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[RESENHA #565] Niéde Guidon - uma arqueóloga no sertão, de Adriana Abujamra

 

APRESENTAÇÃO

Livro sobre a arqueóloga Niéde Guidon, guardiã de um dos maiores sítios de pinturas rupestres do mundo, o Parque Nacional Serra da Capivara, patrimônio cultural da humanidade.

Neste perfil da arqueóloga Niéde Guidon, a jornalista Adriana Abujamra revela a bravura e a doçura daquela que dedicou sua vida a proteger o maior tesouro arqueológico brasileiro, a despeito das opressões estruturais e da falta de apoio do Estado.

Desde a década de 1970, Niéde reúne recursos para proteger o Parque Nacional Serra da Capivara – declarado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Ainda sem o devido reconhecimento no Brasil, Niéde é célebre internacionalmente por empreender uma revolução no sertão do Piauí, levando educação, arte e melhores condições de vida para toda a região. Nestas páginas, leitores e leitoras poderão se aprofundar não apenas na vida dessa mulher à frente do seu tempo, mas também no cotidiano de amigos e sertanejos que convivem com Niéde e são responsáveis por seu legado.

Niéde Guidon: uma arqueóloga no sertão, publicado no ano em que Niéde comemora seu 90º aniversário, inaugura a Coleção Brasileiras. Como Joselia Aguiar, organizadora da coleção, afirma, “A aventura de Niéde é a de quem faz ciência no Brasil, num campo onde o investimento é ínfimo, quando não inexistente, e numa região nordestina vista como extremamente remota por aqueles que estão no centro de poder.”



RESENHA


A arqueóloga Niéde Guidon passou mais de meio século estudando vestígios dos primeiros povos das Américas. A ele se atribui a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, uma área de proteção, pesquisa e turismo. Além do patrimônio cultural da humanidade.


Niéde Guidon, na década de 1970, iniciou a maior das batalhas dos campos arqueológicos conhecidos pela humanidade: a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. hoje, patrimônio da humanidade pela UNESCO. A luta não serviu apenas para alertar os moradores e as autoridades sobre todos os tesouros escondidos, mas também para impulsionar a vida das mulheres locais que viam em Niéde uma mulher guerreira, dotada de poderes e autoridades em um campo de atuação específico, o que tirou das mulheres a visão e ideia de que a imagem de resistência e poder cabiam unicamente aos homens, o que acabou fortificando a identidade feminina na busca por reconhecimento, poder e atuação.


O livro é uma homenagem da autora à arqueóloga, sua publicação marca os 90 anos de Niéde, que sempre se empenhou na busca pela proteção e preservação ambiental e histórica. A obra também constitui parte do projeto da editora Rosa dos Tempos, coleção brasileiras, destinado à publicar livros que enaltecessem grandes mulheres em seus mais variados campos de atuação.


A obra divide-se nos capítulos:

1. Niéde no inverno

2. Pedras no caminho

3. Primeiras expedições

4. Parque de papel

5. Pedra rachada

6. Deus e o diabo na terra do sol

7. Um lugar no mapa

8. Davignon n Sertão

9. Ninguém mexe com elas

10. Lusco-fusco


Até a presença de Niéde, todo 'rabisco' na paredes era apenas isso: rabiscos. Não se tinha uma noção clara da importância dos relatos impostos na parede, nem dos vestígios encontrados em escavações, todo aparato era banalizado, até que Guidon conseguiu convencer o governo francês e brasileiro de que a área merecia ser explorada e estudada com maior afinco, tornando o ponto inicial de partida dos trabalhos que revolucionariam a escavação e a arqueologia mundial. A criação do parque Nacional foi crucial para o desenvolvimento daquela região, uma vez que começara a gerar capital com visitas e excursões, tendo sido o primeiro parque nacional de preservação histórica à receber milhares de visitantes, se comparado à de outros países.


As pinturas rupestres e os escritos encontrados forneciam subsídios necessários para o entendimento da vida humana nos períodos pré-históricos, estabelecidos em grau de importância através da iniciativa de Guidon em explorar uma região assolada pelo sol e pela vastidão de matas, como em suas palavras: era como ler histórias em quadrinhos nas paredes. A conversa inicial foi de que talvez, homens estivessem interessados em procurar ouro naquela região, uma vez que os recursos de comunicação naquela região eram inexistentes, deixando apenas conversas cotidianas aflorarem entre os habitantes no famoso 'disse me disse', o que abria porta para diversas interpretações. A moradia era mantida através da caça e comércio em feiras por parte dos maridos, enquanto as mulheres, dificilmente exerciam tarefas além das domésticas, sua participação pública era mínima. 


Para que houvesse uma preservação das escavações encontradas, Niéde cuidou para que o seu acesso fosse facilitado, assim, todos pudessem ver e interpretar as pinturas com maior afinco e interesse através de escadas, o que acabaria com a necessidade de intervir no meio natural para deslocamento das pedras e dos achados para museus e exposições fora do parque, o que preservou toda integridade histórica local. As visitações começaram em 1992, mesmo após a intervenção e estudos da arqueóloga, que se iniciaram em 1979.


A tese era de que há pelo menos 32.000 anos as terras eram habitadas pelos primeiros homo sapiens, o que trouxe a tona uma série de debates, uma vez que a ideia propriamente aceita naquele período era de apenas 13.000 anos, o que trouxe luz às descobertas e a valoração de todo tesouro encontrado nas escavações. Niéde criou a Fundação Museu do homem Americano (Fumdham) para preservação dos patrimônios encontrados.


Com sua atuação, Guidon estabeleceu naquela região longe dos grandes centros econômicos, uma potência financeira que abriu as portas e o leque de oportunidades para os moradores locais, abrindo uma universidade e um aeroporto, hoje, considerado um dos mais bonitos do nordeste brasileiro.


Em suma, Guidon é a grande precursora do desenvolvimento da cultura por trás das escavações, seus mais de cinquenta anos dedicados à preservação do parque nacional lhe acendeu uma fama mundial por seu trabalho e dedicação. Um livro lindo para quem ama biografias, bons livros e histórias fascinantes de grandes mulheres. 




A AUTORA

Niède Guidon é uma arqueóloga franco-brasileira conhecida mundialmente pela defesa de sua hipótese sobre o processo de povoamento das Américas e por sua luta pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí

[RESENHA #565] Amazonas, abolicionistas e ativistas, de Mikki Kendall e A. D'amico

APRESENTAÇÃO

Esta graphic novel, da escritora, ativista e crítica cultural Mikki Kendall, é uma obra divertida e fascinante que apresenta as principais figuras e acontecimentos que promoveram os direitos das mulheres, desde a Antiguidade até a Era Moderna. Além disso, este interessante livro apresenta as proezas de mulheres notáveis ao longo da história de rainhas e combatentes da liberdade a guerreiras e espiãs , além de citar importantes passagens sobre os movimentos progressistas liderados por mulheres que moldaram a história, entre eles, abolição, sufrágio feminino, trabalho, direitos civis, libertação do grupo LGBTQ+, direitos reprodutivos e muito mais.

RESENHA

A obra amazonas, abolicionistas e ativistas é uma graphic novel (HQ) elaborada por Mikki Kendall com colaboração das ilustrações de A. D'amico, ambas ativistas políticas do universo e das causas feministas e representação midiática. A obra é um fomento necessário à literatura em prol da valorização do poder da mulher na conquista do direito e do feminismo como um movimento pela busca de direito em todas as esferas públicas e privadas, bem como suas iniciativas.

A abertura do livro é um resumo da necessidade real da informação e da publicação de obras como esta: informativas e necessárias. Um grupo de mulheres discute sobre os direitos obtidos pelas mulheres até aquele momento, porém, há uma divergência de ideias que ocorre por meio da ausência de informação. É comum, como na abertura desta obra, encontrar mulheres que não entendem a história das conquistas ou da necessidade de luta por direitos, algumas pessoas que acreditam que naqueles tempos existiam direitos e que a luta era uma causa perdida, outras, banalizam as conquistas se respaldando no fato de que existem muitos outros direitos à serem conquistados, então, porquê não exigi-los em uma única luta? Bom, um degrau de cada vez. A necessidade de se informar é uma mão de fácil e livre acesso nos dias de hoje, e obras como esta, nos fazem abrir nosso consciente para informação e para obtenção de novas respostas, fazendo-nos entender com clareza a real necessidade de ir à luta. É fácil dizer que foi fácil ou em vão quando não se participou de nenhum ato, e mais fácil ainda dizer que foram poucas as conquistas quando mesmo não fazendo nada, todas se beneficiam dos resultados. Conhecimento é a chave para que não se banalizem as lutas e conquistas obtidas.

A luta das mulheres pelos direitos é bastante extensa e histórica, e sua linha cronológica é fomento necessário de acesso à informação, tornando-se indispensável para a compressão da participação da mulher nas esferas públicas e privadas. A obra analisa as principais conquistas das mulheres por meio de uma série de quadrinhos lúdicos e assertivos, abordando tópicos como: os direitos na antiguidade, o poder das rainhas e da representação feminina, escravidão e liberdade, direito ao voto, marcha da igualdade, revolução sexual e feminismo em prática, ou seja, uma obra extensa e necessária.

A lista de direitos obtidos pelas mulheres é extensa, porém, a luta não pode parar, alguns dados históricos à serem mencionados:

1827 – Direito à educação básica
1879 – Direito à educação superior
1910 – Direito à representação política
1932 – Direito ao voto
1962 – Direito ao trabalho
1974 – Direito ao crédito
1977 – Direito ao divórcio
1979 – Direito de jogar futebol
1988 – Direito à igualdade
2002 – Direito à sexualidade
2006 – Direito de defesa
2015 – Direito de reparação



A primeira parte da obra esclarece-nos e nos traz a luz dos primeiros atos revolucionários das mulheres, intitulado direito das mulheres na antiguidade, afinal, faz-se necessário compreender a história pela raiz, para uma compreensão ainda mais genuína e completa acerca de todas as outras lutas que se sucederam. O trabalho da mulher durante os períodos fundamentais são explicados com clareza, um aspecto bastante marcante na obra é a intervenção de uma mulher que se manifesta inferindo que a participação das mulheres era doméstica, conferindo ao homem a tarefa árdua de caçar e prover, porém, as mulheres registravam em pinturas nas cavernas e nas mais variadas áreas o cotidiano, entre outras palavras, o trabalho delas era mais importante que o deles e tornou-se responsável pelas informações que temos atualmente acerca da participação feminina nas sociedades mais rudimentares da sociedade.

A obra é literalmente um ensino de história profunda, aqui, há uma personagem central responsável por explicar toda história dos direitos e das lutas das mulheres para uma série de alunas, todas com suas opiniões e conceitos formados por preconceitos e ausência de informação, porém, a cada ensinamento transmitido, nota-se que todo conhecimento previamente acreditado ser certo, cai por terra, dando entrada ao fomento educacional histórico, moldando e transformando as visões de cada mulher em particular, e este recurso é incrível, pois torna a tarefa de transmitir e ensinar valores e histórias por meio de uma ação pedagógica lúdica de amostra de história por meio de recursos educacionais, tornando a tarefa mais participativa com todos atentos e participando com suas dúvidas e comentários, o que também pode ser adotado por um professor ou até mesmo pelo leitor durante o procedimento de leitura.

Desde os tempos primórdios os homens foram dotados de participações públicas e direitos ilimitados, enquanto a mulher, ocupava um protagonismo secundário, tendo apenas como participação pública aquilo que lhe era inferido pela figura masculina regente, ou seja, o marido ou o pai. Essa limitação de participação é histórica e datada de períodos pré-históricos, e essa análise também é bastante explorada nesta Hq, mostrando-nos como se desenvolveram as sociedades e a vida da mulher no cotidiano. Algumas, obviamente, detinham algum direito, mas todas em áreas específicas da sociedade, não sendo estendidas à todas as outras mulheres, o que ocasionava em uma participação social menor e, consequentemente, menos relevante, uma vez que os direitos estavam nas mãos e no controle dos homens, entre outras palavras, desde a antiguidade o regime que imperava era o patriarcado. 

A obra também enaltece às figuras de mulheres importantes à frente das conquistas das mulheres dentro do feminismo de cada época, mulheres que correram para que todas as outras pudessem caminhar, mulheres que acreditaram que existiam muitos outros direitos e deveres aos quais as mulheres deveriam ter acesso na sociedade, mulheres que impuseram-se diante da opressão do patriarcado estabelecendo uma conexão com todos os outros períodos, para que assim, se tornasse possível e de acesso facilitado a possibilidade de recorrer em seus direitos e exigir participação pública. 

Em síntese, esta obra é um trabalho de desenvolvimento informativo e cultural notável, sua contribuição é o ponto de partida para futuras análises na luta das mulheres, afinal, ela não pode parar. Indicado para leitores apaixonados por hq, história, filosofia e todos os outros fomentos educacionais.

[RESENHA #564] As origens do mal, de Georges Minois

APRESENTAÇÃO

Quem é o responsável pelas infelicidades que esmagam a humanidade? Depois de muitas hesitações, os primeiros Pais da Igreja buscaram a explicação no velho mito bíblico de Adão e Eva. Os bispos do concílio de Trento fizeram dele um dogma, afirmando que a falta do primeiro homem corrompeu a natureza humana. Desde então, a doutrina do pecado original moldou a moral cristã e, mais amplamente, a imagem do homem. Construída com cuidado e erudição, esta obra é instrutiva e instigante, feita para pessoas curiosas, crentes ou não, sobretudo numa época em que a distinção entre o bem e o mal ― e sobretudo sua origem ― se articula com dificuldade.

RESENHA

George Minois é um professor francês de história com trabalhos com ênfase em tópicos religiosos, seus livros mais conhecidos ao redor do globo são: história do riso e do escárnio, as origens do mal, história do ateísmo e história do futuro. Nesta obra, o autor desdobra-se sobre as perguntas mais difundidas dentre os tempos: de onde vem o mal e o sofrimento existente? Quem é o responsável pelas infelicidades que esmagam a humanidade? dentre outras questões estudadas pelas mais variadas áreas.

Recorrendo a um amplo universo de referências de filosofia à textos bíblicos, do darwinismo à bioética, Minois analisa aqui as marcas do pecado original sobre a moral cristã e a forma como, mesmo nos dias de hoje, esse tema continua a suscitar debate. Livre arbítrio, pretensão de independência e autossuperação: embora talvez não seja evidente a princípio, não são tão distantes dos motivos que justificariam o cometimento do pecado original das ambições dos homens da ciência.

A obra é uma proposta desafiadora e bastante respaldada, o autor busca por meio de diversos campos explicitar de forma clara e concisa por meio de uma linguagem clara e acessível a existência do mal e do sofrimento humano. Se Deus é bom o tempo todo e tudo o que faz é perfeito, porque temos de pagar pelo pecado primário? A história é conhecida, o desfecho também, mas será que os desdobramentos advindos da criação divina também? Um estudo profundo que busca apresentar uma base sólida de argumentação capaz que trazer a tona à luz do conhecimento por meio do estudo. 

Os primeiros pais da igreja buscaram explicar o mal e o sofrimento humano por meio da análise do texto de Adão e Eva, na bíblia cristã, o comportamento pecaminoso no Éden, moldou toda humanidade, bem como sua noção de certo, errado e do poder de escolhas do homem. Segundo estes estudiosos primários, a culpa decorreu de um único homem por meio do pecado original de Adão, moldando a noção de ética cristã e moral humana.  A partir deste ponto, introduziu-se toda proibição e dogmas impostos pela religião, como a mulher como figura submissa ao homem e os pecados da sexualidade e os agouros advindos destes comportamentos, o que ocasionou em uma centena de intermináveis estudos que alcançaram o Iluminismo e ascenderam aos dias atuais.

A falha inicial de Adão provocou um efeito cascata moral, os homens sentem-se culpados pelo pecado original, mas livram-se da culpa ressentindo-se do futuro e dos efeitos da escolha de outro, o que ascende nos estudos das áreas religiosas e educacionais a alternativa de explicar os efeitos no cotidiano e no âmbito social e moral da sociedade. Mas a ideia de culpa do pecado transferiu-se à figura do diabo, tirando sobre o homem o peso da responsabilidade de sua própria escolha, não sendo mais responsável pelo ocorrido de outrora, mas responsável pelos efeitos futuros das escolhas, o que é, sempre, complicado, levando em consideração que todos os homens esbarram diariamente nos limites impostos pela religião, sobretudo, se analisarmos fortemente os escritos bíblicos advindos do primeiro testamento da bíblia cristã.

O livro conta com a seguinte divisão de tópicos: 

1. De quem é a falta?

2. O processo de Adão

3. Teologia e sociedade

4. A  queda: pomo de discórdia teológico

5. O pecado original

6. Adão sob o fogo das luzes

7. Adão, Darwin e Hegel

8. Os avatares do pecado original

9. Do Adão bíblico ao Adão eugênico 

Cada tópico possui uma particularidade única, o autor unifica arestas de diferentes áreas para explicitação do conteúdo prático explicativo, expondo com clareza e citações de obras ao longo do enredo conteúdos que solidificam os argumentos em linguagem clara e assertiva. O tópico um aborda a falta, a falta de noção do pecado, da ação e de vigilia celeste, o segundo, os processos advindos do processo acusatório de um responsável pelo pecado primário, o terceiro os reflexos na idade média, filosofia e nas demais áreas do conhecimento, o quarto o concílio de trento e a revolta humanista, o quinto à análise do pecado original, a sexta, o estudo do pecado transporido, a sétima, uma análise sob a luz de Darwin e Hegel, dentre os demais tópicos.

Até o final do quarto século, os cristãos tinham visões conflitantes sobre o pecado de Adão e Eva e suas consequências (o crime é frequentemente descrito como obra de Deus). Agostinho de Hipona, um bispo africano apaixonado por demônios, é o criador da expressão "pecado original" e o próprio criador da demonologia literal. Ele organizou concílios em Cartago, que levaram o papa à condenação do pecado original em 418. Desde então, o assunto foi resolvido dentro da Igreja. Simplificando, os teólogos gastarão muita energia para entender, explicar e justificar uma ideia que ao longo dos séculos será muito misteriosa e desconcertante: Deus, o Todo-Poderoso.

No século 16, a interpretação da história da queda tornou-se a "maçã" da controvérsia entre católicos e protestantes. Então a Igreja Romana procurou de alguma forma acabar com o julgamento de Adão. O Concílio de Trento também considerou o pecado original um dogma. Portanto, qualquer católico que rejeita o caráter histórico da história bíblica é um herege e amaldiçoado. Outro ensinamento do mesmo conselho: todas as pessoas - exceto a mãe de Cristo, a "Imaculada Reencarnação" - herdam o pecado original e devem ser batizadas para removê-lo. Crianças não batizadas não podem ir para o céu. Sua alma vai para um lugar imaginado por Tomás de Aquino no século XIII: o limbo.

G. Minois mostra que, ao longo da história do cristianismo, os escritores pensaram em interpretar a história bíblica de forma alegórica: por exemplo, Pelágio no século IV ou Lamenais no século XIX. Essas ideias foram sistematicamente rejeitadas pelas autoridades católicas e pelos fundamentalistas protestantes. A promulgação desses pontos de vista resultou na expulsão de seus autores da Igreja e de outras disciplinas (começando com Pelágio, que foi expulso de Roma e despojado).


A obra de Minois percorre toda a história da cultura cristã. De fato, a doutrina do pecado original moldou a imagem humana do Ocidente. Ele cometeu o pecado da luxúria (em muitas teologias, Adão e Eva pecaram contra a carne), mas também desobedeceu até mesmo ao conhecimento científico. Justifica a ordem social (o ser humano é fundamentalmente mau, a violência é necessária para manter a ordem) e o desrespeito às mulheres - Paulo de Tarso (São Paulo) diz "não" Não foi Adão que foi tentado, mas a mulher que, sendo tentada, tornou-se culpado de transgressão". O pecado original não ocupava apenas os teólogos, mas muitos filósofos também apontavam: Pascal, Leibniz, Kant, Hegel... No século XVIII, tornou-se o objetivo dos racionalistas. No século 19, Adão seria "morto" pelo darwinismo. Os cristãos que aceitam a evolução, a preservação histórica do Adão, terão que se engajar em uma síntese mental que levará ao ensinamento atual da Igreja: o corpo é "tirado de uma matéria viva e pré-existente", mas cada "alma" foi criada por Deus.

Em síntese, devo declarar que esta é uma obra esclarecedora em diversos pontos e sua narrativa é lúdica e clara ao que se propõe: um estudo amplo da origem do mal por meio de análises nos mais variados campos. Uma obra dedicada à amantes de história, teólogos e filósofos.

[RESENHA #563] Dezessete anos, de Colombe Schneck


APRESENTAÇÃO

Em Dezessete anos, Colombe Schneck estabelece um diálogo direto com a escritora Annie Ernaux, Prêmio Nobel de Literatura. A ideia do livro surge como resposta ao que Schneck descreve como uma espécie de convocação de sua antecessora: “Senti como se ela se dirigisse a mim. Eu precisava contar o ocorrido naquela primavera de 1984”. Era preciso falar sobre a experiência do aborto, um dos atos mais frequentes e, também, mais secretos na história das mulheres. Assim, tal obra, agora no Brasil, traz uma importante contribuição a respeito desse tema tabu, sobre o qual tão pouco se falou na literatura e que envolve interditos ligados ao corpo da mulher.

RESENHA


O livro de Columbe Schneck é um relato difícil de ler de uma mulher no auge de seus dezessete anos que descobre o prazer e a perda do controle das ações. Ela era jovem, sentia-se, de alguma forma, presa, ela precisava descobrir-se livre de amarras e obrigações e sentimentos ociosos, queria desvendar o poder do sexo, da liberdade sexual e do poder de controlar o que poderia ou não experienciar. Seus pais, médicos, estavam apostos, presentes em alguns momentos, mas não em todos. Ela tinha dezessete anos e toda inocência de uma criança ou de alguém em tal período, ela sabia que era livre e feliz, mas ela queria uma confirmação.

A narrativa segue em forma de diário, ainda que não tendo datas ou marcações, a escrita mostra-se descontinuada, entre um trecho e outro, a autora aborda os sentimentos naquele momento, o que estava sentindo ou pensando. A procura pela liberdade sexual lhe custou tudo o que sempre sentiu: conforto e segurança. Após começar a sair com seu colega de sala, Vincente, ela decide ir mais a fundo, encontrá-lo sozinha, dormir em sua casa. Ele, de igual idade, possui toda liberdade que os pais dão a um garoto, o que é incomum para as meninas, talvez isso explique a busca pelo sentimento de liberdade da autora naquela ocasião. Ali, naquela cama de solteiro, de um garoto de dezessete anos, ela cria uma narrativa para que tudo flua bem, na cabeça dele, era era experiente, e apesar de não ser, foi o caminho adotado em sua narrativa para gerar confiança mútua, afinal, não se sabia se o grau de experiência de ambos era o mesmo.

O corpo era quente, os toques suaves e os movimentos sinfônicos, estava tudo ali...perfeito, a liberdade de poder escolher e vivenciar gritava por seus corpos. Aconteceu. FIM, era o fim, pelo menos naquele momento. A partir da escolha e do prazer, ela encontra-se desolada após um período, ela sabia que estava grávida, e todo abandono que ela jamais sentira, lhe toma conta do corpo. Ela não pode contar com os pais, o que eles pensariam sobre ela? O que ela estava sentindo naquele momento? era comum? Era um período difícil, e ela buscava algum tipo de refúgio, foi ai, que ela encontrou na literatura um amparo, alguém que havia sentido e passado por tudo o que ela passou: Annie Ernaux, em sua obra o acontecimento, onde ela descreve sua própria experiência com o aborto ilegal na França naquele período, o aborto, não é um tema lindo de ser, não é floreado e muito menos mágico, é o oposto disso. Ninguém em nenhum lugar, ainda que legal em alguns países, descreve sobre o processo e as dores sofridas e decorrentes do aborto, mas Ernaux descreveu...sua obra, na época, não teve grande repercussão, mas falou diretamente com ela... Seus sentimentos, tristezas e dores eram assim: palpáveis, era pele com pele e o desespero era o mesmo.

Era como se, nas palavras da autora, tivesse sido expulsa de seu mundo (p.28).  A culpa pesa ainda mais quando ela passa a refletir sobre o período histórico ao qual ela se encontra, afinal, tudo o que era pior já havia passado: guerras, luta por direitos, problemas civis, dentre outros. Então, porquê se sentir daquela forma naquele período? O que doía mais naquele momento?

Entro num mundo distinto, um mundo coercitivo no qual não se trata mais de fazer dever de casa, ver filmes, convidar ou não certas amigas. Trata-se de vida e de morte, da minha vida, do meu futuro, da minha liberdade, daquilo o que acontece no meu corpo e que pode ser a vida ou nada, e pelo qual sou responsável (p.28)

O livro é uma dor autodeclarada. A autora narra períodos difíceis, e podemos notar que, não cabe à nós julgar. Ela estava sozinha por diversos motivos, e os que mais doíam eram aqueles que a faziam ver que a culpa era toda sua, a escolha, sua liberdade e as consequências. Mas ela prossegue. Sua vida é o rastro do que sobrou naquele momento, todo processo, dor e acompanhamento médico são motivos de sobra para serem perseguidas, afinal, o que devemos sentir ao buscar ajuda e ouvir de um médico que interromper uma gravidez era uma atitude séria, impensada e que devesse ser pensada muito antes de concretizada? Alguém em busca de ajuda não deve ser julgada, pelo menos não com todo emocional fragilizado.

A obra de Colombe Schneck é isso: dor e crescimento. Uma obra escrita para reflexão interna e externa dos leitores, um exercício de compaixão. Não cabe à nós olhar com indiferença, apenas entender.

Dolorido do começo ao fim, um caminho repleto de dores e tristezas e insegurança. Uma obra de extrema importância e relevância. Dolorido como tem que ser.

A AUTORA

✨ Colombe Schneck, nascida em 9 de junho de 1966 na França, é escritora, jornalista e diretora de documentários. Autora de onze livros, de ficção e não ficção, recebeu prêmios da Académie Française, da Madame Figaro e da Society of French Writers, além de ter sido finalista dos prêmios Renaudot, Femina e Interallié. Seu trabalho foi traduzido para oito idiomas ao redor do mundo.

Bolsista da Villa Medicis de Roma e do Institut Français, além de uma bolsa Stendhal que permite que escritores franceses façam pesquisas e escrevam no exterior, ela também passou quinze anos como locutora do Canal Plus, France TV e Radio France.

Com uma obra de forte teor autobiográfico, plena de narrativas de filiação, relatos de infância, autoficções e romances autobiográficos, seu livro “Dezessete anos” foi lançado na França em 2015 e é o primeiro livro de Schneck a ser publicado no Brasil.

Trata-se da curta, densa e sóbria história de seu aborto, aos dezessete anos, a um mês de se formar no ensino médio. Um acontecimento nem banal nem dramático: nunca esquecido.

✍🏼 “E eis que aqui estou, aos dezessete anos, grávida, como tantas outras moças, como Annie Ernaux, filha de um pequeno comerciante de Yvetot, em 1964, como Marie-Claire, a adolescente de Bobigny, julgada em 1972. Fui atingida pela minha condição feminina, não sou mais aquela que se esquiva escrevendo a biografia de Napoleão, lendo cinco vezes seguidas a autobiografia de Lauren Bacall durante o verão dos meus onze anos.”

📚 O livro foi traduzido por Isadora Pontes e Laura Campos.

[LISTA] Mês do Orgulho: indicações de livros com protagonismo LGBTQIAP+



 Do infanto-juvenil a fantasia, essas leituras levantam a bandeira da representatividade

Junho é conhecido como o Mês do Orgulho LGBTQIAP+. Este período de celebração também é marcado pela conscientização e luta pelos direitos e igualdade.

Durante o mês, diversos lugares do mundo realizam uma série de eventos, manifestações e atividades que buscam promover a visibilidade.

Celebre o respeito e a inclusão com protagonistas que erguem a bandeira da comunidade e trazem a representatividade para a literatura. Confira as indicações e escolha sua obra preferida:

A Banda Sagrada de Tebas

Quem foram os deuses homossexuais? Neste livro, o jornalista, escritor e pesquisador Thiago Teodoro apresenta uma perspectiva LGBTQIAP+ para as divindades. Ele aborda nomes como Pã, Apolo, Dionisio e Zeus, mas também mergulha na mitologia brasileira ao falar de Anhangá, o protetor da floresta, e Acauã, a defensora das mulheres. Um dos principais objetivos do autor é destacar como a homossexualidade era considerada sagrada e necessária em diversos períodos da antiguidade.

(Autor: Thiago Teodoro | Onde encontrar: Amazon)

Liberalismo Minoritário - Vida Travesti na Favela

A vida na favela é repleta de desafios, mas, para as pessoas LGBTQIAP+, essa rotina pode ser ainda mais árdua. Porém, mesmo neste cenário de poderes paralelos e liberdades cerceadas, as vivências queer florescem e ganham cada vez mais força. Esta é a conclusão do professor e pós-Doutor pela Universidade de Harvard, Moisés Lino e Silva, após morar na Rocinha e acompanhar de perto a vida de figuras como a travesti Natasha Kellem.

(Autor: Moisés Lino e Silva | Onde encontrar: Amazon)

Amores, Marias, Marés

O lançamento Amores, Marias, Marés tem como pano de fundo São Luís, a capital do Maranhão, no ano de 1963. O leitor acompanha a relação amorosa entre duas mulheres que, naquela época, não fazia parte do imaginário coletivo. No enredo, uma professora recém-casada com um aristocrata se apaixona por uma jovem afrodescendente interessada em estudar a participação dos negros na construção da sua cidade.

(Autor: Chico Fonseca | Onde encontrar: Amazon)

Que vença o melhor

Capitão de torcida e presidente do grêmio estudantil, Jeremy não vai permitir que se assumir como um garoto trans arruíne o último ano escolar. Em vez de se esconder, decide concorrer ao título de Rei do Homecoming, o evento anual mais importante do colégio. O detalhe é que o ex-namorado dele, Lukas, estrela do futebol americano, é um dos principais candidatos a ganhar a coroa. Com bom humor e delicadeza, Z. R. Ellor aprofunda temas comuns entre os jovens, mas pouco abertamente falados na vida real: a dificuldade de lidar com o luto e o preconceito LGBTQIAP+ na sala de aula.

(Autor: Z. R. Ellor | Onde encontrar: Amazon)

Meu menino colorido

A pedagoga Zenilda Cardozo uniu os anos de experiência em sala de aula às vivências pessoais com um sobrinho vítima de homofobia para escrever o livro Meu menino colorido. Com foco no público pré-adolescente e inspirada na literatura de cordel, a história foca em um garoto que se descobre LGBTQIAP+ e enfrenta o preconceito das pessoas ao seu redor. Ele pensa em desistir de tudo, mas é salvo pelo amor da mãe.

(Autora: Zenilda Cardozo | Onde encontrar: Amazon)

Um dia de céu noturno

Glorian, sucessora do rainhado de Inys, Tunuva, a irmã do Priorado, e Dumai Wulf, amante de dragões, se unem para enfrentar um maligno cuspidor de fogo vermelho conhecido como wyrm. A obra garante uma imersão no matriarcado, protagonismo feminino, representatividade LGBTQIAP+ e temáticas como busca pela identidade, maternidade e relacionamento sáfico. A história se passa 500 anos antes da duologia "O priorado da laranjeira", best-seller de Samantha Shannon, e pode ser lido de forma independente.

(Autora: Samantha Shannon | Onde encontrar: Amazon)

Carmilla: a Vampira de Karnstein

A obra é narrada por Laura, uma jovem que vive isolada com o pai em um castelo. Mas uma hóspede inesperada despertará os sentimentos amorosos da personagem. Ao mesmo tempo, a visita causará na protagonista certo terror, ao trazer de volta antigos pesadelos da infância. Apesar do enredo acontecer em 1872, a autora não esconde a sexualidade da protagonista.

(Autor: Sheridan Le Fanu | Onde encontrar: Amazon)


A história de Carmen Rodrigues

Carmen já não podia aceitar a situação imposta por um marido negligente e opressor, mas livrar-se dele parecia utopia. Até descobrir o verdadeiro amor em Clarissa e encontrar a força necessária para viver o sonho de ser empresária e de ter uma família saudável. Mas, quando o ex-marido resolve tirar a guarda do filho e suas conquistas, a personagem precisa contar com os amigos e com a companheira para se reerguer.

(Autora: Ana Luiza Libânio | Onde encontrar: Amazon)


Theo G. Alves faz apanhado das miudezas da vida em ‘Inventário de tão pouco’

 

Em seu novo livro, o oitavo em 14 anos, o escritor potiguar continua exercitando a maneira de dizer as coisas que lhe compõem. Obra está em pré-venda com o autor.

Poesia como espólio. Em “Inventário de tão pouco”, seu novo livro — o oitavo de uma carreira literária que soma 14 anos —, o escritor potiguar Theo G. Alves, 42, tenta fazer um apanhado das coisas que parecem menores na urgência da vida cotidiana. Nessa miuçalha a que em geral o mundo é indiferente, estão os tais grandes temas da humanidade: o tempo, o amor, perdas, caminhos, cidades.

“Tudo o que compõe a pequena herança do que escrevo está nele. Continuo exercitando a maneira de dizer as coisas que me compõem. Então, de alguma forma, este inventário é algo que está dentro e fora de mim simultaneamente. É como recebo, transformo e devolvo ao mundo o que me toca”, diz Theo Alves, que nesse exercício de dizer as coisas que o compõem acaba por se ver diante de uma versão mais jovem de si mesmo, estreando como escritor com o livro “Pequeno manual prático de coisas inúteis”, também de poemas, publicado em 2009.

“De certa maneira, o manual e o inventário realizam uma espécie de encontro. Na verdade, meu primeiro livro representa a primeira vez em que consegui organizar o que escrevo para tentar entender os meus processos de relacionamento comigo mesmo e com o mundo. Acho que continuo tentando entender esses processos e espero nunca terminar de fazer isso, afinal nós mudamos o tempo todo e parar de tentar traduzir esse processo significa parar de lidar com o mundo. Para mim, o inventário marca um passo importante nessa compreensão, já que me parece um livro bonito. Oferecer algo bonito, mesmo que às vezes seja cruel, me parece um gesto de esperança pela vida.”

Theo começou a escrever os poemas do novo livro três ou quatro anos atrás, mas não os datou — ele sempre evita datar o que escreve — para não sentir a angústia que é ter de transformar tudo em alguma coisa porque o tempo está passando. “O ritmo absurdo da vida também foi me ensinando a cortar caminhos para um livro. O primeiro processo é sempre o de olhar para as coisas sem tentar entendê-las, mas as sentir. Isso se confunde muito com o que é viver”, diz. 

Questionado se o título “Inventário de tão pouco” seria uma forma irônica de refletir sobre a poesia e a arte em geral, vistas como coisas desimportantes diante do pragmatismo da vida, Theo responde à provocação como o escritor profundamente sensível que é: “Dizer que a arte não tem importância me parece muito duro. Não acho que ela, em especial a Literatura, tenha utilidade prática. Ainda bem. Nem tudo na vida precisa servir para trocar um pneu, erguer uma parede ou mapear as pessoas através de algoritmos. A razão de ser da poesia é a própria poesia e isso é naturalmente grandioso. Eu adoro ver, sentir e pensar essas coisas de pouca utilidade, desde besouros até Deus, passando pela vida, pela própria poesia.”

“Inventário de tão pouco” sai pela editora Penalux, de Guaratinguetá-SP, com orelha assinada por D.B. Frattini, escritor e especialista em Fundamentos Estruturais da Composição Artística; prefácio de Nélio Silzantov, escritor, crítico literário e professor; e quarta capa de Mar Becker, escritora e poeta. É a primeira obra de Theo Alves publicada pela editora paulista, depois de algum tempo de paquera. “Alguns projetos quase saíram por lá, mas só agora unimos as penas. Enviei os originais para os editores, que receberam o livro com muito carinho e cuidado. Isso é fundamental para um escritor que está construindo um espaço, mesmo já estando há tanto tempo escrevendo livros”, comenta Theo.

Em seu texto para a orelha do “Inventário”, D.B. Frattini destaca que “o poeta consegue estampar folhas delicadas de manjericão no meio de nossa caminhada apocalíptica”, e em certo trecho lhe diz: “Theo, seus poemas não são tristes, não são apenas lágrimas e sombras. Seu ‘Inventário’ nasceu clássico e celebra as perdas e os ganhos de nossas trajetórias sempre erráticas e efêmeras. Theo, quem lê sua poesia não precisa temer a crença. O autor deixa o leitor pensar em Deus e sangrar com Ele.”

TRECHO (poema do livro):


sob o pó


sobre os dias

uma camada de poeira

tão densa

que mal se pode ver o

presente


sob o pó

todos os móveis parecem 

fantasmas

cansados demais

para irem embora



SOBRE O AUTOR

Theo G. Alves nasceu em 1980, em Natal, capital do Rio Grande do Norte, mas cresceu em Currais Novos e hoje mora em Santa Cruz, ambas cidades do interior do estado. Além de escritor, é servidor público e professor de língua portuguesa e literatura brasileira. 

Coleciona algumas premiações em concursos literários de prosa e também de poesia, entre as quais se destaca a conquista do Prêmio Nacional de Contos Ignácio de Loyola Brandão 2017, com o conto “Por que não enterramos o cão?”. Publicou os livros “Pequeno manual prático de coisas inúteis” (poesia, 2009), “A Máquina de acessar os dias (poesia, 2015), “Doce azedo amaro (poesia, 2018), “Por que não enterramos o cão? (contos, 2021), “A cartomante que adivinha o presente” (crônicas, 2021), “Caderno de anotações breves e memórias tardias” (poesia, 2021) e “Barreiro das Almas” (romance, 2022).

Wilson Gorj volta à ativa depois de 10 anos com lançamento do livro ❝a inevitável fraqueza da carne❞


A INEVITÁVEL FRAQUEZA DA CARNE

Felino selvagem é metáfora para desejos reprimidos em novo livro de escritor paulista


Depois de uma década sem publicar, o escritor Wilson Gorj, que também é editor, está com um novo livro na praça. Trata-se do seu romance de estreia, “A inevitável fraqueza da carne” (Penalux), que o autor deve lançar no próximo dia 29, às 18h, no Museu Conselheiro Rodrigues Alves, em Guaratinguetá, cidade que é sede de sua editora.

Tempos atrás, Gorj ficou conhecido pelos seus livros de microcontos, gênero pelo qual militou durante um bom tempo, tendo, inclusive, comandado um selo específico do gênero, o 3x4: microficções (2010 a 2012), que foi um dos primeiros selos a se focar exclusivamente na prosa minimalista. 

Dessa vez, porém, o autor investe sua escrita numa narrativa de mais fôlego. “É um enredo relativamente simples”, relata o escritor à nossa entrevista, “mas que traz assuntos de interesse geral, como paixão, traição, conflitos familiares, entre outras abordagens humanas”.

A sinopse do romance nos dá a dimensão do que aborda o livro: Carlos é um contador que recebe uma inesperada herança do falecido pai, com quem não se relaciona desde a infância, em decorrência de uma traição que resultou no rompimento familiar. Essa herança é o ponto de virada na vida do personagem. Aos poucos, a chácara herdada vai se revelando um palco de tensões. A história, que é contada por um narrador pouco confiável, contempla temas candentes da condição humana: a morte; a solidão de não ter filhos; a traição; o incesto; os silêncios pessoais e os desdobramentos do passado na vida presente. Além de abordar a traição, a trama apresenta ainda, em menor medida, o tema da autoficção, explorando os limites entre sonho e realidade, desejos e lembranças, verdade e mentira. 

 “Muitos me perguntam o papel da jaguatirica na história, já que ela ilustra a capa do romance”, conta o escritor. Ele explica: “É um animal-símbolo no meu enredo. Ela aparece em algumas noites no quintal da chácara, tentando roubar alguma ave do galinheiro protegido por telas. Carlos, o protagonista do romance, estabelece com ela uma certa ligação e simpatia. A jaguatirica representa na trama uma metáfora às nossas paixões reprimidas, que tentam invadir a nossa rotina e de alguma forma saquear algo do nosso tempo, de nossas relações, de nossa vida.”

Outro ponto que desperta curiosidade no livro do Gorj é o título, que lembra o de outro livro, a famosa obra do tcheco Milan Kundera. O próprio autor elucida essa referência: “O livro inicialmente chamava-se ‘A carne é fraca’. Mas então, ainda no processo de concluir a trama, veio-me à mente este ‘A inevitável fraqueza da carne’. O novo título me fisgou, mas logo aquela voz crítica que todo autor tem (ou deveria ter) buzinou o alerta: isso lembra o livro do Kundera, ‘A insustentável leveza do ser’. Inicialmente essa constatação foi um desalento, tanto que pensei em deixar esse título de lado por conta dessa fácil associação a outro já existente e conhecido. Mas não demorou muito para que a ideia se tornasse um estímulo, porque vi a possibilidade de transformar o pastiche do título numa referência explícita, irônica, uma espécie de homenagem ao autor. Em outras palavras: eu poderia usar essa associação ao Kundera a favor do livro. Além do mais, entre os dois títulos parecidos há um contraponto interessante: o livro do escritor tcheco trata de questões do ser, o espírito humano, abarca questões mais elevadas, sendo assim, do outro lado, o meu – com menos competência, obviamente – trata de questões da carne, um tema mais ao chão, sem muitas pretensões filosóficas. Em resumo, a referência ao Kundera foi um tempero a mais à minha história”, finaliza Gorj.

Como ocorre em histórias permeadas por erros e perdas, da leitura desse romance também podemos tirar alguma lição: a de que toda rotina está sujeita à interferência do inesperado. E o inesperado pode se apresentar de várias formas, seja por meio de uma herança, uma revista ou, quem sabe, um felino... Afinal, mudar nem sempre é uma escolha. Às vezes é um imperativo inevitável.


TRECHO:

“Horas depois, já na cama, Carlos acordou com um barulho no quintal. Consultou no quintal. Consultou o relógio do celular. Era mais de meia-noite. Luísa roncava levemente ao lado. O barulho vinha da parte detrás da casa, próximo ao galinheiro. Àquela hora, certamente, não poderia ser o caseiro.

Carlos lembrou-se de ter visto uma lanterna na dispensa, quando Dona Marta abriu para pegar o arroz e os temperos.

Era uma lanterna pesada, a base de pilhas. Estava agora com ela nas mãos. Acionou o botão: acendeu. Um facho meio fraco, de pilhas que precisavam ser trocadas.

Vestiu um moletom por cima do short e saiu pela cozinha, avançando cautelosamente pela área coberta.

Os cães do caseiro, na casa ao lado, latiam sem parar. No galinheiro, as aves também pareciam alvoroçadas. Ele apontou a lanterna naquela direção e teve um sobressalto: a luz devolveu dois olhos vermelhos olhando fixos para ele. O animal estava imóvel, como que suspenso no gesto de fuga. Os dois, homem e felino, ficaram se mirando por um tempo, até que o bicho saltou sobre um monte de telhas acumuladas ali perto, depois galgou o muro e dali ganhou a árvore robusta cujo galho invadia um pouco a propriedade.

Muito pequena para ser uma onça, ele pensou, embora o pelo amarelo salpicado de manchas negras reforçasse essa impressão. Se não fosse um filhote, provavelmente tratava-se de algum gato selvagem.”


O livro do Wilson Gorj já recebeu algumas críticas. Abaixo deixamos o link para duas delas:

  1. https://aterraeredonda.com.br/a-inevitavel-fraqueza-da-carne/

  2. http://raulealiteratura.blogspot.com/2023/05/a-inevitavel-fraqueza-da-carne.html



O AUTOR

Wilson Gorj é natural de Aparecida, SP. É escritor e editor pela Penalux. Possui participações literárias em antologias, jornais, revistas e sites. Este romance de estreia é o seu quarto livro publicado. 


SERVIÇO

“A inevitável fraqueza da carne”, romance; p. 162; R$ 45 (Penalux, 2023).

Link para compra: 

https://www.editorapenalux.com.br/loja/romance/a-inevitavel-fraqueza-da-carne

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