Mostrando postagens com marcador zahar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador zahar. Mostrar todas as postagens

[RESENHA #991] Esboço de uma teoria da cultura, de Zygmunt Bauman


O livro Ensaios sobre o conceito de cultura, originalmente intitulado Culture as práxis (Cultura como práxis), foi escrito por um Bauman anterior à sua fama por abordar a liquidez da era moderna. Nesta obra, composta por três capítulos, Bauman revisita a evolução do conceito de cultura desde a filosofia grega antiga até o pós-estruturalismo. O primeiro capítulo explora a cultura como conceito, enfatizando sua natureza ambígua e sua incorporação em três universos discursivos distintos: hierárquico, diferencial e genérico. Bauman introduz o conceito hierárquico de cultura, destacando sua origem e a importância da educação e refinamento na sociedade. Ele discute a ideia de que a cultura é uma propriedade humana que pode ser adquirida, transformada e moldada. Para Bauman, a cultura hierárquica é carregada de valores e serve como um ideal a ser alcançado.

Bauman analisa que, para os antigos gregos, o ideal cultura-natureza não se dividia como estamos acostumados hoje em dia. O que era moralmente bom também era esteticamente belo e mais próximo da verdade da natureza. A unidade preordenada da realização era expressa no conceito de kalokagathia, que combinava o belo e o bom, discutido por todos os pensadores do período clássico. A parte "bom" do conceito correspondia aproximadamente às palavras admirar e louvar. Quanto à questionável hierarquia da cultura em geral e da kalokagathia em particular, Bauman destaca a análise de Gellner sobre a "bobilidade", que é um artifício sociológico através do qual a classe privilegiada absorve parte do prestígio de certas virtudes valorizadas sem precisar praticá-las. Existe uma relação estreita entre a noção de bobilidade e a lógica estrutural dos processos vivos, mas a avaliação do papel da hierarquia em uma sociedade conflituosa depende do contexto estrutural que é escolhido como referência.

Os conflitos em torno da noção hierárquica de cultura podem refletir o descontentamento dos grupos marginalizados. No entanto, atualmente, o conceito hierárquico não está mais ligado à antiga kalokagathia. O intelecto e o dinheiro podem impulsionar a mobilidade social ascendente, e Bauman argumenta que a cultura em sua forma hierárquica foi reinventada em favor dos eruditos e intelectuais.

A cultura como conceito diferencial é utilizado para explicar as diferenças entre as comunidades humanas, situando-se entre os conceitos residuais das ciências sociais. Historicamente, antropólogos têm utilizado este conceito para compreender e compartilhar as verdades culturais de diferentes grupos sociais. Por outro lado, o conceito genérico de cultura aborda a dicotomia entre o mundo humano e o mundo natural, destacando os atributos que distinguem a espécie humana. Neste contexto, a cultura é considerada uma característica universal e exclusiva dos seres humanos, sendo uma abordagem específica e humana para a vida. Alguns defensores deste conceito estão mais alinhados com a abordagem tradicional, mas situados na transição histórica do mundo animal para o mundo humano.

O segundo capítulo do livro aborda a Cultura como Estrutura, destacando que a estrutura é oposta à desordem e consiste em um conjunto de regras que regem as transformações entre elementos interconectados. Bauman vê a estrutura como o ordenamento das interações na sociedade, sendo essencial para a dinâmica sociocultural. Ele argumenta que a estrutura é fundamental para a cognição e o conhecimento, sendo composta por regras históricas que guiam a atividade mental e prática do ser humano. A estrutura social é percebida como uma lei transcendental e uma fonte de liberdade criativa. Bauman acredita que a abordagem estrutural da práxis humana oferece uma solução para a dualidade da cultura e da estrutura social. No terceiro capítulo, ele explora a cultura como práxis, destacando que o conceito transcende a dualidade entre subjetivo e objetivo. A cultura atua no encontro entre o humano e o mundo real, objetivando a subjetividade. Bauman defende que a cultura representa a práxis humana e eleva a autopercepção da condição humana além da experiência privada.

Mais tarde, Bauman começa a explorar a relação entre cultura e natureza com a teoria de Lévi-Strauss, que, em busca da universalidade entre todas as formas de cultura, inicia seu estudo antropológico com a proibição do incesto, que é o ponto de encontro mais evidente entre natureza e cultura. Ele discute o nojo e os tabus sociais relacionados aos produtos das necessidades fisiológicas humanas e chega à fronteira entre "nós" e "eles", que pode gerar um forte sentimento de xenofobia ou preconceito contra os marginalizados quando o outro é tratado com aversão. Neste caso, o outro é visto como viscoso, um termo frequentemente utilizado para se referir à ambiguidade percebida no estranho.

No entanto, antes da percepção humana da viscosidade, existe a práxis. A relação entre ambas proporciona um projeto que resulta em uma pesquisa rica e descobertas significantes. A perspectiva defendida no livro sugere a reorganização de várias descobertas adquiridas sob diferentes estruturas analíticas, embora em parte exija o estabelecimento de um novo projeto, que vai além do escopo do estudo em questão.

Bauman discute a cultura e a sociologia, examinando como esta última estudou o campo cultural ao longo de sua trajetória científica. Ele conclui que a cultura é singularmente humana, pois apenas os seres humanos podem reivindicar um significado mais profundo. As normas e ideais oferecem a única perspectiva a partir da qual essa condição é vista como a realidade humana e adquire dimensões humanas. O professor polonês sugere que essa perspectiva deve ser adotada pela sociologia para elevar-se ao patamar das humanidades, além de ser uma ciência, a fim de resolver um antigo dilema e entrar em contato direto com a práxis humana.

Bauman vê a cultura como a inimiga da alienação, uma vez que liberta o humano de um estado de revolta constante, abrindo portas para uma multiplicidade de realidades e permitindo a expressão de vontades e desejos anteriormente reprimidos. Ele argumenta que à medida que a práxis humana mantém sua natureza de revolta incontrolável, as profecias de um mundo sem significado perdem sua validade.

Na reedição realizada quase três décadas após a publicação original, Bauman acrescentou uma introdução na qual atualiza e analisa o livro com uma compreensão mais aprofundada das transformações culturais e sociais, abordando temas como o multiculturalismo. Ele reformula o paradoxo da cultura, explicando que o que serve para preservar um padrão também enfraquece seu poder, já que a cultura se autoperpetua à medida que o impulso de modificar, alterar e substituir o padrão persiste.

Atualizou e adaptou sua visão de cultura à sua teoria sobre a liquidez da modernidade no livro A Cultura no Mundo Líquido, originalmente publicado em 2011. No texto, o autor aborda a transformação da cultura de estimulante para tranquilizante em meio aos processos que modificaram a modernidade para sua fase líquida. Bauman enfatiza como a cultura passou a servir à manutenção do status quo e à reprodução monótona da sociedade. Apesar do pessimismo do autor em relação à modernidade líquida, ainda é possível enxergar a cultura como impulsionadora de mudanças, como demonstrado na luta feminista presente na música, literatura e audiovisual contemporâneo. O estudo aprofundado dos fenômenos culturais atuais poderia proporcionar uma melhor compreensão do impacto das manifestações de revolta, levando em consideração como a sociedade de consumo transforma a cultura em produto a ser consumido.

A análise dos três conceitos apresentados no primeiro capítulo do livro abordado nesta resenha revela a persistência do conceito hierárquico. Mesmo na música popular, considerada menos sofisticada que a clássica, há uma clara distinção de status entre diferentes artistas. Um exemplo disso é a diferenciação de refinamento existente entre a tropicália e o sertanejo, evidenciando a aplicação da intelectualidade na hierarquia cultural, mesmo que o aspecto financeiro também influencie. 

Quanto ao conceito diferencial, Bauman observou fatores que inspiraram Canclini a escrever sobre a mistura de culturas na era da globalização. A obra analisada nesta resenha reflete as preocupações de Bauman, indo além do formalismo acadêmico ao criticar a xenofobia e os preconceitos contra as classes marginalizadas. No entanto, dada a complexidade e multiplicidade do termo cultura, novos estudos são necessários para aprofundar e atualizar as questões abordadas.

[RESENHA #990] Estranhos à nossa porta, de Zygmunt Bauman

Zygmunt Bauman examina as origens, os contornos e o impacto do pânico moral atual em torno da “crise migratória” na Europa. Explora o medo gerado pelas campanhas políticas, argumentando que esta “crise da humanidade” exige, em vez disso, uma “fusão de horizontes” através do diálogo. Embora Nicolas Schneider sugira que possa ser necessária uma análise mais sistemática e detalhada sobre como se opor a esta dinâmica emergente de desumanização na política contemporânea, ele considera que este texto oferece, no entanto, um valioso vislumbre introdutório às complexidades da questão. 

Bauman desmantela o “pânico migratório” na Europa, abordando a erosão do moral compass na política ocidental. Ele expõe as campanhas políticas hipócritas que promovem o medo, e defende o diálogo como solução para a “crise da humanidade”. O livro, embora às vezes pareça uma coletânea de ensaios, revela os mecanismos políticos que moldam a realidade atual, criticando a política contemporânea. Bauman expressa perplexidade com a hostilidade da Europa em relação a estrangeiros, apontando que a migração sempre foi parte da história da humanidade. 

Ele discute o conceito de “medo cósmico” e sua transformação em “medo oficial” pelos políticos. Bauman analisa a individualização e a perda de referências territoriais estáveis, contribuindo para o surgimento de bodes expiatórios e a exclusão social. Ele propõe o diálogo como forma de superar a crise atual, inspirado em filósofos como Gadamer e Arendt. A análise de Bauman ganha relevância após o Brexit, destacando o racismo na política europeia. 

Embora as soluções propostas por Bauman possam parecer vagas, o livro oferece uma visão profunda das complexidades da questão e pode ser um guia para futuras ações contra a desumanização.

 Em suma, estranhos à nossa porta é uma leitura importante e provocativa que desafia o leitor a repensar suas percepções sobre a migração e a crise humanitária atual. Bauman oferece uma análise perspicaz e crítica da política contemporânea, destacando a necessidade urgente de dialogar e buscar soluções humanitárias para acolher os estrangeiros em nossas sociedades. É um livro que certamente merece ser lido e discutido, contribuindo para um debate mais informado e compassivo sobre a questão migratória na Europa e no mundo.

[RESENHA #695] Modernidade Liquida, de Zygmunt Bauman


APRESENTAÇÃO

No livro clássico de sua obra ― agora em novo projeto gráfico ―, o sociólogo Zygmunt Bauman examina como se deu a passagem de uma modernidade “pesada” e “sólida” para uma modernidade “leve” e “líquida”, infinitamente mais dinâmica.

Zygmunt Bauman cumpre aqui sua missão de sociólogo, esclarecendo como se deu a transição da modernidade e nos auxiliando a repensar os conceitos e esquemas cognitivos usados para descrever a experiência individual humana e sua história conjunta.
É a essa tarefa que se dedica este livro. Analisando cinco conceitos básicos que organizam a vida em sociedade ― emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade ―, Bauman traça suas sucessivas formas e mudanças de significado. Modernidade líquida complementa e conclui a análise realizada pelo autor em Globalização: As consequências humanas e Em busca da política. Juntos, esses três volumes formam uma análise brilhante das condições cambiantes da vida social e política.

RESENHA

“Modernidade liquida” se concentra em uma meta-crítica da globalização e de todos os problemas que ela apresenta, desde o desenraizamento até a onipresença do Estado de segurança. A tese central de Bauman é que as consequências da globalização prejudicaram seriamente as tentativas de justiça internacional. O objetivo da globalização - erradicar quaisquer barreiras comerciais e, portanto, criar “mercados sem fronteiras” - resulta na transição de um mundo onde as pessoas estão sujeitas às leis e proteções de seus países de origem para um mundo em que o medo radical e a falta de segurança são reificados e reina o “desvanecimento dos laços humanos e o enfraquecimento da solidariedade”. Esta falta de segurança resulta em medo e uma aparente falta de controle, o que por sua vez perpetua e reforça a mudança evidente em direção à segurança nacional que temos vivido nas democracias liberais avançadas. E assim continua o ciclo pernicioso.

Em sua comparação entre as cidades, as localizadas globalmente (que são capazes de participar na esfera totalmente integrada da globalização) e as cidades localizadas localmente (aquelas que não o são), Bauman diz que o trabalho da cidade mudou de proteger seus habitantes de estranhos para abrigar populações guetizadas de transnacionais peripatéticas e estranhos, o “lixão para problemas globalmente concebidos e gestados”.

Nossos novos tempos líquidos também trouxeram um número sem precedentes de refugiados, tanto políticos como econômicos. As guerras, que Bauman considera serem essencialmente tentativas locais de resolver problemas globais, tornam-se intratáveis. O resultado é um “excesso de humanidade” - a humanidade como produto residual - completa e totalmente despojada de propriedade, identidade pessoal, ou mesmo de um Estado que reconheça sua existência.

Bauman sugere que a democracia se tornou ironicamente um assunto elitista, onde os ricos protegem seus interesses e os pobres continuam a sofrer com a falta de redes de segurança social e de redes governamentais de apoio. Ele também não está muito otimista quanto às possibilidades de alcançar uma utopia pré-globalizada, uma palavra que Thomas More notou pela primeira vez que poderia significar, homofonicamente, “paraíso” ou “lugar nenhum”. Embora ainda seja um paraíso para alguns, nosso mundo tornou-se demasiado líquido para ser outra coisa senão o último para a maioria de nós. No final, Bauman oferece em cada análise da globalização o último paradoxo da modernidade: uma vida permanente permeada pela impermanência.

Como mencionei anteriormente, Bauman dedicou tempo para detalhar mais suas análises em outros livros, de acordo com o final do livro. No entanto, com base no que li aqui, não tenho certeza de quantos de seus argumentos são originais. Livros sobre globalização com temas de alienação e privação de direitos são bastante comuns no campo da sociologia. No entanto, o humor irônico de Bauman definitivamente despertou meu interesse em ler mais de seu trabalho, o que pretendo fazer no futuro.

Por Breno Sales.

Sobre o autor

Sobre o autor

ZYGMUNT BAUMAN (1925-2017) foi o grande pensador da modernidade. Perspicaz analista de temas contemporâneos, deixou vasta obra — com destaque para o best-seller Amor líquido. Professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, tem mais de quarenta livros publicados no Brasil, todos pela Zahar. Bauman nasceu na Polônia e morreu na Inglaterra, onde vivia desde a década de 1970.

[Resenha #497] Retrotopia, de Zygmunt Bauman

APRESENTAÇÃO

Decorrente da crise dos Estados-nação e do abismo cada vez maior entre poder e política, a retrotopia é a utopia do passado. Vivemos a perda completa da esperança de alcançar a felicidade em algum lugar idealizado no futuro - como a famosa ilha Utopia imaginada por Thomas More -, o que leva a uma glorificação de práticas e projetos de tempos passados.

Esse é o último livro de Bauman, o grande pensador da modernidade líquida, falecido em janeiro de 2017.Retrotopiadisseca o fenômeno atual de busca por um mundo melhor não mais no futuro a ser construído, mas em ideias e ideais do passado, como nacionalismos exacerbados e fechamento de fronteiras.

Assim, a nostalgia se transformou em um mecanismo de defesa nos últimos tempos. Grandes planos do passado - abandonados, mas não mortos - estão sendo ressuscitados e reabilitados como possíveis caminhos para um mundo melhor.

RESENHA


Esta análise aborda a ‘Retrotopia’ de Zygmunt Bauman, publicada logo após o falecimento do renomado sociólogo, à luz de seu envolvimento com o pensamento do Papa Francisco durante os últimos anos de sua vida. Ela explora alguns dos principais temas deste compromisso e discute seu papel e importância no contexto do livro, bem como nos objetivos da sociologia de Bauman como um todo. Enquanto as inseguranças e ansiedades da modernidade líquida em nosso mundo cada vez mais violento levam muitos a abandonar o esforço de construir um futuro melhor e se voltar para a ‘retrotopia’ de um passado ideal, um sinal crucial de esperança é encontrado nas palavras do Papa Francisco. Em seu trabalho como sociólogo, Zygmunt Bauman busca redirecionar nosso olhar para o futuro e para o diálogo, entendido como a arte de viver juntos.

Poucas semanas antes de sua morte, em 9 de janeiro de 2017, o renomado sociólogo Zygmunt Bauman enviou um pequeno texto ao jornalista italiano Francesco Antonioli como contribuição para um livro editado sobre o Papa Francisco. No texto, publicado como ‘il dono’ (‘o presente’), o secular Bauman de origem judaica descreveu o Papa Francisco como ‘o presente mais precioso oferecido pela Igreja Católica Romana ao nosso mundo’ (2017a). No mundo de hoje, o sociólogo da modernidade líquida escreveu, de todas as pessoas no centro das atenções e com justa autoridade em todo o mundo, apenas Jorge Mario Bergoglio entendeu e definiu claramente quais prioridades enfrentar (Bauman, 2017a). Bauman definiu essas prioridades como: 1. a arte do diálogo (como forma de desenvolver um modus convivendi entre as pessoas de nosso tempo), 2. a desigualdade (atenção à pobreza e ao sofrimento causado por uma desigualdade social e econômica fortalecida pela indiferença generalizada), e 3. currículos escolares (a necessidade de ressuscitar os padrões morais perdidos e restaurar os valores espirituais nos jovens; os valores espirituais para resistir à erosão de valores causada pelo materialismo, consumismo e lucro). ‘O presente chamado Papa Francisco’, concluiu Bauman, ‘oferece ao mundo um propósito e à nossa vida o seu significado. Provaríamos ser capazes e dispostos a aceitar essa oferta e agir de acordo com ela? '(2017a: 27).

Essa referência ao Papa Francisco não é incomum na obra de Bauman; nos últimos anos de sua vida citou e se referiu com freqüência ao pontífice argentino. Em seu livro ‘Retrotopia’, publicado apenas algumas semanas após sua morte, no qual Bauman discutia a tendência crescente de se afastar de construir um futuro melhor para retornar a um passado ideal, ele se referiu ao discurso do Papa Francisco sobre o futuro da Europa na ocasião de receber o Prêmio Carlos Magno em abril de 2016. Bauman cita deste discurso o parágrafo sobre a capacidade de diálogo, como ‘a resposta mais convincente a esta questão seminal, viva ou morra para a humanidade’ (2017b: 164). Desta forma, Bauman tentou oferecer um ponto de referência reconhecível como parte de seu projeto para oferecer uma alternativa ao grande desafio de nosso tempo descrito em Retrotopia: a atual inclinação de muitas pessoas e países inteiros para reagir a um mundo de violência e insegurança fechando-se em tribos e erguendo barreiras e muros. Como um dos sociólogos contemporâneos mais famosos do mundo, as reflexões de Bauman sobre a insegurança, a modernidade líquida e o risco de aumentar a separação e a solidão entre as pessoas são bem conhecidas. Mas como ele passou a ver o papa argentino Jorge Maria Bergoglio como um ponto de referência fundamental em sua visão para o futuro da sociedade moderna líquida, que adquire cada vez mais as características de uma ‘retrotopia’?

Já em sua obra clássica ‘Modernidade líquida’, Zygmunt Bauman alertou sobre a característica da sociedade moderna fluida para favorecer a colonização do espaço público e, portanto, o sentido de compartilhar um bem comum e a capacidade de trabalhar juntos para isso, pelo privado esfera da vida pessoal-polí.

Bauman alertou que a sociedade moderna líquida tende a favorecer a colonização do espaço público, e consequentemente, o sentido de compartilhar um bem comum e a capacidade de trabalhar juntos para isso, pela esfera privada da vida pessoal-política. Isso resulta em uma crescente separação e solidão entre as pessoas, uma característica que Bauman frequentemente destacou em suas reflexões sobre a modernidade líquida.

Em seus últimos anos, Bauman viu no Papa Francisco um ponto de referência crucial para o futuro da sociedade moderna líquida. Ele admirava a capacidade do Papa de entender e definir claramente as prioridades que precisamos enfrentar em nosso mundo cada vez mais violento e inseguro. Essas prioridades incluem a arte do diálogo, a atenção à pobreza e ao sofrimento causado pela desigualdade social e econômica, e a necessidade de ressuscitar os padrões morais perdidos e restaurar os valores espirituais nos jovens.

Bauman acreditava que o Papa Francisco oferecia ao mundo um propósito e à nossa vida o seu significado. No entanto, ele questionou se seríamos capazes e dispostos a aceitar essa oferta e agir de acordo com ela.

Em ‘Retrotopia’, Bauman discutiu a tendência crescente de se afastar de construir um futuro melhor para retornar a um passado ideal. Ele citou o discurso do Papa Francisco sobre o futuro da Europa, no qual o Papa destacou a capacidade de diálogo como ‘a resposta mais convincente a esta questão seminal, viva ou morra para a humanidade’.

Bauman tentou oferecer um ponto de referência reconhecível como parte de seu projeto para oferecer uma alternativa ao grande desafio de nosso tempo: a atual inclinação de muitas pessoas e países inteiros para reagir a um mundo de violência e insegurança fechando-se em tribos e erguendo barreiras e muros.

A visão de Bauman para o futuro da sociedade moderna líquida é um chamado para redirecionar nosso olhar para o futuro e para o diálogo, entendido como a arte de viver juntos. Ele nos lembra que, apesar das inseguranças e ansiedades da modernidade líquida, ainda podemos escolher construir um futuro melhor. A história ainda não terminou, e o homem ainda pode fazer escolhas.


Sobre o autor

Sobre o autor

ZYGMUNT BAUMAN (1925-2017) foi o grande pensador da modernidade. Perspicaz analista de temas contemporâneos, deixou vasta obra — com destaque para o best-seller Amor líquido. Professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, tem mais de quarenta livros publicados no Brasil, todos pela Zahar. Bauman nasceu na Polônia e morreu na Inglaterra, onde vivia desde a década de 1970.

[RESENHA #482]“Moby Dick” de Herman Melville

Moby Dick de Herman Melville é um romance, no qual o narrador, Ishmael, faz amizade com Queequeg, um arpoador dos mares do sul, e juntos procuram uma tripulação baleeira. Eventualmente, eles se juntam ao capitão Ahab a bordo do Pequot. Ishmael logo descobre que Ahab havia perdido a perna e o navio para uma baleia, chamada Moby Dick. O capitão e sua tripulação navegam ao redor do mundo para caçar a baleia por vingança. O livro tem um tema muito profundo e ambicioso, pois Herman Melville aborda muitas controvérsias ao longo de sua escrita, com comentários sutis. Os personagens e o enredo se encaixam perfeitamente e tudo é bem desenvolvido com algum tipo de história de fundo que se estende por todas as suas páginas. 

Este romance de 1851 é considerado por muitos críticos como um dos maiores romances americanos. Alguns até o consideram o maior romance da língua inglesa, independentemente da nacionalidade. Mas é um trabalho intimidador. É do conhecimento geral que a grande tragédia de Melville sobre o capitão baleeiro obcecado em vingar a perna do cachalote albino que a amputou é uma história dilacerante. Mas é também, como se sabe, um livro tremendamente sério, repleto de solilóquios melodramáticos que testam ao limite o vocabulário e a compreensão do leitor.

Moby Dick é uma obra épica da literatura comparável à Ilíada de Homero, ao Rei Lear de Shakespeare e à obra bíblica. É densamente rico em linguagem e estrutura, em caráter e história.

Sua história do homem contra à baleia nunca foi contada de forma tão espetacular. Mas é paralelo a outros esforços de mestres contadores de histórias ao longo dos séculos para retratar pessoas enfrentando questões irrespondíveis da existência.

Como Jó, que luta com a questão de saber por que coisas ruins acontecem a pessoas boas - na verdade, por que há sofrimento no mundo.

Como Lear se enfurecendo contra a decadência corporal, a traição dos outros e ainda mais contra a própria traição de si mesmo.

Aquiles, invencível, luta e morre por causa de um erro fatal. Édipo mata o pai sem saber e faz sexo com a mãe por causa da cegueira com que toda pessoa nasce, a incapacidade de saber tudo, de entender as consequências de seus atos.

Levaria meses, provavelmente anos, para entender totalmente Moby Dick. E só li uma vez.

E como mais obras literárias do que você provavelmente imaginaria, é um romance muito imperfeito. Nunca vi um livro começar com um começo tão vago e nada dramático: páginas e páginas de citações sobre baleias. Em algum lugar no capítulo 3, Melville apresenta um personagem de uma forma que sugere que ele será importante mais tarde; da próxima vez que ele menciona o cara, por volta do capítulo 23, é apenas para admitir que ele não tem importância. É para ser a narrativa em primeira pessoa de um personagem chamado Ismael, mas muitas das cenas mais poderosas e partes do diálogo interior só poderiam ser conhecidas por um narrador onisciente. Na verdade, Ishmael acaba sendo um personagem tão insignificante que, quando ele não está apresentando ensaios de simpósio baseados em sua pesquisa sobre baleias, você quase esquece que ele existe.

Muitos leitores perderam-se durante a narrativa de Moby Dick devido aos muitos capítulos de informações básicas que Ishmael se sente compelido a nos passar sobre baleias e caça às baleias. Eu posso entender que algumas pessoas querem continuar com a história e não querem ter todos esses detalhes. No momento em que o  Pequod  praticamente circunvaga o globo, você sente que percorreu todo o mundo do conhecimento relacionado às baleias: sua anatomia, seus hábitos sociais e a anatomia e hábitos sociais dos navios que os caçaram.

A escrita é alternadamente irônica, séria, violenta e terna. Por um lado, há o famoso Massacre dos Tubarões (Capítulo 66), onde Melville tece uma imagem de tubarões realmente devorando uns aos outros em sua loucura - realismo incrível e extremamente violento. Mesmo os capítulos descritivos aparentemente secos costumam ter um alto grau de ironia, como a afirmação de que reis e rainhas foram todos coroados com óleo de baleia (capítulo 25). Tudo isso dá a Moby-Dick uma certa textura única e parece indispensável para a majestade geral do livro.

O que eu amei neste livro: a atmosfera, os detalhes excruciantes, a variedade de diálogos... você sente que também está no convés do Pequod quando Starbuck e Ahab conversam... A nítida paixão do narrador, Ismhael, com Queequeg é notável, as cenas que se seguem entre ambos carregam uma paixão sexualizada forte e densa. A princípio, achei que estava "viajando na maionese", até decidir pesquisar por conta própria e descobrir que Melville e Nathaniel Hawthorne, famoso por Scarlet Letter e a quem Moby-Dick é dedicado, podem ter sido amantes, inclusive, aqui, você confere uma carta escrita por Melville à Nathaniel Hawthorne.

Definitivamente, há algo universal nessa história em que Ahab claramente se sente acima da moralidade e é brutalmente esmagado por seu orgulho. O triste é que toda a tripulação paga o preço final por aderir à sua obsessão. Os dois últimos encontros descritos com outros barcos são magistrais: o contraste com o abandono selvagem do bacharel e a rejeição da desamparada Rachel foram ambos perfeitos para os atos finais desta tragédia.

As estruturas de Moby Dick

A primeira estrutura tem a ver com as duas figuras centrais do livro, o capitão Ahab e a baleia Moby Dick:

  • Seção 1 — Introdução — 101 páginas (25%) — O primeiro quarto da história é contado sem que Ahab apareça.
  • Seção 2 — A Busca — 289 páginas (70%) — Ahab aparece nas páginas do romance pela primeira vez e lidera o Pequod em sua busca pela baleia branca.
  • Seção 3 — A Baleia — 20 páginas (5%) — Moby Dick é localizado por Ahab e a tripulação do Pequod. A perseguição dura três dias com consequências trágicas para todos, exceto um marinheiro derrubado de um barco (Ishmael) e Moby Dick.

A segunda estrutura que notei pode ser vista como uma versão mais detalhada da primeira, mas acho que representa uma organização paralela, mas separada da história.

  • Seção 1 — Introdução — 101 páginas (25%) — O primeiro quarto da história é contado sem que Ahab apareça.
  • Seção 2 — Ahab, Parte Um — 48 páginas (12%) — Esta é uma seção intensa na qual Ismael (e o leitor) vê Ahab pela primeira vez, e é fortemente focada nos pensamentos e ações do capitão.
  • Seção 3 — A Busca, Parte Um — 95 páginas (23%) — Ahab é uma presença forte aqui, mas, em mais da metade das páginas (53), ele não é mencionado. Em vez disso, muito espaço é ocupado pelo que eu chamaria de ensaios de Melville sobre vários aspectos da caça às baleias, como a representação de baleias em pinturas e desenhos.
  • Seção 4 — A Busca, Parte Dois — 92 páginas (22%) — Aqui, Ahab recuou ainda mais nas sombras, aparecendo em apenas 16 das páginas. O restante desta longa seção é retomado com outros ensaios de Melville em capítulos como “Ambergris” e “The Cassock”.
  • Seção 5 — Ahab, Parte Dois — 52 páginas (13%) — De repente, na página 339, Ahab está de volta e, no resto do romance, ele está na frente e no centro, dominando a cena, ditando a ação até seu confronto final com a baleia.
  • Seção 6 — Ahab e Moby Dick — 20 páginas (5%) — A Baleia Branca faz sua primeira aparição, enfrentando Ahab e levando o romance a uma conclusão estrondosa.
O livro também pode se dividir em uma outra categoria de estruturas, que são, em sua maioria, recursos utilizados pelo autor durante a escrita de sua obra. Nota-se então o emprego de diversos tipos de escrita, usando recursos poéticos, monólogos, ensaios, citações bíblicas, shakesperianas, dentre outros.

Enfim, saí de minha leitura de Moby Dick com o desejo de refazê-las diversas vezes, até que eu consiga entender em sua grandiosamente e plenitude. Um livro arrebatador.

-

O AUTOR

Gêneros Romance, Poesia | Nascimento: 01/08/1819 - 28/09/1891 | Local: Estados Unidos - Nova Iorque

Herman Melville foi o terceiro filho de Allan e Maria Gansevoort Melvill (que posteriormente acrescentaria a letra "e" ao sobrenome). Quando criança, Melville teve escarlatina, o que afetou permanentemente sua visão. Se mudou com a família, em 1830, para Albany, onde freqüentou a Albany Academy. Após a morte de seu pai, em 1832, teve de ajudar a manter a família (então com oito crianças). Assim, trabalhou como bancário, professor e fazendeiro. Em 1839, embarcou como ajudante no navio mercante St. Lawrence, com destino a Liverpool e, em 1841, no baleeiro Acushnet, a bordo do qual percorreu quase todo o Pacífico. Quando a embarcação chegou às ilhas Marquesas, na Polinésia francesa, Melville decidiu abandoná-la para viver junto aos nativos por algumas semanas. Suas aventuras como "visitante-cativo" da tribo de canibais Typee foram registradas no livro Typee, de 1846. Ainda em 1841, Melville embarcou no baleeiro australiano Lucy Ann e acabou se unindo a um motim organizado pelos tripulantes insatisfeitos pela falta de pagamento. O resultado foi que Melville foi preso em uma cadeia no Tahiti, da qual fugiu pouco depois. Todos esses acontecimentos, apesar de ocuparem menos de um mês, são descritos em seu segundo livro Omoo, de 1847. No final de 1841, embarcou como arpoador no Charles & Henry, em sua última viagem em baleeiros, e retornou a Boston como marinheiro, em 1844, a bordo da fragata United States. Seus dois primeiros livros lhe renderam muito sucesso de crítica e público e certo conforto financeiro.
Em 4 de agosto de 1847, Melville se casou com Elizabeth Shaw e, em 1849, lançou seu terceiro livro, Mardi. Da mesma forma que os outros livros, Mardi se inicia como uma aventura polinésia, no entanto, se desenvolve de modo mais introspectivo, o que desagradou o público já cativo. Dessa forma, Melville retomou à antiga fórmula literária, lançando duas novas aventuras: Redburn (1849) e White-Jacket (1850). Em seus novos livros já era possível reconhecer o tom visivelmente mais melancólico que adotaria a seguir. Em 1850, Melville e Elizabeth se mudaram para Arrowhead, uma fazenda em Pittsfield, Massachusetts (atualmente um museu), onde Melville conheceu Nathaniel Hawthorne, a quem dedicou Moby Dick, publicado em Londres, em 1851. O fracasso de vendas de Moby Dick e de Pierre, de 1852, fez com que seu editor recusasse seu manuscrito, hoje perdido, The Isle of the Cross.
Herman Melville morreu em 28 de setembro de 1891, aos 72 anos, em Nova York, em total obscuridade. O obituário do jornal The New York Times registrava o nome de "Henry Melville". Depois de trinta anos guardado numa lata, Billy Budd, romance inédito na época da morte de Melville foi publicado em 1924 e posteriormente adaptado para ópera, por Benjamin Britten, e para o teatro e o cinema, por Peter Ustinov.

Resenha: O pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-exupéry



APRESENTAÇÃO
O Pequeno Príncipe é uma obra prima que conduz o leitor a uma viagem de descobertas pela essência humana. Este clássico atemporal de Antoine de Saint-Exupéry narra a história sobre o encontro de um aviador e um menino com “cabelos da cor do ouro”. À medida que o principezinho conta ao aviador sobre sua rotina no asteroide B 612, sua rosa única, o perigo dos baobás, sua raposa e os moradores de outros planetas, um novo olhar sobre a vida e o mundo é revelado.

RESENHA


“O Pequeno Príncipe” é uma obra literária do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, publicada pela primeira vez em 1943, nos Estados Unidos. A história é contada a partir da perspectiva de um piloto que, após um acidente com seu avião no deserto do Saara, encontra um jovem príncipe de outro planeta. O livro é marcado por seu alto teor filosófico e poético, mesmo sendo considerado a princípio uma literatura para crianças.

A importância de “O Pequeno Príncipe” reside em sua representação vívida e comovente da amizade, do amor e da busca pelo essencial na vida. A obra é considerada um marco na literatura mundial, sendo o terceiro livro mais traduzido do mundo, contabilizando aproximadamente mais de 160 idiomas, e um dos mais vendidos globalmente.

Em termos de relevância cultural, “O Pequeno Príncipe” transcende fronteiras e gerações. A obra é reconhecida por sua representação autêntica da inocência infantil e da sabedoria inerente às crianças. Além disso, o livro tem sido adaptado para várias formas de arte, incluindo cinema e teatro, ampliando ainda mais seu alcance e impacto cultural.

A recepção crítica de “O Pequeno Príncipe” foi bastante positiva. A obra foi elogiada por sua narrativa envolvente, seus personagens cativantes e sua representação realista e emocional da amizade e do amor. A crítica literária destacou a habilidade de Saint-Exupéry em retratar a realidade da vida de forma tocante e sensível.

“O Pequeno Príncipe” é repleto de citações memoráveis que nos fazem refletir sobre a vida, o amor e a natureza humana. Aqui estão algumas das mais famosas:

  1. “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” Esta frase destaca a importância da responsabilidade em nossos relacionamentos. Quando criamos laços com alguém, assumimos a responsabilidade de cuidar e nutrir esses laços.

  2. “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante.” Esta citação nos lembra que o valor das coisas muitas vezes reside no tempo e no esforço que dedicamos a elas.

  3. “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” Esta é talvez a citação mais famosa do livro, destacando a importância de olhar além das aparências e valorizar o que é verdadeiramente importante.

  4. “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.” Esta frase nos lembra que cada interação que temos deixa uma marca, por menor que seja.

  5. “É bem mais difícil julgar a si mesmo do que julgar os outros.” Esta citação nos convida a olhar para dentro de nós mesmos antes de julgar os outros.

  6. “As pessoas grandes adoram os números.” Esta frase critica a tendência dos adultos de se concentrarem em fatos e números, muitas vezes perdendo de vista o que realmente importa.

  7. “As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas.” Esta citação destaca a importância da colaboração e da compreensão mútua.

  8. “Devia tê-la julgado pelos atos, não pelas palavras.” Esta frase nos lembra que as ações falam mais alto que as palavras.

Cada uma dessas citações oferece uma lição valiosa sobre a vida e a natureza humana. Elas nos convidam a refletir sobre nossas próprias ações e atitudes, e a buscar uma compreensão mais profunda de nós mesmos e dos outros.

Em avaliação final, “O Pequeno Príncipe” é uma obra literária de grande valor e relevância. Sua narrativa poderosa e seus personagens memoráveis proporcionam uma visão profunda da vida e do amor. A obra é um testemunho da resiliência do espírito humano e um lembrete da importância da empatia e da compreensão em face do sofrimento humano. É, sem dúvida, uma leitura essencial para todos aqueles interessados na literatura mundial e na exploração dos temas universais da amizade, do amor e da busca pelo significado da vida.

Resenha: Modernidade e Holocausto, de Zygmunt Bauman

APRESENTAÇÃO

Vencedor do prêmio Amalfi, concedido ao melhor livro de sociologia publicado na Europa em 1989, Modernidade e Holocausto discute o que a sociologia pode nos ensinar sobre o Holocausto, concentrando-se mais particularmente, porém, nas lições que o Holocausto tem a oferecer à sociologia. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman ressalta como o significado do Holocausto pôde ser subestimado em nossa compreensão de modernidade: ora o Holocausto é reduzido a algo que aconteceu com os judeus, ora é visto como representando aspectos repulsivos da vida social que o progresso da modernidade irá gradualmente superar. Não há nada comparável a esse livro na literatura sociológica. Sutil, porém intenso e perturbador, causará grande impacto tanto naqueles que lidam diretamente com a disciplina da sociologia como nos interessados por um dos fenômenos mais terríveis de nosso tempo.

RESENHA

Em ‘Modernidade e Holocausto’, Bauman convida o leitor a adotar uma perspectiva mais crítica e, digamos, mais apurada sobre a visão propagada pela sociologia em relação ao Holocausto. Ele argumenta que a maneira como os sociólogos abordam este assunto subestima sua verdadeira importância. Eles apresentam o Holocausto como um evento da história judaica, confortavelmente atípico e inconsequente para a sociedade cristã europeia, um ponto culminante do antissemitismo, mas que pouco questiona a compreensão de uma tendência histórica que a modernidade teria do processo civilizador e muito menos revisa os tópicos ortodoxos da investigação sociológica. Ou, de outra forma, um episódio destacado de uma ampla categoria de conflitos sociais semelhantes, derivados de uma “predisposição natural”, inextinguível da espécie humana, ao preconceito e agressão. De ambas as formas, o Holocausto é apresentado como uma possibilidade “natural” com a qual devemos contar, e, acima de tudo, “explicar”, “compreender” ou “dar sentido” ao estudar a sociedade moderna.

Bauman nos convida a refletir mais profundamente sobre o assunto, buscando descobrir mais sobre o que o Holocausto tem a dizer sobre a sociologia do que o contrário. Ele nos faz perceber que o Holocausto foi mais um produto da modernidade e não um fracasso, como a corrente mais ortodoxa da sociologia nos faz acreditar: proclamando o Holocausto como uma derrota da modernidade em suprimir desejos estranhos da irracionalidade humana, ao invés de reconhecê-la como uma possibilidade. Ele sugere que separar civilização e crueldade selvagem, talvez não seja o mais correto, pois ambos coexistem na modernidade e um, talvez, não “sobreviva” sem o outro, pois tanto a criação quanto a destruição são aspectos inseparáveis da sociedade civilizada como conhecemos. Em sua proposta, o Holocausto é um importante e confiável teste das possibilidades ocultas da sociedade moderna.

Bauman destaca o quão necessário foi a compreensão do moderno modo burocrático de racionalização e sua busca cega por eficiência, instrumentos para o extermínio em massa, derivados de especificações bem desenvolvidas e firmemente arraigadas da divisão do trabalho. Ele explica que tudo só foi possível porque houve cooperação entre vários departamentos da burocracia estatal alemã, um cuidadoso planejamento, projeção da tecnologia e do equipamento técnico adequados, cálculo de orçamentos, e levantamento dos recursos necessários, ou seja, competência da rotina burocrática de escritório. A seu ver, a escolha do extermínio físico foi um esforço mais dedicado do Estado alemão em encontrar soluções racionais para sucessivos “problemas” que surgiam doravante as circunstâncias cambiantes.

No entanto, ele nos alerta que nunca antes, em nenhum massacre ou genocídio parecido a busca pela “Solução final” entrou em conflito com a execução do objetivo e a eficiência em executar. A honra do funcionalismo público estaria na capacidade obedecer, de forma conscienciosa, a ordem superior, como se aquilo expressasse sua própria vontade. A disciplina do servidor público substituiria a responsabilidade moral. Exterminar tudo que não esteja dentro da regra interna da organização lhe daria a mais elevada virtude moral.

Ou seja, o sucesso administrativo do Holocausto se deu devido à utilização - como bem coloca o autor - de “pílulas de entorpecimento moral” que a tecnologia e a burocracia modernas colocavam à disposição. Afinal, grande parte dos autores não despejou o gás nas câmaras e nem atirou nos judeus. O distanciamento físico e psíquico do agente da ação de suas consequências, ou melhor, da invisibilidade de seus resultados moralmente repugnantes e principalmente, tornar invisível a humanidade da própria vítima, impulsionaria e, em partes, explicaria os fatores sócio-psicológicos por trás da eficiência do método.

Finalmente, o autor sugere que uma lição crucial do Holocausto reside na necessidade de levar a sério a crítica e ampliar o debate crítico sobre o “processo civilizador”, incluindo sua tendência a deslegitimar as motivações éticas da ação social. Se reconhecemos em nossa sociedade a subordinação do uso da violência a cálculos racionais, então devemos reconhecer o Holocausto como resultados legítimos da tendência civilizadora e seu grande potencial.

Sobre o autor

Sobre o autor

ZYGMUNT BAUMAN (1925-2017) foi o grande pensador da modernidade. Perspicaz analista de temas contemporâneos, deixou vasta obra — com destaque para o best-seller Amor líquido. Professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, tem mais de quarenta livros publicados no Brasil, todos pela Zahar. Bauman nasceu na Polônia e morreu na Inglaterra, onde vivia desde a década de 1970.

Resenha: Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos, de Zygmunt Bauman

APRESENTAÇÃO

Zygmunt Bauman, um dos mais originais e perspicazes sociólogos da história, investiga de que forma nossas relações tornam-se cada vez mais "flexíveis", gerando níveis de insegurança sempre maiores.

A modernidade líquida, "um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível" em que vivemos, traz consigo uma misteriosa fragilidade dos laços humanos, um amor líquido. A prioridade a relacionamentos em redes, as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade - e frequentemente sem que isso envolva nenhum contato além do virtual -, faz com que não saibamos mais manter laços a longo prazo. Mais que uma mera e triste constatação, esse livro é um alerta: não apenas as relações amorosas e os vínculos familiares são afetados, mas também a nossa capacidade de tratar um estranho com humanidade é prejudicada.

Como exemplo, o autor examina a crise na atual política imigratória de diversos países da União Europeia e a forma como a sociedade tende a creditar seus medos, sempre crescentes, a estrangeiros e refugiados. Com sua usual percepção fina e apurada, Bauman busca esclarecer, registrar e apreender de que forma o homem sem vínculos - figura central dos tempos modernos - se conecta.

RESENHA

Na obra de Zygmunt Bauman, a liquidez é explorada através do prisma das relações humanas na era pós-moderna. A leitura revela que a pós-modernidade introduziu elementos de incerteza, dúvida, liberdade e fragilidade nessas relações, sejam elas amorosas ou sociais. Bauman estabelece desde o início o propósito de seu trabalho: elucidar, documentar e compreender a enigmática fragilidade dos laços humanos, o sentimento de insegurança que ela provoca e os desejos conflitantes de fortalecer e ao mesmo tempo afrouxar esses laços (BAUMAN, 2004, p. 8).

Bauman defende que vivemos em um mundo fluido, que rejeita tudo o que é sólido e duradouro. Em quatro capítulos, ele descreve o amor líquido do homem moderno, que anseia por companhia, mas resiste a comprometer sua liberdade em uma relação muito próxima. Ele observa a tentação de se apaixonar e a atração igualmente forte de escapar (BAUMAN, 2004, p.23).

A obra é dividida em quatro capítulos e retrata o cidadão da nossa sociedade moderna líquida como o homem sem vínculos - Der Mann ohne Verwandtschaften - o herói de sua obra.

O primeiro capítulo examina a facilidade com que o homem moderno se apaixona e se desapaixona. Bauman compara o amor à morte, sugerindo que as dificuldades encontradas no amor podem ser transpostas para a morte. A definição romântica de amor como “até que a morte nos separe” está obsoleta. Os padrões do amor foram rebaixados e a palavra amor agora se refere a qualquer tipo de experiência, não necessariamente aquelas que envolvem um relacionamento sólido.

No amor, a comunhão e a troca são importantes como meios para alcançar o objetivo final. O amor se transformou em um investimento, onde se investe tempo e dinheiro na expectativa de um retorno lucrativo. Com a perda de alguns valores e a individualização das pessoas, torna-se mais difícil alcançar a capacidade de amar.

O desejo é um impulso, e sua realização completa leva ao suicídio. A realização do desejo nutre o indivíduo ao mesmo tempo que o consome. O amor, apesar de ser um sentimento puro e cheio de boas intenções, caminha lado a lado com o poder, o que pode trazer medo para o relacionamento. Isso torna mais confortável ser temido do que ser amado.

O medo do fracasso no amor leva as pessoas a buscar alternativas para superar o fracasso, resultando em uma superficialidade que permite aos seres humanos superar e “apagar” um amor fracassado. A tendência é que as pessoas se tornem mais parecidas com máquinas, seres frios e mecânicos.

No segundo capítulo, Bauman reflete sobre o homo sexualis, afirmando que a cultura é fruto do encontro dos sexos. O sexo deve ser racional e livre de ilusões. O homo sexualis deu lugar a dois “solitários”, o homo economicus e o homo consumens. O primeiro é necessário para manter a economia em movimento, enquanto o segundo vê no consumo sua terapia e na busca pelas melhores ofertas a cura para sua solidão.

Bauman observa uma separação entre sexo e reprodução, com a reprodução se tornando objeto da medicina. Os filhos são planejados de acordo com as necessidades e desejos dos pais, e Bauman sugere que os filhos se tornaram um objeto de consumo emocional.

Ele também discute o consumismo, onde o importante não é acumular bens, mas usá-los e descartá-los para adquirir novos. Na sociedade atual, o consumismo se estende não apenas a bens, mas também às pessoas, indicando uma inversão de valores.

O sexo hoje em dia se tornou banalizado. O amor não é mais um componente essencial do ato, e a busca pelo prazer se tornou mais importante que o amor complementando o prazer. Como mencionado anteriormente, o amor não é mais o ponto central do relacionamento, mas sim o prazer, já que é comum descartar o indivíduo e seguir em frente.

Bauman destaca o celular como um acessório indispensável, pois permite que a pessoa esteja sempre conectada, facilitando o contato com outras pessoas sem a necessidade de proximidade física. Ele também menciona o namoro online, cujas vantagens incluem segurança e falta de compromisso, além da opção de escolher o “produto” mais agradável, reforçando a liquidez e a fragilidade de entrar em um relacionamento na pós-modernidade.

No terceiro capítulo, Bauman aborda a dificuldade de amar o próximo. Ele argumenta que o mandamento de “amar o próximo como a si mesmo” não pode ser considerado razoável, pois pressupõe o amor próprio como um dado indiscutível. “O amor próprio é uma questão de sobrevivência, e a sobrevivência não precisa de mandamentos” (BAUMAN, 2005, p.46).

Bauman discute como o mundo atual parece estar conspirando contra a confiança, condenada a uma vida de frustrações em nossa sociedade reflexiva, onde a confiança não é muito reforçada.

Junto com a reflexão, surge a moralidade. Emmanuel Levinas questiona “por que eu deveria ser ético?”, como se perguntasse o que se ganha com isso. Bauman responde que a moralidade é uma manifestação da humanidade estimulada, que não serve a nenhum propósito e não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, glória ou auto-engrandecimento. No entanto, na sociedade atual, as boas ações são motivadas pela busca do lucro que se obteria ao praticá-las.

As forças da globalização dissolvem o mundo pessoal e as pessoas tentam se apegar a si mesmas, o que resulta em uma busca por sentido e identidade. A mixofobia, descrita por Bauman como o medo do diferente, tem raízes banais. Richard Sennet indica que “o sentimento de nós, que expressa um desejo de semelhança, é uma maneira dos homens evitarem a necessidade de examinar uns aos outros mais profundamente”.

Uma “comunidade da mesmice”, como Bauman descreve, nos dá uma sensação de segurança. O desejo de permanecer em um ambiente homogêneo, na companhia de pessoas “iguais”, levou algumas cidades norte-americanas caracterizadas pela homogeneidade a desenvolverem um certo medo do que estava fora daquela realidade, perdendo a habilidade de conviver com a diferença e alimentando a mixofobia.

No último capítulo, Bauman aborda a xenofobia e a preocupação com a segurança na sociedade moderna. A imigração nos Estados Unidos é um dos principais pilares do país, mas o desprezo por esses imigrantes é um ataque a essa característica de sua identidade. Esses imigrantes são acusados da crise financeira presente no mundo moderno e são os principais criminosos e culpados pelos males do Estado-nação.

Bauman discute o “lixo humano” produzido pela humanidade, onde a ordem social e o progresso econômico são as principais causas dessa seleção, descarte e exclusão de pessoas que não se encaixam na nova ordem social. Ele destaca que o Estado moderno produziu “pessoas sem Estado”, o trabalhador explorado que pode ser facilmente substituído. A elite global contrasta com os refugiados que ocupam fisicamente um determinado espaço, mas não pertencem a ele.

Para concluir, Bauman afirma que o único consolo diante da realidade sombria da modernidade líquida é a constatação de que a história ainda não terminou e que o homem ainda pode fazer escolhas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bauman conseguiu capturar a complexa relação do homem moderno em todos os seus aspectos mais cruciais. O amor foi substituído pelo prazer. A trivialização do amor, dos relacionamentos, a sensação de segurança de estar conectado a alguém sem sofrer, transformaram o mundo moderno em um lugar onde a vida parece ter perdido seu sentido.

Esse isolamento e insegurança humana trazem consequências devastadoras, que podem levar ao fim do convívio humano, como a xenofobia e a mixofobia, que levam o ser humano a desejar estar sozinho, afastado de todos.

A conclusão que tiro da leitura desta obra é que a fragilidade presente nas relações humanas hoje em dia é algo que não deveria existir. Ao reduzir o amor ao prazer, perdemos os laços humanos. O autor conseguiu reunir nesta obra todos os pontos impactantes da modernidade e do avanço tecnológico em nossas relações.

Esse desapego do ser humano para com o outro traz impactos muito fortes na sociedade, como a insegurança de viver com as diferenças, a banalização do sexo e da reprodução visando apenas o lucro, o que me faz questionar para onde o ser humano está indo com tudo isso.

O contato com o outro já não é mais o mesmo, e isso pode ser observado em um bar, onde deveria ser um lugar para compartilhar momentos com o outro, as pessoas estão fixadas em seus celulares, sem sequer olhar para a pessoa que está ali, à sua frente. Isso levanta a questão: o avanço tecnológico, que por um lado é extremamente benéfico em vários aspectos, pode estar tornando a sociedade egoísta e colocando cada um dentro de uma bolha de isolamento? Tudo isso me fez pensar que o ser humano está caminhando para a solidão, o egoísmo tomou conta das pessoas e as está afastando cada vez mais.

Sobre o autor

Sobre o autor

ZYGMUNT BAUMAN (1925-2017) foi o grande pensador da modernidade. Perspicaz analista de temas contemporâneos, deixou vasta obra — com destaque para o best-seller Amor líquido. Professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, tem mais de quarenta livros publicados no Brasil, todos pela Zahar. Bauman nasceu na Polônia e morreu na Inglaterra, onde vivia desde a década de 1970.

© all rights reserved
made with by templateszoo