até que um naufrágio à costa do Rio de Janeiro muda tudo. Seu amante morre na tragédia, enquanto ela é resgatada por Augusto, desencadeando uma nova e intensa fase de sua vida. Os dois se casam, mas o destino parece ter outros planos.


Após o casamento, Laura revela sua leviandade, tendo se casado por interesse. Ela se sente atraída por Florindo, um cantor e amigo de Augusto, e é persuadida a livrar-se do marido. Laura chega a provocar um incêndio, mas seu plano falha graças ao escravo João, que salva Augusto. Em seguida, uma tentativa de envenenamento consegue afastá-lo. Laura também se envolve com outros homens; quando Florindo a abandona, ela incita seu novo amante, Marcos, a matá-lo. Contudo, há alguém que testemunha discretamente todos seus crimes, movido por intenções desconhecidas. Laura encontra um novo amor em Emiliano, um jovem caçador que desperta nela sentimentos nunca antes experimentados. Apesar deste amor ser correspondido e revestido de pureza e honestidade, o Dr. Sinval, padrinho e pai adotivo de Emiliano, guarda um segredo que torna impossível essa união.

A obra de Texeira & Souza ganha novos contornos com a introdução de uma figura de sabedoria e experiência: o pai do jovem, um velho pescador que viveu uma vida honrada. Este contraste entre o impulsivo amor juvenil e a pragmática prudência da velhice enriquece a narrativa, criando um diálogo pungente entre gerações. O pai, com sua vasta sabedoria de vida, tenta dissuadir o filho de um casamento que julga baseado em paixões efêmeras. Ele oferece argumentos robustos sobre a natureza ilusória do amor juvenil e as responsabilidades inevitáveis do matrimônio, que poderiam transformar o encanto inicial em amargura.

No entanto, a determinação do jovem em seguir seu coração realça a profundidade de sua paixão e determinação. Sua resistência às ponderações do pai não é apenas um ato de rebeldia, mas sim uma declaração de que seus sentimentos são genuínos e duradouros. Este embate emocional culmina quando o pai, apesar de todas as reservas, concede a permissão para o casamento, pedindo apenas que o filho se lembre dos conselhos paternos caso a realidade futura não corresponda às expectativas.

Texeira & Souza mescla com maestria os temas da paixão contra a razão, da juventude versus a experiência, criando uma narrativa que, apesar de seu pano de fundo antigo, ressoa com dilemas completamente contemporâneos. A luta entre seguir o coração ou a razão é atemporal e, através de personagens bem delineados e diálogos comoventes, o texto explora essas tensões de maneira profundamente humana e universal. Esta abordagem sensível e honesta faz deste capítulo uma peça cativante e reflexiva na literatura.

A reedição de "O Filho do Pescador" pela Sophia Editora é uma verdadeira celebração da literatura brasileira, trazendo à tona a genialidade de Texeira e Sousa com uma clareza nunca antes vista. Ao incluir 596 notas de rodapé elaboradas por Gustavo Rocha, esta edição se dedica a contextualizar o leitor moderno, oferecendo insights preciosos sobre os termos em latim, mitologia grega e os locais históricos do antigo Rio de Janeiro. Essa abordagem enriquece a compreensão da obra, proporcionando uma imersão mais profunda no universo do século XIX no Brasil.

A narrativa de "O Filho do Pescador" é simplesmente envolvente desde o seu início. A descrição da paisagem, que nos transporta para um cenário hipnotizante da baía de Niterói e da praia de Copacabana, toca as fibras mais sensíveis da imaginação. É neste ambiente quase místico que conhecemos Laura e Augusto, figuras centrais de uma trama marcada por percalços e mistérios. O romance fictício entre os dois, iniciado após o resgate de Laura por Augusto durante um naufrágio, é o fio condutor que nos guia por uma teia de intrigas emocionais, traições e revelações surpreendentes.

Laura é um personagem de muitas camadas, revelando-se uma mulher complexa cujo comportamento oscila entre a leviandade e a busca por sentimentos verdadeiros. Seu relacionamento conturbado com Augusto, agravado por suas paixões por outros homens como Florindo e Marcos, adiciona uma intensidade dramática à trama. A leitura dessas passagens é permeada por um suspense que instiga o leitor a seguir adiante, ansioso por descobrir as próximas reviravoltas.

Texeira e Sousa mostra um domínio impressionante ao contrapor a juventude e a experiência, exemplificado pelo relacionamento de Augusto com seu pai, o velho pescador. A sabedoria pragmática do pai frente ao amor impetuoso do filho tece um diálogo rico em nuance e profundidade, refletindo dilemas perpetuamente atuais. Essa discussão intergeracional não apenas enriquece a narrativa, mas também a torna intemporal, proporcionando reflexões que perduram muito além da leitura.

A luta entre seguir o coração ou ceder à razão é uma tensão universal que Texeira e Sousa aborda com grande sensibilidade. Seus personagens e diálogos são construídos de maneira a humanizar essas escolhas, tornando-as palpáveis e emocionalmente ressonantes para o leitor contemporâneo. A edição da Sophia Editora, ao contextualizar e explicar os elementos históricos e linguísticos da obra, torna essa leitura ainda mais acessível e relevante.

Em suma, "O Filho do Pescador" ganha uma nova vida através desta edição revista e ampliada, permitindo que um número maior de leitores descubra a riqueza e a sofisticação deste clássico da literatura brasileira. As notas de rodapé e as explicações adicionais transformam a experiência de leitura em uma jornada enriquecedora, iluminando aspectos que antes poderiam passar despercebidos. Com isso, a Sophia Editora e Gustavo Rocha realizam uma contribuição inestimável para a preservação e valorização do legado de Texeira e Sousa.

Resenha: Althusser e o materialismo aleatório, de Alysson Leandro Mascaro


O livro "Althusser e o materialismo aleatório" reúne as contribuições de dois destacados intérpretes do pensamento de Louis Althusser, Alysson Leandro Mascaro e Vittorio Morfino, em um profícuo diálogo sobre a última fase da obra deste influente filósofo marxista. A obra se estrutura em dois capítulos, nos quais os autores exploram diferentes aspectos da temática do encontro e da forma social, central para a compreensão do materialismo althusseriano dos anos 1980.

No primeiro capítulo, intitulado "Encontro e forma: política e direito", Alysson Leandro Mascaro aborda a relação entre encontro e forma, que perpassa a produção de Althusser e alcança seu ápice em textos da década de 1980, como "A corrente subterrânea do materialismo do encontro". O autor argumenta que essa temática, que já se fazia presente nos escritos althusserianos sobre ideologia e reprodução social nas décadas de 1960 e 1970, encontra no campo do direito um terreno fértil para ser explorada. 

Mascaro demonstra que a forma jurídica, derivada da forma mercadoria, revela-se fundamental para a compreensão da articulação entre determinação e acaso na constituição das relações sociais capitalistas. Ao analisar a transição entre os modos de produção, o autor evidencia como o encontro e o aleatório assumem papel decisivo, contrapondo-se a qualquer teleologia ou motor intrínseco da história. Nesse sentido, a forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica, embora derivadas da forma mercadoria, guardam particularidades próprias e se relacionam apenas de modo secundário, rompendo com a tradição liberal ou juspositivista que concebe o Estado e o direito como mutuamente constitutivos.

Essa leitura de ascaro dialoga diretamente com os debates da derivação do Estado, cujo expoente mais importante é Joachim Hirsch, bem como com a tradição do marxismo jurídico, representada por Evguiéni Pachukanis. Ao situar a forma jurídica como chave para a compreensão da ideologia e da subjetividade no capitalismo, o autor estabelece um paralelo profícuo entre o horizonte althusseriano e as reflexões de Bernard Edelman e Nicole-Edith Thévenin sobre a materialidade da ideologia jurídica.

Desse modo, Mascaro argumenta que a relação entre encontro e forma pode ser mais bem pensada nos campos econômico e político a partir da perspectiva da forma de subjetividade jurídica. Como esta é derivada da forma mercadoria, que por sua vez determina também uma forma política estatal, a investigação sobre encontro e forma poderá revelar entrecruzamentos e concretudes históricas incontornáveis para a análise da sociabilidade capitalista.

No segundo capítulo, intitulado "Um ou dois materialismos aleatórios?", Vittorio Morfino realiza um minucioso exame da trajetória de sua própria interpretação sobre o "materialismo aleatório" de Althusser, desde a organização da coletânea "Sul materialismo aleatorio" até seus escritos mais recentes. O autor identifica a presença de duas tendências distintas nos textos althusserianos dos anos 1980: uma de inspiração lucreciana, proveniente dos anos 1960, e outra de caráter escatológico ou messiânico, que emerge na segunda metade dessa década.

Morfino demonstra como Althusser introduz, já nos anos 1960, conceitos como encontro, conjunção e ausência determinada, com o objetivo de superar os impasses da teoria da causalidade estrutural e da noção de gênese. Essa reelaboração teórica, articulada com referências a autores como Maquiavel, Espinosa e Darwin, teria prosseguido nos escritos da década seguinte, embora tensionada por uma tendência messiânica que enfatiza o primado do vazio e a transformação das margens em centro.

Ao analisar essa transição, Morfino estabelece um paralelo com a distinção proposta por Ingo Elbe entre o "velho" e o "novo" marxismo. Assim como Althusser representaria, para Elbe, a passagem do "marxismo ocidental" para o "novo marxismo", seus escritos dos anos 1980 evidenciariam uma reelaboração da teoria da causalidade estrutural, com a introdução de novos conceitos que buscam pensar a constituição das formas sociais a partir do encontro e do aleatório.

Nesse sentido, a hipótese interpretativa sugerida por Morfino, que propõe uma periodização mais precisa dos textos althusserianos dos anos 1980, identificando uma predominância da tendência lucreciana em 1982 e da tendência escatológica em 1985-1986, revela-se um interessante ponto de partida para futuras investigações sobre a última fase do pensamento de Althusser.

Ao final, a obra "Althusser e o materialismo aleatório" oferece uma leitura aprofundada e rigorosa sobre a última fase do pensamento de Althusser, destacando sua relevância para a compreensão do capitalismo e da política contemporânea. As análises de Mascaro e Morfino evidenciam a riqueza teórica desses escritos, bem como sua capacidade de iluminar questões centrais do marxismo e do direito.

Nesse sentido, a obra se insere em um movimento mais amplo de resgate e atualização do legado althusseriano, que vem ganhando força nas últimas décadas, com trabalhos como os de Ingo Elbe, Márcio Bilharinho Naves, Celso Naoto Kashiura Júnior e Stefano Pippa. Trata-se de um esforço coletivo de repensar o marxismo a partir das contribuições de Althusser, em diálogo com os desafios teóricos e políticos do presente.

Assim, "Althusser e o materialismo aleatório" se apresenta como uma importante referência para aqueles interessados em compreender as nuances do pensamento de Althusser, bem como sua relevância para a análise crítica da sociabilidade capitalista e das formas de subjetivação que lhe são inerentes. A articulação entre encontro, forma e direito, desenvolvida por Mascaro, e a identificação das tendências lucreciana e escatológica nos escritos dos anos 1980, proposta por Morfino, constituem aportes significativos para o aprofundamento dos estudos sobre a última fase da obra deste influente filósofo marxista.

Resenha: Castelo: a marcha para a ditadura, de Lira Neto

APRESENTAÇÃO

Primeiro presidente da ditadura instaurada em 1964, Humberto de Alencar Castello Branco é um personagem-chave da história do Brasil contemporâneo. Seu curto mandato ainda hoje enseja reavaliações e revisionismos. Exercendo com habilidade e discrição o poder quase absoluto, Castello lançou as bases do regime de força que atormentou o país durante duas décadas. Ora visto como monstruoso e implacável, ora como tolerante e sensato, o estrategista do golpe civil-militar continua a levantar polêmicas, mas, contraditoriamente, sua trajetória tem sido pouco estudada. Em sua primeira grande biografia, agora em nova edição, Lira Neto apresenta uma visão abrangente e equilibrada sobre o homem, o militar e o político, munido da mais completa documentação já reunida sobre Castello. O autor da aclamada trilogia Getúlio investiga em profundidade a vida e as lutas do general franzino que, sem disparar um tiro, derrotou inimigos e aliados na guerra sem quartel pelo poder máximo da República.

RESENHA

"Castelo: a marcha para a ditadura", de Lira Neto, é uma biografia detalhada do general Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do regime militar que governou o Brasil a partir de 1964. A obra traça um retrato minucioso da trajetória de Castello Branco, desde sua infância no Nordeste até sua ascensão ao poder durante o golpe de 1964. O livro se destaca por sua riqueza documental e por revelar os bastidores da conspiração que levou à derrubada do governo democrático de João Goulart.

O primeiro capítulo da obra narra a infância e juventude de Castello Branco, destacando sua origem humilde e a influência de sua família marcada pela tradição militar. Nascido no Ceará em 1897, o jovem Castello enfrentou dificuldades desde cedo, sendo alvo de chacota devido à sua aparência física pouco atraente. No entanto, ele se destacou por sua dedicação aos estudos, especialmente após ingressar no Colégio Militar de Porto Alegre, onde desenvolveu uma personalidade reservada e disciplinada.

O livro descreve a ascensão de Castello Branco na carreira militar, sua participação na Escola Militar de Realengo e seu desempenho durante a Segunda Guerra Mundial, quando integrou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália. Nesse período, Castello Branco se consolidou como um oficial rigoroso e legalista, distanciando-se dos movimentos tenentistas que agitavam os quartéis nas décadas de 1920 e 1930.

O ponto alto da narrativa é a descrição detalhada da conspiração que levou ao golpe de 1964 e à ascensão de Castello Branco à presidência da República. O autor revela os bastidores dessa articulação, destacando o papel de Castello Branco como um dos principais articuladores do movimento, apesar de sua imagem pública de militar legalista. A obra também analisa a atuação de outros personagens-chave, como os generais Góis Monteiro e Ernesto Geisel, e a influência dos Estados Unidos nesse processo.

"Castelo: a marcha para a ditadura" se destaca como uma obra de fôlego que contribui significativamente para a compreensão do golpe de 1964 e do período da ditadura militar no Brasil. Através da minuciosa investigação de Lira Neto, o leitor tem acesso a uma narrativa densa e reveladora sobre os bastidores da conspiração que levou Castello Branco ao poder. A obra se torna, assim, leitura obrigatória para aqueles que buscam entender as origens e a consolidação do regime autoritário instaurado no país a partir de 1964.

Em suma, "Castelo: a marcha para a ditadura" é uma obra fundamental para o estudo da história política brasileira do século XX. Ao traçar a trajetória de Humberto de Alencar Castello Branco, Lira Neto desvenda os meandros da conspiração que desembocou no golpe de 1964 e na instauração da ditadura militar no Brasil. A riqueza documental e a abordagem minuciosa do autor conferem à obra um caráter incontornável para aqueles interessados em compreender esse período sombrio da história nacional.

Resenha: Vence-demanda: Educação e Descolonização, De Luiz Rufino

APRESENTAÇÃO

A educação como ferramenta de insubordinação contra o assombro colonial, como instrumento de transgressão das hierarquias do poder. Este pode ser um breve resumo do que Luiz Rufino apresenta nesta coletânea de artigos sobre educação e descolonização. Pensada não para gerar conformidade, mas divergência, a educação é a força que possibilita o processo de descolonização. A partir dessas premissas Rufino levanta discussões relevantes e atuais sobre o processo educacional, além de apontar caminhos.

Nos sete artigos que compõe a obra, o autor traz para o centro do debate a descolonização como tarefa da educação, fala da importância da “desaprendizagem”, da educação como prática da liberdade, realiza o encontro entre Exu e Paulo Freire, fala da gira descolonial como uma contínua batalha do colonizado na tentativa de deslocar a ordem vigente, da escola do sonho, aquela que deve ser habitada pelo conflito, pelo questionamento e finaliza lembrando que brincadeira é coisa séria.

RESENHA

O livro "Vence-demanda: Educação e Descolonização" de Luiz Rufino se configura como uma importante contribuição para os debates acerca da relação entre educação e descolonização no contexto brasileiro. Rufino, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), constrói nesta obra uma elaborada reflexão sobre o papel da educação como ferramenta de enfrentamento do legado colonial.

A obra se estrutura em sete capítulos que articulam diferentes perspectivas teóricas e experiências práticas na construção de uma visão da educação como "radical da vida" e "prática de liberdade". Ao longo do texto, Rufino dialoga com autores como Frantz Fanon, Paulo Freire, bell hooks e Ailton Krenak, estabelecendo um diálogo profícuo entre distintas matrizes de pensamento.

O primeiro capítulo, "Qual é a tarefa da educação?", apresenta uma crítica contundente à concepção hegemônica de educação, entendida como mera preparação para o mundo ou acesso a uma agenda curricular vigente. Rufino argumenta que a educação não pode se limitar à conformidade e a devaneios universalistas, devendo, ao contrário, ser compreendida como um "radical vivo" que possibilita o enfrentamento dos ditames da agenda colonial.

Nesse sentido, a principal tarefa da educação é a descolonização, entendida como um processo de luta e libertação da dominação de modos de existir, conceber e praticar o mundo. Trata-se de uma ação tática que desautoriza o ser e o saber que se quer único, confrontando as dimensões de poder do projeto colonial.

O capítulo "Desaprender do cânone" aprofunda essa discussão, ressaltando a necessidade de uma "desaprendizagem" que problematize e interrogue o que se coloca como o único saber possível ou como saber maior em relação a outros modos. Essa desaprendizagem é compreendida como um ato político e poético diante daquilo que se veste como única verdade, confrontando o cânone e a política de esquecimento promovida pelo colonialismo.

O terceiro capítulo, "Descolonizar é um ato educativo", articula a noção de descolonização com a dimensão da cura, compreendendo-a como um enfrentamento da guerra colonial que não se limita ao campo bélico, mas se estende às esferas cognitiva, espiritual e existencial. Nesse sentido, a educação emerge como um "radical educativo" que possibilita a recuperação de sonhos, a ampliação de subjetividades e a reativação de memórias e saberes subalternizados.

Essa perspectiva é aprofundada no capítulo "Exu e Paulo Freire", no qual Rufino estabelece um diálogo entre a cosmogonia de Exu e o pensamento de Paulo Freire, compreendendo a educação como um campo de batalha em que se disputa a descolonização. Nesse jogo, Exu é entendido como um princípio explicativo de mundo que confronta a lógica colonial, enquanto Freire é lido como um "caboclo" que, em sua práxis educativa, mobiliza energias transgressoras.

Os últimos três capítulos do livro se dedicam à reflexão sobre o papel da escola nesse processo de descolonização. Em "A escola dos sonhos", Rufino argumenta que a escola, apesar de suas limitações, deve ser compreendida como um tempo e espaço de disputa por experimentações e pela defesa de um mundo plural.

Nessa perspectiva, a "escola palmeira" é apresentada como uma metáfora para uma educação que valoriza a diversidade de saberes, a capacidade de fazer perguntas e a liberdade do corpo em sua experimentação do mundo. Trata-se de uma escola "mais que humana", que reconhece a agência de outros seres e práticas de conhecimento não hegemônicas.

O capítulo "Guerrilha brincante" aprofunda essa discussão, ressaltando a importância da brincadeira e do jogo como dimensões fundamentais de uma educação descolonizadora. Rufino argumenta que a brincadeira, entendida como "libertação da regulação" imposta pelo modelo colonial, constitui uma estratégia de remontagem das esferas de memória, cognição, cultura e comunidade.

Por fim, o livro se encerra com o capítulo "A gira descolonial", no qual Rufino retoma a noção de "gira" como uma metáfora para a descolonização entendida como uma "batalha e cura" que convoca as presenças subalternas a partir de seus saberes e tecnologias ancestrais. Nesse sentido, a descolonização não se resume a um giro epistemológico, mas demanda uma "gira" que mobilize múltiplas dimensões da existência.

Em síntese, "Vence-demanda: Educação e Descolonização" se configura como uma obra fundamental para se pensar a educação como um campo de disputa política e poética, em que se reivindicam outras formas de ser, saber e estar no mundo. Ao articular distintas matrizes teóricas e experiências práticas, Rufino apresenta uma proposta de educação como "radical da vida" e "prática de liberdade", capaz de confrontar o legado colonial e construir caminhos de descolonização.

Resenha:Flores de Alvenaria, de Sérgio Vaz



APRESENTAÇÃO

Como poeta e morador da periferia, Sérgio Vaz sabe, como ninguém, transmitir a alma das ruas. Em  Flores de alvenaria  o autor nos lança nas calçadas do subúrbio e descortina um universo muitas vezes invisível por meio de textos, ora em verso, ora em prosa, sobre os mais variados temas: educação, negritude, liberdade, sexo, empatia.

Com apresentação do cantor e compositorChico César , a obra traz diálogos, relembra a situação da periferia em outras épocas e conta com poemas que costumam ser declamados na Cooperifa , evento criado pelo poeta que transformou um bar de Taboão da Serra em um evento cultural.

RESENHA

A obra "Flores de Alvenaria" do poeta Sérgio Vaz é uma importante contribuição para a literatura brasileira contemporânea, principalmente no que diz respeito à poesia produzida nas periferias urbanas. Vaz, que é um dos principais expoentes do movimento cultural da Periferia de São Paulo, apresenta neste livro uma coletânea de poemas, crônicas e textos que revelam a riqueza e a diversidade da produção literária emergente das comunidades marginalizadas. 

Ao longo desta resenha, buscaremos analisar os principais aspectos formais e temáticos da obra, bem como sua relevância no contexto sociocultural em que está inserida. Para tanto, dividiremos a discussão em três eixos principais: 1) A construção poética e a linguagem utilizada por Vaz; 2) As temáticas abordadas e sua relação com a realidade da periferia; 3) O papel da obra como manifestação cultural e política de resistência.

Um dos aspectos mais notáveis da obra de Sérgio Vaz é sua construção poética singular, marcada por uma linguagem que rompe com os padrões convencionais da poesia canônica. Ao longo de "Flores de Alvenaria", o autor emprega uma dicção coloquial, permeada por gírias, expressões populares e ritmos próprios da oralidade. Essa opção estética não se dá de forma aleatória, mas reflete uma clara intencionalidade do poeta em dar voz a uma perspectiva marginal, que se distancia das normas cultas da língua.

Nesse sentido, a obra de Vaz pode ser compreendida como uma espécie de "deglutição" dos cânones literários, em que a tradição é reelaborada a partir de uma ótica periférica. Tal estratégia se revela, por exemplo, na maneira como o autor reinterpreta clássicos da literatura brasileira, como os poemas de Castro Alves e as canções de Cartola, ressignificando-os em chave contemporânea e popular.

Além disso, a construção formal dos poemas também se destaca pela experimentação com diferentes gêneros e estruturas, transitando entre versos livres, prosa poética, letras de música e até mesmo a dramaticidade de diálogos. Essa heterogeneidade formal reflete a própria diversidade da expressão artística da periferia, que não se limita a modelos pré-estabelecidos.

Outro aspecto central da obra de Sérgio Vaz diz respeito às temáticas abordadas, que se encontram profundamente enraizadas na realidade da periferia urbana. Temas como a violência, a desigualdade social, o racismo, a precariedade das condições de vida e a luta pela sobrevivência permeiam grande parte dos textos, revelando um olhar atento e engajado do poeta em relação aos problemas que afetam diretamente as comunidades marginalizadas.

Nesse sentido, a obra de Vaz pode ser compreendida como uma espécie de "crônica poética" da vida nas periferias, em que a linguagem artística se torna um meio de denúncia e de reivindicação de direitos. Ao retratar o cotidiano de privações, lutas e resistências, o autor confere visibilidade a uma realidade muitas vezes invisibilizada ou distorcida nos discursos hegemônicos.

Além disso, a obra também se destaca pela representação de experiências e subjetividades que desafiam os estereótipos comumente associados à periferia. Personagens como o "poeta das ruas", a "Maria fodida" e o "vira-lata" são construídos com profundidade psicológica, revelando a complexidade das vivências individuais e coletivas nesse contexto.

Ao analisarmos a obra de Sérgio Vaz sob uma perspectiva mais ampla, é possível compreendê-la também como uma importante manifestação cultural e política de resistência. Inserida no contexto do movimento cultural da Periferia de São Paulo, "Flores de Alvenaria" se configura como uma expressão artística que busca afirmar a voz e a agência das comunidades marginalizadas.

Nesse sentido, a própria trajetória de Vaz como poeta e agitador cultural, fundador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), é emblemática. Sua atuação na organização de saraus, eventos literários e ações comunitárias demonstra um claro engajamento em prol da democratização do acesso à cultura e da valorização das manifestações artísticas periféricas.

Além disso, a obra em si se apresenta como uma forma de resistência simbólica, na medida em que subverte os cânones literários e dá visibilidade a narrativas e perspectivas historicamente silenciadas. Ao reclamar o direito de dizer a sua própria história, Vaz e outros autores periféricos contribuem para a construção de uma nova hegemonia cultural, pautada na diversidade e no protagonismo das vozes marginais.

Em síntese, a obra "Flores de Alvenaria" de Sérgio Vaz se destaca pela sua relevância no contexto da literatura brasileira contemporânea, especialmente no que diz respeito à poesia produzida nas periferias urbanas. Através de uma linguagem singular, marcada pela oralidade e pela experimentação formal, o autor aborda temáticas intimamente ligadas à realidade das comunidades marginalizadas, conferindo visibilidade a experiências e subjetividades historicamente invisibilizadas.

Além disso, a obra de Vaz pode ser compreendida como uma manifestação cultural e política de resistência, na medida em que se insere em um movimento mais amplo de afirmação da voz e da agência das periferias. Nesse sentido, a trajetória do poeta e sua atuação como organizador de eventos literários e ações comunitárias também se revelam como importantes elementos de análise.

Portanto, a leitura e a análise de "Flores de Alvenaria" nos permitem não apenas apreciar a riqueza estética da produção literária periférica, mas também compreender sua relevância enquanto ferramenta de transformação social e cultural. Trata-se, assim, de uma obra fundamental para o entendimento da complexidade e da diversidade da literatura brasileira contemporânea.

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