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[RESENHA #964] Ti amo – Hanne Ørstavik

Um câncer terminal levará seu marido dentro de um ano. Ele ignora a morte. E ela se volta à escrita na tentativa de preservar a própria força vital. Para a escritora Natalia Timerman, que assina a orelha do livro, Hanne Ørstavik escreve “na imbricação entre vida e literatura”. Um dos maiores nomes da literatura norueguesa contemporânea, Hanne Ørstavik estreia no Brasil com o encantador e contundente Ti Amo. A prosa comovente que a consagrou como uma autora aclamada em diversos países foi traduzida por Camilo Gomide, direta do norueguês.

RESENHA

Ti amo é um livro que mistura ficção e realidade, baseado na experiência da autora norueguesa Hanne Ørstavik, que perdeu o seu marido italiano para o câncer. O livro é um relato emocionante e íntimo de um amor que enfrenta a morte, a dor e o silêncio. O livro é escrito e ambientado nos primeiros meses de 2020, e seus temas de perda e sofrimento são especialmente adequados para um tempo de luto internacional.

O livro narra a história de uma narradora sem nome que cuida do seu marido, doente de câncer, nos últimos meses da sua vida. Ela examina os elementos da sua vida juntos: a mesa vietnamita cor-de-rosa onde eles comem suas refeições, cada um dos Anos Novos que eles compartilharam, suas amizades e suas trocas mais íntimas. Com tudo em mudança, ela busca as facetas que permanecerão.

O livro é uma homenagem ao legado do seu marido, que era um editor e tradutor italiano, que amava a arte, a música e a literatura. O livro também é uma reflexão sobre as questões existenciais, culturais e linguísticas que o casal enfrentou em sua relação. O que se pode encontrar em um olhar? O que se esconde em uma pintura ou por trás de um punhado de palavras repetidas? Essas são as perguntas que assombram a narradora, que tenta preservar a sua própria força vital através da escrita.

Ti amo é um livro que mostra a sensibilidade e a sinceridade da autora, que é uma das escritoras mais admiradas e premiadas da Noruega. A autora escreve com uma linguagem simples, direta e criativa, que se adapta aos ritmos da mente da narradora. Na tradução de Martin Aitken, a história de Ørstavik ganha vida.

A obra possui um enredo poético e chocante. A autora descreve em detalhes, e em primeira pessoa, o di-a-dia em companhia do marido após diagnóstico. Noites mal dormidas regradas à adesivos e comprimidos para dor, morfina e muita resiliência.

[...] Você está sentindo muita dor. Não podemos colocar mais adesivos?, eu digo. Tudo o que resta é uma pequena pilha de adesivos. E então colocamos os adesivos, dois de cinquenta, um de cada vez,  e depois de passar o dia todo deitado com dores, você finalmente adormece. (p.49)

[...] O que consta em seu boletim médico é que desde o final de outubro os marcadores dobraram a cada novo exame. Lendo em retrospecto, vejo que antes não estava assim, no ano em que você fez a quimio, depois da cirurgia, os valores oscilaram um pouco para cima e para baixo, mas não passaram de quatro mil. [...] No entanto, a dor fica mais forte a cada dia, a cada noite, e agora você está com esse inchaço. [...]

[...] você está deitado na cama e acabou de colocar trezentos miligramas debaixo da língua, mas logo eles vêm te buscar, precisam te preparar para a ressonância magnética mais tarde, tiram você da cama e do barato que acabou de entrar, nós acordamos às sete horas, antes das oito estávamos no táxi. (p.72).

Em síntese, a obra de Ørstavik é complexa, dolorida, repleta de gatilhos. É uma leitura rápida, mas que dura uma vida toda. Leia este livro de coração e alma abertos, ele não é apenas um enredo, mas a descrição de alguém que acabou de perder o seu amor. Um livro para se por embaixo do travesseiro e reler sempre que se sentir sem forças, pois ainda que a autora trabalhe saudade e luto o tempo todo...ela também trabalha força e superação, e é aqui que reside a força de sua escrita: na resiliência.

[RESENHA #963] Os rostos que tenho, de Nélida Piñon

“Viver requer aestado artístico”. Em obra póstuma e inédita, a autora consagrada Nélida Piñon costura, através de 147 capítulos, o seu testamento literário: Os rostos que tenho.

Nélia Pinõn acreditava na importância de deixar rastros. Rastros de existência, da própria criação, de palavras que se incorporam a um legado para os que ficam. Com 147 capítulos curtos que lembram a estrutura de um diário, a autora consagrada esculpe uma extensa pluralidade de máscaras que flutua pelos meandros da vida, da arte e da mortalidade. Ao lado da pressa por escrever em contrapelo ao tempo que lhe resta, não habita a autocomiseração, mas a festa: “Luto para meus dias serem festivos. Só por estar viva, mesmo sem razão concreta, ergo a taça da ilusão”. Obra póstuma e inédita, Os rostos que tenho é, segundo o escritor Rodrigo Lacerda, o “testamento literário” de Nélida Piñon. 

A primeira escritora a se tornar presidente da ABL sabia do papel social e literário que exercem os registros que deixamos, as memórias que nos empenhamos para preservar. Através de textos curtos que, no entanto, não correm o risco de minguar na superfície, Nélida mergulha em suas próprias máscaras, tecendo um balanço de vida coeso, complexo e multifacetado. Os rostos que tenho nos apresenta a recortes de sua infância, na qual as línguas espanhola e portuguesa se entrelaçam, criando uma sinfonia cultural que ecoa através de sua vida e de sua literatura. Somos convidados, ainda, a conhecer sua relação íntima com a palavra, com a criação, com os seus contemporâneos. Em uma reflexão profunda sobre a mortalidade, reconhecemos a preciosidade de seus rastros e vontades de memória.

O prefácio desta primeira edição, assinado pelo escritor – e editor de Nélida Piñon - Rodrigo Lacerda, deixa um recado ao leitor:

“Haveria ainda muito a se falar sobre o testamento literário de Nélida Piñon e seus rostos mutantes, ou, como diz o capítulo 46, suas “máscaras”. É melhor, no entanto, deixar que os leitores se surpreendam com o livro. E se emocionem com as derradeiras perguntas que Nélida deixa no ar, vendo próximo o fim de uma vida inteira dedicada ao poder de invenção e reinvenção pelas palavras.”

RESENHA

Os rostos que tenho é um livro póstumo e inédito da escritora brasileira Nélida Piñon, considerada uma das maiores da língua portuguesa. Publicado em 2023 pela editora Record, o livro reúne 147 crônicas curtas, que lembram um diário, nas quais a autora reflete sobre sua vida, sua obra, sua relação com a palavra, seus amigos, seu amor, sua morte e seu Deus.

O nome da obra é uma alusão ao título do capítulo 46, ao qual Nélida adotou após uma reunião com os editores da obra, o titulo original desta obra é Andanças de Nélida, e foi escrito a obra como uma testamento literário enquanto escrevia, em contrapartia, seu último romance, como prefaciado por Rodrigo Lacerda.

O livro é dividido em 147 capítulos, que variam de uma a três páginas, e que abordam temas diversos, como a infância, a família, a cultura, a política, a literatura, a amizade, o amor, a solidão, a velhice, a morte e a fé. Nélida Piñon, que era filha de imigrantes espanhóis, mostra como sua identidade foi marcada pela convivência entre duas línguas e duas culturas, e como isso influenciou sua escrita. Ela também homenageia seus mestres e amigos, como Clarice Lispector, García Márquez, Susan Sontag, Rubem Fonseca, entre outros, e compartilha suas impressões sobre suas obras e suas vidas.

Os rostos que tenho é um livro que celebra a arte e a existência, em uma prosa lírica e envolvente. Nélida Piñon mostra sua paixão pela palavra, sua busca pela beleza, sua lucidez diante da realidade, sua coragem diante do sofrimento, sua esperança diante do mistério. É um livro que revela a grandeza de uma escritora que soube transformar sua vida em literatura, e sua literatura em vida.

A autora nos brinda com sua genialidade de forma poética e singela em cada capítulo,  sobretudo, quando faz afirmações ao divino no capítulo de abertura da obra, a eternidade: Deus é tão palpável quanto um pedaço de pão. Apieda-se da fome humana enquanto impõe-nos seu intransigente decálogo. E dissemina existir onde nos abrigaremos no futuro. Vale, pois, crer em tal divindade. (p.19); quando aborda a estética: A estética tem rosto, posso vê-lo. Assim, no exercício da arte, a estética é difusa, inconsútil, arcaica, carnal, mística, transcendente, arqueológica, vasta, profunda, tradicional, contemporânea, sobretudo, mestiça (p.21); quando aborda a humanidade: Quem repetirá, à beira da cama, palavras que decerto não foram alinhavadas pelo engenho e pela carência dos homens? (p.23).

A muito o que se declarar quando o tópico central da discussão é Piñon, Nélida esteve sempre à frente de seu tempo, não apenas em suas palavras e atitudes, mas em seu legado.

Nélida Piñon, que faleceu em 2022, aos 85 anos, em Lisboa, deixou um legado literário de grande valor e reconhecimento. Foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, em 1996, e recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, como o Príncipe de Astúrias, da Espanha, em 2005. Em Os rostos que tenho, ela revela as múltiplas facetas de sua personalidade e de sua criação, em um testemunho sincero, poético e emocionante.

[RESENHA #962] Noveletas – Sigbjørn Obstfelder

Noveletas reúne as novelas Liv e As Planícies, do escritor norueguês Sigbjørn Obstfelder (1866-1900). Esse é o 1º título da Coleção Norte-Sul, organizada e traduzida por Guilherme da Silva Braga.

RESENHA

Noveletas é uma coletânea de duas novelas do escritor norueguês Sigbjørn Obstfelder (1866-1900), considerado um dos pioneiros do modernismo literário em seu país. O livro, traduzido diretamente do norueguês por Guilherme da Silva Braga, é o primeiro título da Coleção Norte-Sul, que pretende apresentar ao público brasileiro autores e obras de países nórdicos ainda pouco conhecidos.

As novelas Liv e As Planícies são exemplos da prosa inovadora e experimental de Obstfelder, que explora aspectos psicológicos e abstratos dos personagens, em contraste com a narrativa realista e naturalista predominante na época. Influenciado pela poesia de Charles Baudelaire, Obstfelder cria atmosferas sombrias, melancólicas e simbólicas, que refletem sua própria angústia existencial e sua busca por um sentido para a vida.

Liv conta uma história narrada em primeira pessoa de um homem que cuida de uma mulher de nome homônimo ao conto. Ela vive em um internato e encontra-se doente, e ele toma para si a obrigação de cuidar dela. A narrativa é marcada pela subjetividade e pela fragmentação, que expressam o conflito interno e a instabilidade emocional da protagonista. O final é algo inesperado pelo leitor e marca toda leitura com um enredo emocionante e tocante.

Liv é islandesa. Ela, essa alva e bela figura, cuja mão desliza como uma sombra por cima das cobertas, em cujos olhos há um brilho de maciez, fala com erres ríspidos e estrangeiros, que soam estranhamente pesados na língua ademais suave. (p.19)

As Planícies narra a viagem de um homem através das planícies, onde ele descreve, com destreza mais do que os olhos podem enxergar. Ele conhece uma mulher de nome Naomi ao qual se encanta à primeira vista, ela é, segundo ele, pálida como um cadáver. A escrita do autor é prolífica em suas nuances e descreve com clareza e expertise um enredo inovador e intrínseco. O autor trabalha a noção de psicologia e lembrança em seus enredos, as descrições e aventuras de suas personagens revelam muito além do que o enredo pode proporcionar fora das entrelinhas, é necessário descortina-los, ler, reler e refletir. Sinto como se cada descrição do autor fosse um universo particular dentro de uma criação única e singular.

É estranho pensar que todos os outros estiveram com ela ao longo da vida inteira, e que no entanto, fui o primeiro a vê-la. Nenhuma pessoa no mundo viu Naomi (p.48) 

Noveletas é um livro que nos surpreende pela originalidade e pela beleza de sua escrita, que nos envolve e nos emociona com suas histórias de amor, dor e loucura. É uma obra que nos faz conhecer e admirar o talento de Sigbjørn Obstfelder, um autor que influenciou grandes nomes da literatura mundial, como Rainer Maria Rilke, e que merece ser lido e apreciado por todos os amantes da boa literatura.

[RESENHA #960] O cordeiro e os pecados dividindo o pão, de Milena Martins Moura

Nas palavras de Priscila Branco, que assina o prefácio do novo livro de Milena Martins Moura, “[em] O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, o único milagre possível é o ato poético […]: ‘Eu estou escrevendo / Isso é um milagre’”

Exercício de subversão, Milena Martins Moura faz o cordeiro – símbolo da castidade – sentar à mesa com os pecados. E gozar da companhia um do outro, “de corpo inteiro no indevido”.

Para a professora Paula Glenadel da Universidade Federal Fluminense (UFF), Milena “assume para si uma voz incomum entre sua geração”, tratando de temas bíblicos, ou dos “mistérios gregos”.

Neste O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, a opressão é esmagada e as palavras são desnudadas sem culpa, como aponta Anna Clara de Vitto na orelha.

A Eva de Milena é “serpente e desfrute” e vai “lambendo o caminho desviado”, dando atos de sujeito à primeira mulher. Em certo momento, Eva afirma: “estou nua e disso não me envergonho”.

RESENHA

A poeta enfrenta temas como religião, erotismo, profanação do sagrado e as proibições ligadas à liberdade feminina, em versos que usam a palavra como instrumento de independência. Priscila Branco ressalta, logo no início do prefácio, que essa coletânea de poemas é transgressora, pois propõe uma total inversão da tradição judaico-cristã, estabelecida em nossa sociedade por milhares de anos. E afirma: “O próprio ato de escrita e, agora, de leitura deste livro é a luta contra o sacrifício. Que a poesia possa sempre dar voz ao cordeiro e aos pecados, e que todo leitor ache um pedaço desse pão, mesmo que o cobertor esteja úmido em dias gelados.” Nessa mesma direção, Paula Glenadel oferece, no posfácio, uma análise sobre a abordagem ousada de Milena nessa obra. De acordo com ela, a fome e a sede são imagens que percorrem quase todos os poemas do livro. Para a professora, essas cenas se organizam em duas grandes séries de substâncias, a do pão, do vinho ou da água; e a da carne e do sangue, nas quais o sujeito se exercita na ocupação de lugares mutáveis. E essa transubstanciação, em suas palavras, “põe em destaque a ineficácia da transferência sacrificial tradicional, incapaz de saciar essa sede e, principalmente, essa fome”. Em O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, as mulheres existem como seres que desejam e é do desejo que o direito à subjetividade emerge. Para a autora, trabalhar esse tema sob essa perspectiva era algo inevitável, além de um ato político em desejo de si e de outras: “Eu sou uma mulher que foi criada sob o peso da culpa e que se cansou de ver seu desejo como um erro e seu corpo como impuro.”

Em uma análise ao poema LUTA:

apenas dois
olhos
fracos
se interpõe
entre mim
escuro

e eu que nunca fui muito forte existo novembro e flores mortas pintadas do sangue de flamboyants tenho dois olhos cor de tempestade e um cansaço ancestral nos ossos do não
dito 

O poema é um texto lírico que expressa a angústia e a solidão do eu lírico, que se sente fraco e cansado diante da escuridão da vida. O poema tem uma estrutura irregular, sem rimas ou métrica definida, o que sugere uma ruptura com as formas tradicionais e uma busca por uma linguagem mais livre e pessoal.

O poema se divide em três partes, cada uma iniciada por uma referência aos olhos do eu lírico. Na primeira parte, ele diz que tem apenas dois olhos fracos que se interpõem entre ele e o escuro, o que indica uma sensação de impotência e vulnerabilidade diante do desconhecido. Na segunda parte, ele afirma que nunca foi muito forte e que existe novembro e flores mortas pintadas do sangue de flamboyants, o que remete a uma atmosfera de melancolia e decadência, marcada pelo fim do outono e pela cor vermelha que simboliza tanto a beleza quanto a violência. Na terceira parte, ele revela que tem dois olhos cor de tempestade e um cansaço ancestral nos ossos do não dito, o que sugere uma emoção intensa e reprimida, que carrega consigo há muito tempo e que não consegue expressar.

O poema, portanto, é uma manifestação de um sentimento de desesperança e de incomunicabilidade, que revela a fragilidade e a complexidade do eu lírico.

Adquira O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão via site da editora Aboio: https://aboio.com.br/produto/o-cordeiro-milena-martins-moura/

[RESENHA. #961] O sorriso do erro, de Eduardo rosal

Em um mundo tomado pela disputa entre aprovação e reprovação, Eduardo Rosal defende o erro pelo erro. Não como um passo a caminho para o sucesso, mas uma escolha de maneira consciente: a fuga de qualquer rota totalitarista que desconsidere nossas singularidades e diferenças.

“Ser escritor”, diz o poeta, “é um esforço destinado ao erro; é trabalhar com as ruínas do fracasso”. No entanto, é preciso continuar escrevendo, buscando, ou melhor, criando um sentido para nossas vidas. “Assim como é preciso ver Sísifo contente, precisamos ver o sorriso no erro”, sentencia.

O Sorriso do Erro apresenta 42 poemas divididos em seis seções – Os muros do nome, Dentro e fora, Os gestos no escuro, Croque de concretude, Lições de fragilidade e Errâncias. Embora cada uma tenha seu próprio mote, elas dialogam entre si, fomentando uma conversa que culmina em um questionamento para o leitor: afinal, o que é o erro?

RESENHA

O Sorriso do Erro é um livro de poesia de Eduardo Rosal, publicado pela Editora Aboio em 2023. O autor defende o erro como uma forma de resistência e criação, contrapondo-se à lógica da aprovação e da reprovação que domina o mundo contemporâneo. Rosal propõe uma poesia que celebra as singularidades, as diferenças e as dúvidas, em oposição ao totalitarismo, ao fascismo e à uniformidade.

O livro é dividido em seis seções (os muros do nome; dentro e fora; os gestos no escuro; croqui de concretude; loções de fragilidade e errância), cada uma com um tema específico, mas que se relacionam entre si. Os poemas exploram questões como a identidade, a linguagem, a violência, a fragilidade, a memória e a esperança. Rosal utiliza uma linguagem simples, mas não simplista, que busca provocar o leitor a questionar o que é o erro e qual o seu papel na construção de um sentido para a vida.

O Sorriso do Erro é um livro que convida à reflexão, à crítica e à ação, através de uma poesia que não se conforma com o status quo, mas que busca transformá-lo. É um livro que sorri para o erro, não como um fracasso, mas como uma possibilidade de renovação e de liberdade.

O primeiro poema da primeira seção, os muros do nome, é completamente forte e poético:

Desde que não sei quem sou
começo a me entender
entre a sede
           e o são
    um nome
que não sei dizer
e se refaz 
vão de voo
terreno entre
um natimorto acerto
e os erros de quem
não se rende aos modelos

O poema começa com uma afirmação paradoxal: “desde que não sei quem sou, começo a me entender”. O sujeito poético revela que a sua ignorância sobre si mesmo é o ponto de partida para o seu autoconhecimento. Ele se coloca entre a “sede” e o “são”, ou seja, entre o desejo e a razão, entre a falta e a plenitude, entre o incompleto e o completo. Ele não se define por nenhum desses extremos, mas pela tensão entre eles.

O segundo verso mostra que o sujeito poético está em constante transformação: “um nome que não sei dizer e se refaz”. Ele não tem uma identidade fixa e estável, mas uma que se renova e se reinventa. Ele não sabe dizer o seu nome, pois ele não é um rótulo ou uma etiqueta, mas uma experiência e uma vivência.

O terceiro verso repete a expressão “vão de voo”, que pode ter dois sentidos: um de movimento, de ir e vir, de deslocamento; e outro de vazio, de ausência, de lacuna. O sujeito poético se situa nesse vão, nesse espaço entre, nesse intervalo que não é nem um nem outro, mas que possibilita a criação e a resistência.

O quarto verso reforça essa ideia de estar no “terreno entre”, no limiar, na fronteira, na margem. O sujeito poético não se conforma com o “natimorto acerto”, ou seja, com o que é dado como certo, mas que já nasce morto, sem vida, sem sentido, sem potência. Ele se identifica com os “erros de quem não se rende aos modelos”, ou seja, com as falhas, as diferenças, as singularidades, as subversões, as transgressões, as invenções.

O poema, pode ser considerado uma afirmação da identidade como um processo, uma construção, uma experimentação, uma errância, uma poesia. É um poema que sorri para o erro, como uma forma de liberdade e de expressão.

outro poema bastante interessante do autor está presente na quarta seção, croqui de concretude, loucura:

Locura de astrônomo,
de biólogo:
de binóculo na veia, ver
no mínimo o macro.
Microscopicamente, ver
no macro o micro

Loucura de arqueólogo, 
de catalogador, de colecionador:
movidos mais
pela próxima busca,
apaixonados pelo jogo com a perda,
com fome de fragilidades.

Loucura de escritor que manuseia
um grão de areia e um astro,
com a mesma intimidade
com que entrevista a morte,
uma planta dormideira
e um gato.

Sou louco pelo gelo derretendo,
pelos capachos de bem-vindo
(com ou sem hífen),
pela água ventando na poça.

Louco pelas montanhas com vacas.
Louco por outras pegadas.

Nesse poema, o autor explora as diferentes formas de loucura que se manifestam na curiosidade, na criatividade e na sensibilidade dos seres humanos. Ele usa como exemplos as profissões de astrônomo, biólogo, arqueólogo, catalogador, colecionador e escritor, que representam a busca pelo conhecimento, pela arte e pela memória. Ele também se inclui nessa lista, revelando suas próprias loucuras, que são detalhes simples e cotidianos que o encantam.

O poema é construído com versos livres, sem rima ou métrica fixa, mas com uma certa musicalidade e ritmo. Ele usa repetições, anáforas, aliterações e assonâncias para criar efeitos sonoros e enfatizar as ideias. Por exemplo, ele repete a palavra “loucura” no início de cada estrofe, criando uma espécie de refrão. Ele também usa anáforas como “de” e “pela” para introduzir os objetos de loucura de cada profissão ou pessoa. Ele usa aliterações como “binóculo na veia”, “movidos mais pela próxima busca” e “com fome de fragilidades” para criar sons consonantais que reforçam o sentido dos versos. Ele usa assonâncias como “astrônomo, de biólogo”, “arqueólogo, de catalogador, de colecionador” e “grão de areia e um astro” para criar sons vocálicos que harmonizam os versos.

O poema também usa imagens e metáforas para expressar as loucuras dos sujeitos. Por exemplo, ele usa a imagem do “binóculo na veia” para sugerir a intensidade e a paixão dos astrônomos e biólogos pelo que observam. Ele usa a metáfora do “jogo com a perda” para indicar o desafio e o risco dos arqueólogos, catalogadores e colecionadores que lidam com objetos frágeis e efêmeros. Ele usa a imagem do “grão de areia e um astro” para mostrar a amplitude e a diversidade dos temas que o escritor pode abordar. Ele usa a metáfora da “entrevista” para revelar a proximidade e a curiosidade do escritor com relação aos seus objetos de escrita, que podem ser desde a morte até um gato.

O poema, portanto, celebra a loucura como uma forma de resistir à normalização e à padronização que o autor critica em seu livro. Ele defende a loucura como uma forma de liberdade, de expressão e de criação, que valoriza as singularidades e diferenças humanas. Ele convida o leitor a se identificar com as loucuras apresentadas no poema e a reconhecer as suas próprias loucuras.

O sorriso do erro é um livro que nos convida a refletir sobre o papel do erro na vida humana, na arte e na sociedade. Eduardo Rosal, com sua poesia sensível, criativa e engajada, nos mostra que o erro não é apenas um desvio, um fracasso ou uma falha, mas também uma forma de resistir, de expressar e de criar. Ele nos propõe uma ética do erro, que valoriza as singularidades, as diferenças e as possibilidades de cada ser humano.

O livro é composto por 42 poemas, divididos em seis seções, que abordam temas como o nome, o corpo, o amor, a linguagem, a fragilidade e a errância. Cada seção tem um título que remete ao erro, como Os muros do nome, Dentro e fora, Os gestos no escuro, Croque de concretude, Lições de fragilidade e Errâncias. Os poemas são escritos em versos livres, sem rima ou métrica fixa, mas com uma musicalidade e um ritmo próprios. O autor usa recursos estilísticos como repetições, anáforas, aliterações, assonâncias, imagens e metáforas para criar efeitos sonoros e visuais, e para enfatizar as suas ideias.

O livro é uma obra original, inovadora e provocativa, que nos faz pensar sobre o nosso próprio conceito de erro, e sobre como lidamos com os nossos erros e os dos outros. É um livro que nos desafia a questionar os padrões, as normas e as verdades impostas pela sociedade, e a buscar a nossa própria voz, o nosso próprio caminho, o nosso próprio sorriso. É um livro que nos ensina a errar com coragem e consciência.

[RESENHA #958] A vida é cruel, Anamaria: Diálogos imaginários com minha mãe, de Fábio de Melo


“Depois que morre a minha mãe, morre também a minha obrigação de ser feliz.” – Fábio de Melo 


Com profunda sensibilidade e lirismo, A vida é cruel, Ana Maria apresenta ao leitor um depoimento franco sobre a desconstrução da mãe enquanto modelo idealizado e sobre o luto não só pela perda humana, material, mas também desta própria idealização. Ao reconstituir por meio de um diálogo imaginário a trajetória de humildade e privações de sua mãe e refletir sobre como isso moldou não só a visão de mundo dela, mas também a sua própria, Fábio de Melo escancara com crueza dos sentimentos, mais como filho do que como sacerdote, suas impressões sobre a fé e o amor, o ressentimento e as dores, as alegrias e crueldades de uma vida. É uma reflexão poderosa e comovente sobre a passagem do tempo e a finitude, uma obra capaz de sensibilizar e tocar a todos.


“Esqueça-se do que dela você já sabe, do que dela você já entendeu.

Veja a sua senhora como quem se dispõe ao detalhismo de uma pintura de Caravaggio. Leia as suas linhas como quem lê uma minuciosa descrição de Marcel Proust.

Faça como o personagem que andou em busca do tempo perdido. Molhe a madeleine no café com leite e viaje pelos caminhos que a reminiscência lhe sugerir.

Depois retorne, abrace a memória já perdoada, permita-se o choro que lava o passado nas águas do presente. E, já estando em perfeito acordo com as dores que colocam neblina sobre a lâmina dos olhos, veja como é linda a sua mãe.”


RESENHA

A vida é cruel, Ana Maria: Diálogos imaginários com minha mãe é um livro do padre e escritor Fábio de Melo, publicado pela editora Record em 2023. Neste livro, o autor compartilha sua experiência de luto pela morte de sua mãe, Ana Maria, em 2019, e reconstrói sua relação com ela por meio de conversas imaginárias.


O livro se inicia com uma citação de Mia Couto: “Mãe, nascerás sempre na pedra em que te escuto: a tua ausência, meu luto, teu corpo para sempre insepulto.” O poema transmite uma profunda dor e saudade pela perda da mãe. O eu lírico expressa que, apesar de sua mãe ter falecido, ela continuará sempre presente em sua vida, como uma pedra em que ele a escuta. A ausência da mãe é comparada ao luto eterno do eu lírico, que sente falta de seu corpo físico não ser mais presente, como se estivesse insepulto. Através dessas imagens, o poema tenta transmitir a intensidade da saudade e do vazio deixados pela mãe que se foi.


O livro é um relato emocionante e sincero, que revela os sentimentos mais profundos do autor sobre espiritualidade, religião, permanência, fé e amor, e também sobre a vida e seu legado. O autor mostra como sua mãe foi uma mulher humilde, que enfrentou muitas privações e dificuldades, mas que nunca perdeu a esperança e a alegria. Ele também reflete sobre como a visão de mundo de sua mãe influenciou a sua própria, e como ele teve que lidar com o ressentimento, as dores, as alegrias e crueldades de uma vida.


O livro é uma reflexão poderosa e comovente sobre a passagem do tempo e a finitude, uma obra capaz de sensibilizar e tocar a todos. O autor usa uma linguagem poética e lírica, que remete a obras de arte e literatura, como as pinturas de Caravaggio e as descrições de Marcel Proust. Ele também usa metáforas e imagens que evocam a memória e a saudade, como a madeleine molhada no café com leite.


A vida é cruel, Ana Maria: Diálogos imaginários com minha mãe é um livro que fala sobre a morte, mas também sobre a vida. É um livro que fala sobre a mãe, mas também sobre o filho. É um livro que fala sobre o luto, mas também sobre o perdão. É um livro que fala sobre a dor, mas também sobre o amor. É um livro que fala sobre a crueldade, mas também sobre a beleza. É um livro que fala sobre a fé, mas também sobre a dúvida. É um livro que fala sobre a humanidade, mas também sobre a divindade. É um livro que fala sobre o autor, mas também sobre o leitor. É um livro que fala sobre nós. 

[RESENHA #957] O cárcere da agonia, de José Louzeiro, Marcos Meira & André Di Ceni

Escrita com muita vivacidade e contundência, a obra resgata os relatos colhidos durante os mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça em 2008, os quais escancararam os inúmeros e brutais episódios de violação a direitos humanos básicos nos presídios brasileiros.

Partindo do entendimento de “que o problema não decorre apenas de décadas de negligência, com políticas públicas reiterada e sistematicamente ineficientes, mas também de uma insensibilidade social profunda”, os autores, em exercício de empatia e de suspensão de julgamento, dão voz aos apenados e egressos. Assim, conhecemos histórias repletas de injustiças e (finalmente) justiças, lances de sorte e azar, julgamentos e discriminações, marginalização e ressocialização, degeneração e regeneração, voltas e reviravoltas de personagens como Beatriz, Simone, Guilherme e Raimundo José, nomes fictícios (usados para a proteção dos entrevistados), mas cujas histórias são profundamente humanas e “correspondem a processos judiciais reais, representativos de inúmeros outros em situações análogas, de pessoas esquecidas pelo sistema prisional”.

Como salienta o ministro Gilmar Mendes, que assina o prefácio do livro: “ouso dizer que a presente obra, além do resgate histórico, marca, no Brasil, o trabalho de vigilância e de revisão das prisões, que deve ser permanente e interinstitucional para que os casos emblemáticos trazidos à lume passem cada vez mais a serem exceções, e não regra”.

RESENHA

O cárcere da agonia, de José Louzeiro, Marcos Meira e André Di Ceni, é um livro que resgata os relatos de pessoas que foram presas injustamente ou que sofreram violações de direitos humanos nos presídios brasileiros. O livro se baseia nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça em 2008, que revelaram as condições precárias e desumanas do sistema prisional. O livro dá voz aos apenados e egressos, mostrando suas histórias de injustiças, lutas, superações e ressocializações. O livro tem o prefácio do ministro Gilmar Mendes, que destaca a importância do trabalho de vigilância e de revisão das prisões para evitar que os casos de abusos se repitam. O livro é uma obra pungente, que denuncia a violência física, social e institucional, mas também celebra os exemplos de dignidade e de esperança dos sobreviventes.

A obra é uma forma de expor como os encarcerados são submetidos a tratamentos desumanos, seguindo um regime rigoroso que viola em todos os aspectos o Estado Democrático de Direito. Porém, a obra não se limita apenas aos casos de violação, mas também aos casos de tratamento elaborados na perspectiva humana e nos cuidados essenciais à vida.

O capítulo 1, súplicas do Ceará, nos detalha com ricos depoimentos a vida, a vivência e a ressocialização de encarcerados. A população prisional do estado do Ceará era de 13.307 pessoas, sendo 12.799 homens e 508 mulheres, internados em 300 unidades prisionais, entre penitenciárias, colônias agrícolas, cadeias públicas e hospitais psiquiátricos. (p.23).

Um dos casos mais tocantes presentes no capítulo é o primeiro, o relato e a história de Raimundo José. Ele conhece Marta, uma funcionária do departamento pessoal com quem desenvolve um relacionamento às escondidas. Porém, Raimundo se envolve com outras pessoas durante o namoro com Marta, esse envolvimento o leva a cometer pequenos delitos, mas ela decide tirá-lo desse desvio. Tempos depois, ele é libertado e começa a trabalhar como motoboy na secretaria de justiça, através do Núcleo de Assistência ao Presidiário e Apoio ao Regresso (NAPAE), órgão responsável pela inserção dos presidiários no mercado de trabalho.

Outra história, que, de certa forma, demonstra um total desequilíbrio em relação ao funcionamento do cárcere privado e sua manutenção, é a de Jerônimo Xavier. Ele era de uma família humilde que passou por provocações em relação à sua sexualidade. Morava com a mãe em um lar sem a presença paterna, pela morte precoce do pai. Ele residia em uma casa apertada com um dos irmãos chamado Josafá. Na década de 1980, Josafá disparou diversas vezes contra uma vereadora local por uma acusação, que ele considerava falsa. Esse acontecimento fez com que Jerônimo recebesse toda a culpa, o levando novamente ao cárcere.

Jerônimo foi então preso de forma separada dos demais encarcerados, pelo fato de ser soropositivo, e colocado em uma cela de segurança máxima. Em 2011, em virtude da virtualização de seu processo, ele não obteve êxito em um novo julgamento de soltura.

A obra continua narrando a vida de encarcerados que foram presos de forma injusta ou que acabaram pagando pelo erro de outros. Simone se apaixonou por Rafael aos 17 anos, o que ela não sabia é que durante uma viagem, ele, por sua vez, estava decidido a se vingar do ex-padrasto por ter abandonado sua mãe com câncer, o que lhe causou tristeza profunda e o falecimento precoce.

A obra segue analisando casos distintos em diversas cidades de estados ao redor do Brasil, como Maranhão: o caso de Marco Aurélio e Mathias; Bahia: Juan Perez e Ângelo Fernandes; Amazonas: Carlos Alves; Goiás; Distrito Federal, dentre outros.

A obra se finaliza com uma reflexão sobre a obra em relação a uma crítica que revela que o sistema carcerário brasileiro se assemelha ao sistema carcerário medieval. Os autores também falam sobre a importância de refletir sobre as políticas públicas e a forma como o sistema trata e retrata as vidas em julgamento.

[RESENHA #956] O fascismo eterno, de Umberto Eco

APRESENTAÇÃOUni convite ― um alerta ― para "" esquecer""; para não não dar esse mal como superado ― é o que faz Umberto Eco neste O fascismo eterno. Para nos lembrar que o "Ur-Fascismo", como o autor nomeia, ""ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis"".

O termo "fascismo" é facilmente adaptável porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará a ser reconhecido como tal. Entre as possíveis características do Ur-Fascismo, o ""fascismo eterno"" do título, estão o medo do diferente, a oposição à análise crítica, o machismo, a repressão e o controle da sexualidade, a exaltação de um ""líder"" e um constante estádo de ameaça. Tais características não podem ser reunidas em um único sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.

Publicado pela primeira vez em 1997, no livro Cinco escritos morais, esta nova edição chega aos leitores em um momento de ascensão mundial do flerte com o fascismo ― que, como denuncia Eco, longe de ser apenas um momento histórico vivo na Itália, na Europa (e no Brasil) do século XX, é uma ameaça constante à nossa sociedade. Esta reflexão, importante e necessária, ensina a pensar sobre o sentido da história e a importância da memória. 

"O Ur-fascismo, ou fascismo eterno, ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: 'Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!'. Infelizmente, a vida não é tão fácil assim! O Ur-fascismo pode voltar sob vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas - a cada dia, em cada lugar do mundo." - Umberto Eco


RESENHA

O fascismo eterno é um ensaio famoso do escritor, filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco. Ele foi publicado pela primeira vez em 1995 e apresenta uma análise profunda do fascismo, sua definição e seus aspectos e características essenciais. O ensaio se baseia nas vivências pessoais de Eco que cresceu sob o regime de Mussolini na Itália e na sua ampla pesquisa sobre movimentos fascistas. O ensaio oferece insights valiosos sobre a essência do fascismo e suas formas de expressão. O fascismo eterno foi uma palestra proferida, em inglês, em um simpósio organizado pelos departamentos de italiano e francês da Universidade de Columbia, em 25 de abril de 1995, para comemorar a libertação da Europa.

O livro explora as principais características do fascismo. Eco identifica quatorze elementos ou características fundamentais, que ele chama de “formas”, que costumam aparecer em movimentos fascistas. Embora nem todas essas características estejam presentes em todos os movimentos fascistas, elas criam um padrão identificável. São elas:

O culto à tradição”, marcado pelo sincretismo cultural, mesmo que isso implique em contradição interna. Quando toda a verdade já foi revelada pela tradição, não há espaço para novos conhecimentos, apenas para maior interpretação e aperfeiçoamento.

A rejeição do modernismo”, que considera o desenvolvimento racionalista da cultura ocidental desde o Iluminismo como uma queda na degeneração. Eco diferencia isso de uma rejeição superficial do progresso tecnológico, já que muitos regimes fascistas usam o seu poder industrial como evidência da vitalidade do seu sistema.

O culto da ação pela ação”, que afirma que a ação tem valor em si e deve ser feita sem reflexão intelectual. Isso, segundo Eco, está relacionado ao anti-intelectualismo e ao irracionalismo, e se manifesta frequentemente em ataques à cultura e à ciência modernas.

Discordância é traição” – o fascismo desvaloriza o discurso intelectual e o pensamento crítico como obstáculos à ação, bem como por receio de que tal análise revele as contradições inerentes a uma fé sincrética.

Medo da diferença”, que o fascismo busca explorar e intensificar, muitas vezes na forma de racismo ou de oposição a estrangeiros e imigrantes.

Apelo a uma classe média frustrada”, temendo a pressão econômica das demandas e aspirações dos grupos sociais mais baixos.

"Obsessão por uma conspiração" e a exaltação de uma ameaça inimiga. Isso muitas vezes combina um apelo à xenofobia com o medo da deslealdade e da sabotagem por parte de grupos marginalizados que vivem na sociedade. Eco também menciona o livro de Pat Robertson, A Nova Ordem Mundial, como um exemplo notável de obsessão por conspiração.

As sociedades fascistas classificam retoricamente os seus inimigos como “ ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos ”. Por um lado, os fascistas usam o poder de certas elites desprivilegiadas para estimular nos seus seguidores um sentimento de ressentimento e humilhação. Por outro lado, os líderes fascistas apontam para a decadência dessas elites como prova da sua derradeira fraqueza diante de uma vontade popular avassaladora.

O pacifismo é negociar com o inimigo” porque “ a vida é uma guerra constante ” – deve haver sempre um inimigo para combater. Tanto a Alemanha fascista sob Hitler como a Itália sob Mussolini trabalharam primeiro para organizar e limpar os seus respectivos países e depois construir as máquinas de guerra que mais tarde pretendiam e utilizaram, apesar da Alemanha estar sob as restrições do Tratado de Versalhes para não construir uma força militar. Este princípio leva a uma contradição fundamental dentro do fascismo: a incompatibilidade do triunfo final com a guerra perpétua.

Desprezo pelos fracos”, que está desconfortavelmente casado com um elitismo popular chauvinista, no qual cada membro da sociedade é superior aos estranhos por pertencer ao grupo interno. 

Eco mostra que o fascismo de Mussolini não tinha uma ideologia definida, mas sim uma retórica. Um movimento sem substância e cheio de ideias contraditórias. De acordo com o autor, talvez isso tenha sido a origem de um “totalitarismo nebuloso”.

Assim, por contradições internas do fascismo e por não ser uma organização de ideias com objetivos claros e fixos – sob o ponto de vista histórico – a tese de Eco é desenvolvida para afirmar que o conceito de “fascismo” é flexível, pois é possível retirar de um regime fascista algum dos seus aspectos e este ainda será fascista. Um exemplo dado pelo autor: remova do fascismo as ambições imperialistas, e será possível caracterizar Franco e Salazar.

A seguir, Umberto Eco aponta uma lista de características comuns daquilo que chamou de “Ur-fascismo” ou “fascismo eterno”. Um certo “tradicionalismo” - sob uma perspectiva de oposição à modernidade -, a “ação pela ação” sem o pensamento prévio, a repulsa aos estrangeiros, são algumas das características mencionadas e explicadas pelo autor para reconhecer o “ur-fascismo”.

Este é um livro inteligente e de leitura muito simples e agradável.

[RESENHA #955] A ética do cuidado, de Fabienne Brugére

Em acurada tradução de Ercilene Vita, a obra de Brugère, na contramão da cultura neoliberal do empreendedorismo e da independência, propõe uma ousada revolução teórico-prática em que a atenção para com os outros e a responsabilidade social dos indivíduos e do Estado assumem o protagonismo, de modo que todas as formas de vulnerabilidade – dos migrantes à natureza, das mulheres às pessoas com deficiência, dos condenados pela justiça aos idosos – possam ser devidamente cuidadas.

A autora constrói sua argumentação sobretudo a partir dos textos norte-americanos fundadores da ética do cuidado e de três grandes eixos: as novas vozes a serem ouvidas em um mundo tão plural e a constatação das desigualdades de gênero; o cuidado para com a vulnerabilidade e as grandes dependências; e a reivindicação de políticas públicas para a promoção de uma igualdade real entre mulheres e homens e dos novos regimes de proteção.

Nas palavras da própria autora, “o cuidar supõe uma atenção a todas as vidas e a todos os seres que povoam o mundo. Essa definição bastante ampla – que reagrupa um certo número de atitudes, a capacidade de assumir responsabilidades, o trabalho do cuidado e a satisfação das necessidades – faz do cuidado uma atividade central e essencial da vida humana: a experiência do cuidado adquire, nesse sentido, um tipo de universalidade, porém essa universalidade não é de forma alguma abstrata, pois caracteriza o tipo de relação que convém ter com um ser singular, um elemento natural ou um objeto, a partir do momento em que se reconhece o seu pertencimento a um mundo vulnerável (…). Nesse sentido, é pertinente conferir à ética do cuidado uma consistência ontológica. Na realidade, uma ontologia do cuidado se baseia em uma crítica a todas as formas de poder, sejam elas naturais ou fabricadas pelo homem, em favor de tudo que merece proteção, atenção e que sempre corre o risco do apagamento e da desaparição”.

RESENHA

"A ética do cuidado", escrito por Fabienne Brugére, é um livro que aborda de forma profunda e detalhada o tema do cuidado numa perspectiva ética. A autora apresenta uma análise histórica, social, política, geográfica e antropológica acerca dessa temática, oferecendo uma visão abrangente e aprofundada sobre o assunto.

No enredo do livro, Brugére retrata o cuidado não apenas como uma prática individual, mas como uma responsabilidade coletiva. Ela descreve a evolução histórica do cuidado ao longo dos séculos, mostrando como as transformações sociais, políticas e culturais influenciaram a forma como cuidamos dos outros e de nós mesmos.

Os personagens principais do livro são apresentados como representantes de diferentes épocas e contextos geográficos, o que enfatiza a diversidade de experiências e concepções sobre o cuidado ao longo da história. A simbologia desempenha um papel importante na obra, sendo utilizada para ilustrar diferentes perspectivas e significados atribuídos ao cuidado.

Brugère defende que a ética do cuidado deve ser aplicada em todas as áreas da vida, incluindo a política, a economia e a cultura. Ela argumenta que o cuidado é uma forma de resistência contra a lógica dominante do individualismo e da competição. A ética do cuidado destaca a importância de reconhecer a interdependência e a fragilidade humana. Ela envolve uma preocupação real com o bem-estar dos outros, mostrando-se como uma resposta ética aos problemas e às necessidades enfrentados por aqueles que são mais vulneráveis.

A ética do cuidado enfatiza que todas as pessoas têm o direito de serem tratadas com dignidade, respeito e compaixão. Ela defende a importância de se estabelecer conexões mais profundas e empáticas com os outros, buscando entender e atender às suas necessidades emocionais, físicas e sociais Essa abordagem ética é particularmente relevante em contextos de cuidados de saúde, assistência social e educação, onde a atenção e o cuidado com o outro são fundamentais. Ela também se aplica às relações familiares e comunitárias, encorajando o cuidado mútuo e o fortalecimento dos laços afetivos.

A ética do cuidado não é sentimentalismo ou altruísmo exagerado, mas sim uma perspectiva ética que busca equilibrar interesses individuais e coletivos, considerando as necessidades de todos os envolvidos. Ela implica em tomar decisões éticas baseadas em relações de confiança, responsabilidade e reciprocidade.

No entanto, ao mesmo tempo, a ética do cuidado pode ser criticada por ser subjetiva e relativista, uma vez que sua ênfase nas relações interpessoais pode fazer com que diferentes pessoas tenham diferentes ideias sobre o que é necessário e adequado em uma determinada situação.A mensagem principal transmitida pela autora é a necessidade de resgatarmos o cuidado como valor ético essencial na sociedade atual. Brugére argumenta que, em meio à individualidade e ao individualismo predominantes na contemporaneidade, o cuidado se mostra como uma forma de reconectar-se com o outro e com nós mesmos, fortalecendo os laços sociais e promovendo o bem-estar coletivo.

Os ensinamentos presentes no livro são profundos e provocativos. A autora nos convida a refletir sobre a importância do cuidado em nossas vidas e a considerar como essa prática pode transformar nossas relações e o mundo em que vivemos. Além disso, Brugére traz à tona a necessidade de repensarmos os sistemas políticos e econômicos que muitas vezes colocam o lucro e o indivíduo em primeiro plano, em detrimento do cuidado com os outros e com o planeta.

Fabienne Brugére é uma filósofa e escritora francesa, conhecida por seus estudos sobre ética e cuidado. Além de "A ética do cuidado", ela tem outros escritos relevantes no campo da ética, como "Ética do consumo" e "Ética do encontro". Sua abordagem acadêmica é pautada por uma análise crítica dos valores predominantes na sociedade contemporânea, propondo alternativas éticas e morais para as questões atuais.

No entanto, uma crítica acerca das informações coletadas é a falta de aprofundamento em certos aspectos. Embora a autora apresente uma visão geral da evolução histórica e cultural do cuidado, alguns leitores podem sentir falta de um embasamento mais teórico e de exemplos concretos. Algumas críticas disponíveis na internet acerca da obra culpabiliza a escrita por se tornar genérica e pouco fundamentada, sendo apenas fruto de diversos recortes de pesquisas e textos acadêmicos americanos existentes, porém, eu discordo em todas as nuances. Além disso, algumas conexões entre os aspectos mencionados, como os históricos, sociais e políticos, poderiam ser melhor exploradas, a fim de fornecer um panorama mais completo e coeso. No entanto, considerando a ampla gama de temas abordados, é compreensível que a obra não possa aprofundar-se em todos os aspectos mencionados. Podemos chegar a conclusão de que a obra de Brugére, ainda que falha em alguns tópicos, é primordial e essencial para leitura de todos os que desejam se aprofundar neste novo campo de estudo: o cuidado.

[RESENHA #954] Minha vida [mein kampf], de Adolf Hitler

Mein Kampf é um livro escrito por Adolf Hitler, líder do Partido Nazista na Alemanha. O livro é uma mistura de autobiografia e manifesto político, no qual Hitler expõe sua ideologia antissemita e racista, e seus planos para o futuro da Alemanha. O livro foi publicado em dois volumes, em 1925 e 1926, e teve milhões de cópias vendidas e traduzidas para várias línguas12

O primeiro volume, intitulado Die Abrechnung (“A Acerto de Contas” ou “A Vingança”), foi escrito em 1924, quando Hitler estava preso após uma tentativa fracassada de golpe de Estado em Munique. Nesse volume, Hitler conta sobre sua juventude, a Primeira Guerra Mundial, e o “traidor” da Alemanha em 1918. Ele também expressa sua visão racista, identificando o ariano como a “raça genial” e o judeu como o “parasita”, e declara a necessidade dos alemães buscarem espaço vital (Lebensraum) no Leste, à custa dos eslavos e dos odiados marxistas da Rússia. Ele também pede vingança contra a França12

O segundo volume, intitulado Die Nationalsozialistische Bewegung (“O Movimento Nacional-Socialista”), foi escrito após a libertação de Hitler em dezembro de 1924. Nesse volume, Hitler descreve o programa político, incluindo os métodos terroristas, que o nacional-socialismo deve seguir tanto para conquistar o poder quanto para exercê-lo depois na nova Alemanha12

RESENHA

A resenha a seguir é apenas informativa. Não apoiamos, concordamos ou endossamos seu conteúdo. O post literal se isenta de quaisquer responsabilidades acerca do conteúdo aqui mencionado. A leitura requer atenção. O livro foi escrito e publicado em um contexto histórico específico, marcado pela humilhação da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, pela crise econômica e social, e pelo surgimento de movimentos nacionalistas e autoritários. Ele reflete a visão de mundo distorcida e fanática de Hitler, que se baseava em teorias pseudocientíficas e racistas, e que buscava justificar a violência e a opressão contra aqueles que ele considerava inferiores ou inimigos. A leitura desta resenha não tem como objetivo promover ou endossar o conteúdo do mesmo, mas sim oferecer uma oportunidade de compreender melhor a mente e a personalidade de um dos maiores vilões da história, e de aprender com os erros e os horrores do passado. O livro deve ser lido com espírito crítico e com consciência dos valores democráticos e humanitários que devem nortear a nossa sociedade.

Mein Kampf é o livro que revela a mente e as intenções de Adolf Hitler, o líder do partido nazista e o responsável pelo maior genocídio e pela maior guerra da história. O livro foi escrito em dois volumes, publicados em 1925 e 1926, respectivamente. O primeiro volume foi escrito na prisão, após o fracasso de uma tentativa de golpe de Estado em 1923, e o segundo volume foi escrito após a soltura de Hitler, em 1924.


No dia 1.° de abril de 1924, por força de sentença do Tribunal de Munique, tinha eu entrado no presídio militar de Landsberg sobre o Lech. Assim se me oferecia, pela primeira vez, depois de anos de ininterrupto trabalho, a possibilidade de dedicar-me a uma obra, por muitos solicitada e por mim mesmo julgada conveniente ao movimento nacional socialista. Decidi-me, pois, a esclarecer, em dois volumes, a finalidade do nosso movimento e, ao mesmo tempo, esboçar um quadro do seu desenvolvimento. Nesse trabalho aprender-se-á mais do que em uma dissertação puramente doutrinária. Apresentava-se-me também a oportunidade de dar uma descrição de minha vida, no que fosse necessário à compreensão do primeiro e do segundo volumes e no que pudesse servir para destruir o retrato lendário da minha pessoa feito pela imprensa semítica. Com esse livro eu não me dirijo aos estranhos mas aos adeptos do movimento que ao mesmo aderiram de coração e que aspiram esclarecimentos mais substanciais. Sei muito bem que se conquistam adeptos menos pela palavra escrita do que pela palavra falada e que, neste mundo, as grandes causas devem seu desenvolvimento não aos grandes escritores mas aos grandes oradores. Isso não obstante, os princípios de uma doutrinação devem ser estabelecidos para sempre por necessidade de sua defesa regular e contínua. Que estes dois volumes valham como blocos com que contribuo à construção da obra coletiva. [p.4]

O livro tem como pano de fundo o contexto histórico da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, quando o país estava em crise econômica, social e política, e sofria as imposições do Tratado de Versalhes. Hitler aproveita esse cenário para desenvolver sua ideologia nazista, baseada no racismo, no antissemitismo, no nacionalismo, e no autoritarismo. Hitler atribui a culpa pela derrota da Alemanha aos judeus e aos comunistas, que ele considera inimigos da raça ariana, e defende a necessidade de conquistar espaço vital (Lebensraum) no Leste, eliminando ou escravizando os povos que lá vivem, especialmente os eslavos e os russos. Hitler também expressa seu ressentimento e sua hostilidade contra a França, que ele queria vingar-se.

Na primavera de 1912 fui definitivamente para Munique. Aquela cidade parecia-me tão familiar como se eu tivesse morado há longo tempo dentro de seus muros. Isso provinha do fato de que os meus estudos a cada passo se reportavam a essa metrópole da arte alemã. Quem não conhece Munique não viu a Alemanha, quem não viu Munique não conhece a arte alemã [...] Por isso, a única esperança de realizar a Alemanha uma política territorial sadia está na aquisição de novas terras na própria Europa. As colônias são inúteis para esse fim, por parecerem impróprias para o estabelecimento de europeus em grande número. Entretanto, no século dezenove, já não era mais possível adquirir, por métodos pacíficos, tais territórios para efeitos de colonização. Uma política de colonização dessa espécie só poderia ser realizada por meio de uma luta áspera, que seria mais razoável se aplicada na obtenção de território no continente, próximo da pátria, de preferência a quaisquer regiões fora da Europa. (p.92]

O livro também explica o programa político do nazismo, que Hitler criou como uma alternativa ao comunismo e à democracia. Hitler descreve os princípios, os objetivos, e os métodos do movimento nacional-socialista, que ele comandava desde 1921. Hitler defende o uso da propaganda, da violência, e da manipulação das massas para alcançar o poder e para exercê-lo de forma ditatorial e totalitária. Hitler também ataca os partidos políticos, as instituições, e as personalidades que ele considera corruptas, fracas, ou traidoras da Alemanha, e que ele planeja eliminar ou submeter. Hitler também manifesta sua ambição de tornar a Alemanha uma potência mundial, capaz de dominar a Europa e de desafiar os Estados Unidos.

O estilo de Mein Kampf é confuso, repetitivo, errante, ilógico, e cheio de erros gramaticais, refletindo a falta de educação formal e de revisão do autor. O livro é considerado um dos mais infames e perigosos da história, por conter as ideias e os planos que Hitler tentou realizar quando chegou ao poder, causando a morte de milhões de pessoas e a destruição de grande parte da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. O livro é proibido em alguns países, e sua leitura deve ser feita com espírito crítico e com consciência dos valores democráticos e humanitários que devem nortear a nossa sociedade.

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