Resenha: A ligação, de Katharina Volckmer

O romance "A ligação" (2023), da escritora alemã Katharina Volckmer, é uma obra que se destaca pela sua abordagem inovadora e provocativa de temas complexos relacionados à identidade, sexualidade e isolamento social. A história se desenrola em torno de Jimmie, um personagem complexo e multifacetado que trabalha em um call center de uma agência de viagens em Londres. Jimmie é um indivíduo que carrega consigo uma série de traumas e inseguranças, resultado de sua relação conturbada com a mãe e de sua própria luta para encontrar um lugar no mundo, sendo um garoto gay e gordo.

Um dos temas centrais do romance é a exploração da sexualidade e da intimidade em um contexto de solidão e alienação social. Jimmie, sente-se deslocado e incompreendido, encontra refúgio e conexão em suas interações telefônicas com estranhos, incluindo uma conversa erótica com um homem chamado Alex. Essa dinâmica revela a necessidade de Jimmie de se sentir aceito e valorizado, mesmo que de forma virtual e efêmera.

Outro tema fundamental é a questão da identidade e da pertença cultural. Jimmie, filho de imigrantes italianos, luta constantemente com sua própria compreensão de identidade, oscilando entre a herança cultural de seus pais e a realidade de sua vida na Inglaterra. Essa tensão é exacerbada pela forma como a sociedade o percebe e o julga, levando-o a questionar seu lugar nela.

O enredo é permeado por elementos simbólicos e metafóricos que amplificam a complexidade dos temas abordados. Por exemplo, a obsessão de Jimmie com a cor laranja, que permeia diversos aspectos de sua vida, pode ser interpretada como uma representação de sua própria condição de marginalidade e desconforto com o mundo que o cerca.

A narrativa de "A ligação" é construída de forma não linear, com constantes saltos temporais e alternância entre diferentes perspectivas. Essa estrutura fragmentada reflete a natureza fragmentada da própria identidade de Jimmie, bem como a maneira como ele experimenta o mundo ao seu redor. O estilo de escrita de Volckmer é marcado por uma prosa densa e evocativa, repleta de imagens poderosas e linguagem simbólica. A autora habilmente entrelaça elementos realistas com toques de fantasia e surreal, criando uma atmosfera que oscila entre o mundano e o transcendental.

Uma das características notáveis do romance é a forma como Volckmer manipula a linguagem para refletir os estados emocionais de Jimmie. A alternância entre passagens de intensa intimidade e momentos de distanciamento emocional espelha a jornada do personagem em busca de conexão e aceitação.

"A ligação" se destaca como uma obra significativa no panorama da literatura contemporânea, abordando temas complexos e relevantes de maneira inovadora e desafiadora. A narrativa de Volckmer se insere em um contexto mais amplo de obras que exploram a questão da identidade, sexualidade e marginalidade social, contribuindo para um diálogo importante sobre essas temáticas.

A complexidade dos personagens e a riqueza simbólica da narrativa convidam o leitor a uma leitura atenta e reflexiva. O romance desafia as noções convencionais de normalidade e convida o público a questionar suas próprias percepções e preconceitos.

Além disso, a obra de Volckmer se destaca por sua maestria estilística, demonstrando a habilidade da autora em manipular a linguagem para criar uma experiência literária imersiva e envolvente. Sua prosa poética e sua capacidade de capturar a essência da experiência humana a tornam uma voz relevante no cenário literário contemporâneo.

"A ligação" de Katharina Volckmer é um romance que se destaca pela sua abordagem inovadora e provocativa de temas complexos relacionados à identidade, sexualidade e isolamento social. Através de uma narrativa fragmentada e uma prosa evocativa, a autora cria uma obra que convida o leitor a uma reflexão profunda sobre a natureza da conexão humana e a busca por pertencimento em um mundo cada vez mais fragmentado. Essa obra merece atenção e destaque no campo da literatura contemporânea

Resenha: As Crianças Esquecidas de Hitler, de Ingrid Von Oelhafen



APRESENTAÇÃO

As garras do nazismo foram tão profundas, amplas e duradouras que ainda hoje nos surpreendemos com detalhes dos seus horrores. O programa Lebensborn, criado por Heinrich Himmler, foi responsável pelo rapto de nada menos que meio milhão de crianças por toda a Europa. Esperava-se que, depois de passar por um processo de “germanização”, elas se tornassem a geração seguinte da “raça superior” ariana. Foi assim que Erika Matko tornou-se Ingrid von Oelhafen. Com um texto que remete aos bons livros de suspense, acompanhamos Ingrid desvendando seu passado – e toda a dimensão monstruosa do programa Lebensborn e sua consequência na vida de tantos inocentes. Embora os nazistas tenham destruído muitos registros, Ingrid descobriu documentos raros sobre o programa, incluindo depoimentos do julgamento de Nuremberg.

RESENHA

O livro "As Crianças Esquecidas de Hitler: A Verdadeira História do Programa Lebensborn", de Ingrid von Oelhafen e Tim Tate, apresenta uma narrativa fascinante e perturbadora sobre o programa nazista de eugenia e raça pura. Como filha de uma mulher que foi parte do programa Lebensborn, Ingrid von Oelhafen embarca em uma jornada pessoal para desvendar suas próprias origens e entender as implicações desse programa obscuro.

O livro acompanha a vida de Ingrid, que nasce durante a Segunda Guerra Mundial com o nome de Erika Matko. Ela é retirada de sua família biológica na Iugoslávia e adotada por uma família alemã, os Von Oelhafen, como parte do programa Lebensborn. Criada com a identidade de Ingrid, ela cresce sem saber de suas verdadeiras origens.

Ao longo da narrativa, Ingrid busca desvendar o mistério de sua identidade. Ela descobre que o Lebensborn era um programa nazista secreto, criado por Heinrich Himmler, com o objetivo de gerar uma nova raça ariana dominante. Crianças consideradas racialmente "valiosas" eram retiradas de seus pais em países ocupados e levadas para casas Lebensborn, onde eram cuidadas e posteriormente adotadas por famílias alemãs selecionadas.

Ingrid se vê confrontada com a realidade de ter sido uma dessas crianças, e sua jornada a leva a investigar os registros do Lebensborn, os arquivos nazistas e a entrar em contato com outras vítimas do programa. Essa busca a ajuda a reconstruir sua própria história e a entender as implicações do experimento eugênico nazista.

O livro de Ingrid von Oelhafen e Tim Tate se destaca por sua abordagem profundamente pessoal e emocional do tema. Ao narrar sua própria história, Ingrid confere uma humanidade e uma perspectiva única à narrativa, evitando um tratamento meramente histórico ou factual.

A obra é notável pela riqueza de detalhes e pela minuciosa pesquisa realizada pelos autores. Eles conseguem reconstruir o funcionamento do programa Lebensborn, suas motivações ideológicas e suas práticas cruéis, com base em documentos históricos, depoimentos de sobreviventes e registros oficiais.

O livro também aborda de forma relevante as consequências psicológicas e emocionais do programa Lebensborn para as crianças envolvidas. Ao explorar a jornada de Ingrid em busca de sua identidade, os autores destacam o impacto duradouro que essa experiência traumática teve em sua vida.

Além disso, a obra contextualiza o Lebensborn dentro do amplo projeto nazista de purificação racial e dominação. Ela demonstra como esse programa se inseria em uma ideologia mais ampla de superioridade ariana e de eliminação de "raças inferiores", contribuindo para uma compreensão mais abrangente do Holocausto e dos crimes cometidos pelo regime nazista.

"As Crianças Esquecidas de Hitler" é uma obra impactante e reveladora que merece atenção da comunidade acadêmica. Ao combinar a narrativa pessoal de Ingrid von Oelhafen com uma rigorosa pesquisa histórica, os autores conseguem trazer à tona um episódio obscuro e pouco conhecido do Terceiro Reich, lançando luz sobre as consequências humanas desse experimento eugênico.

O livro se destaca por sua abordagem sensível e empática, que humaniza as vítimas do Lebensborn e contribui para uma compreensão mais profunda das atrocidades cometidas durante o regime nazista. Trata-se de uma leitura essencial para estudiosos da história do Holocausto, da ideologia racial e dos crimes de guerra.

Resenha: O Último Tiro da Guanabara, de Bruna Meneguetti



APRESENTAÇÃO

O Último Tiro da Guanabara é um romance histórico que mostra as intrigas e os bastidores que levaram ao Golpe Preventivo liderado pelo general Lott em novembro de 1955. Após a vitória de Juscelino Kubitschek e João Goulart nas eleições de 1955, Carlos Luz, Café Filho e Carlos Lacerda articulam um golpe para impedir a posse dos eleitos. Para prevenir os passos dos adversários, JK e Jango contratam o vidente Isaías, que terá papel fundamental para impedir o golpe. O romance narra um momento importante da História, que poderia ter antecipado a ditadura militar em nove anos, no ponto de vista de um vidente cego. Isaías interfere diretamente nos fatos históricos, ajudando o general Lott a adotar uma postura em defesa da Constituição e da posse do presidente eleito. Os limites entre a ficção e a História é o grande dilema do romancista histórico. Até que ponto o ficcionista pode alterar a História Oficial? O chamado novo romance histórico latino-americano, inaugurado por Alejo Carpentier, tem como principal característica possibilitar ao escritor questionar os documentos oficiais e fazer sua própria versão da História. Filiando-se à tradição do romance histórico latino-americano, Bruna Meneguetti não se atém às amarras do romance histórico clássico. Com intenso trabalho de pesquisa, a autora reconstrói o Brasil dos anos 1950, preenchendo as lacunas e recontando a História Oficial. O Último Tiro da Guanabara é bem-sucedido ao trazer à tona um episódio pouco conhecido da História do Brasil de maneira bem-humorada, fluida e instigante.

RESENHA

O romance "O Último Tiro da Guanabara", de Bruna Meneguetti, apresenta uma narrativa complexa e bem fundamentada historicamente sobre os eventos políticos que marcaram a transição de governo no Brasil entre 1955 e 1956. Ambientado em um período de grande instabilidade e disputas pelo poder, o livro retrata de forma envolvente os bastidores das articulações entre políticos, militares e grupos de interesses diversos que buscavam influenciar o rumo dos acontecimentos.

A trama gira em torno da figura de Isaías Monteiro, um vidente cego que se vê envolvido nesse jogo político devido a seus dons especiais. Isaías possui a habilidade de enxergar os símbolos e cores que emanam das pessoas, revelando seus pensamentos, sentimentos e até mesmo o futuro. Essa característica faz com que ele se torne um ator central nos eventos que se desenrolam, pois tanto Juscelino Kubitschek quanto Carlos Luz buscam seus serviços para tentar prever e manipular os rumos da crise.

Além de Isaías, a narrativa apresenta uma série de personagens históricos relevantes, como o general Henrique Lott, o presidente Café Filho, o deputado Carlos Lacerda e o coronel José Bittencourt, entre outros. Esses indivíduos são retratados de forma complexa, com suas motivações, dilemas e ambiguidades, conferindo verossimilhança ao enredo.

Um dos elementos de destaque no livro é a personagem de Cecília Gomes, uma camareira que também se envolve nos acontecimentos devido à sua proximidade com Isaías. Cecília representa a perspectiva dos setores populares e das mulheres, que buscam formas de intervir e influenciar os rumos da crise política, mesmo diante das limitações impostas pela sua condição social e de gênero.

O romance de Bruna Meneguetti demonstra um profundo conhecimento dos eventos históricos que marcaram o período, recorrendo a diversas fontes primárias e secundárias para recriar com precisão o contexto político da época. Questões como o suicídio de Getúlio Vargas, a crise que levou à renúncia de Café Filho, as disputas entre a UDN e o PSD, as articulações dos militares e a posse de Juscelino Kubitschek são abordadas de forma detalhada e bem fundamentada.

Além disso, a autora consegue entrelaçar de maneira orgânica os fatos históricos com a trama ficcional, explorando de forma crítica as motivações, interesses e jogos de poder que permeavam a política brasileira naquele momento. Temas como a fragilidade da democracia, o papel das Forças Armadas, a influência dos grupos econômicos e a manipulação da opinião pública são abordados com nuance e profundidade.

Do ponto de vista formal, o romance apresenta uma estrutura narrativa complexa, com múltiplas perspectivas e saltos temporais. A autora utiliza recursos como a alternância entre capítulos com datas específicas, flashbacks e a inserção de documentos históricos (como cartas e notícias de jornais) para construir uma trama envolvente e repleta de reviravoltas.

A linguagem empregada é cuidadosa e precisa, com descrições detalhadas dos ambientes, das ações e dos estados mentais dos personagens. O uso do ponto de vista do vidente Isaías, que enxerga o mundo de forma sinestésica através de cores e símbolos, confere à narrativa uma dimensão simbólica e metafórica, enriquecendo a compreensão dos conflitos e tensões apresentados.

"O Último Tiro da Guanabara" é uma obra de ficção histórica de alta qualidade, que consegue aliar o rigor da pesquisa acadêmica com a criatividade e o envolvimento da narrativa literária. A autora demonstra um domínio impressionante dos eventos políticos da época, transformando-os em uma trama complexa e instigante, que convida o leitor a refletir sobre os meandros do poder e os desafios da democracia brasileira.

O romance de Bruna Meneguetti se destaca como uma contribuição relevante para a compreensão desse importante momento da história do país, oferecendo uma perspectiva ficcional que complementa e enriquece o entendimento dos fatos históricos. Trata-se, portanto, de uma leitura obrigatória para aqueles interessados em explorar as nuances e os bastidores da política brasileira do século XX.

Resenha: Além do rio dos sinos, de Menalton Braff


O romance "Além do Rio dos Sinos", de Menalton Braff, é uma obra que se destaca pela riqueza de seu enredo e pela profundidade com que aborda temas fundamentais da condição humana. Publicado em 2020, o livro nos convida a adentrar no universo de uma família que enfrenta desafios e transformações em meio a um cenário marcado pela adversidade e pela luta pela sobrevivência.

O enredo de "Além do Rio dos Sinos" se desenvolve em torno da família Teixeira, que vive no alto do Morro do Caipora, em uma região remota e de difícil acesso. A narrativa acompanha as vicissitudes enfrentadas por essa família ao longo de várias décadas, desde a chegada forçada ao morro, passando pela partida do patriarca Nicanor, até a consolidação de Florinda como a matriarca que deve garantir a subsistência do grupo.

Um dos aspectos mais notáveis do enredo é a forma como Braff tece uma trama complexa, entrelaçando os destinos dos diferentes membros da família. Cada personagem é dotado de uma personalidade única e enfrenta desafios que se inter-relacionam, criando um tapete narrativo denso e multifacetado. A partida de Nicanor, por exemplo, desencadeia uma série de consequências que impactam profundamente a vida de Florinda e seus filhos, obrigando-os a se reinventar e a lutar pela sobrevivência.

Outro elemento relevante do enredo é a forma como Braff articula o individual e o coletivo, explorando as tensões e os conflitos que emergem no seio da família. As relações entre os irmãos, as disputas de poder, os ressentimentos e as tentativas de reconciliação são retratados com maestria, revelando a complexidade das dinâmicas familiares.

Além disso, o enredo também se destaca pela maneira como aborda questões sociais e históricas mais amplas, como as transformações políticas e econômicas que atingem o país durante o período retratado. A chegada da luz elétrica, as convulsões sociais e a presença do Estado, com suas forças repressivas, são elementos que se entrelaçam à trajetória da família Teixeira, conferindo ao romance uma dimensão social e política relevante.

A construção narrativa de "Além do Rio dos Sinos" é marcada pela alternância de perspectivas e pela utilização de múltiplas vozes. Braff adota uma estratégia narrativa que transita entre a onisciência do narrador e a focalização interna, permitindo que o leitor tenha acesso aos pensamentos, sentimentos e motivações de diferentes personagens.

Essa abordagem polifônica enriquece a narrativa, conferindo-lhe uma riqueza de nuances e uma profundidade psicológica notáveis. O leitor é convidado a compreender as diversas visões de mundo que coexistem no seio da família, explorando as tensões e os conflitos que emergem dessa pluralidade de perspectivas.

Outro aspecto relevante da construção narrativa é a forma como Braff articula o tempo da narrativa, transitando entre o presente, o passado e o futuro. Essa fluidez temporal permite que o leitor tenha uma visão ampla da trajetória da família, compreendendo as raízes de seus conflitos e as projeções de seus destinos.

Além disso, a linguagem utilizada por Braff é marcada por uma riqueza expressiva, com uma prosa cuidadosamente construída, repleta de metáforas, imagens e ritmos que conferem à narrativa uma dimensão poética. Essa dimensão estética se harmoniza com a profundidade temática, enriquecendo a experiência de leitura.

Em "Além do Rio dos Sinos", Menalton Braff tece um enredo complexo e multifacetado, explorando as vicissitudes de uma família em meio a um cenário de adversidade e transformação. O romance se destaca pela riqueza de sua construção narrativa, com a alternância de perspectivas e a fluidez temporal, bem como pela profundidade com que aborda temas fundamentais da condição humana.

Ao longo da narrativa, o leitor é convidado a mergulhar no universo da família Teixeira, acompanhando suas lutas, seus conflitos e suas tentativas de sobrevivência. Essa jornada revela-se não apenas como um retrato de uma realidade particular, mas também como um espelho que reflete questões sociais, políticas e existenciais mais amplas.

Enfim, "Além do Rio dos Sinos" é uma obra que se impõe como uma leitura essencial, não apenas pelo seu valor literário, mas também por sua capacidade de nos confrontar com os desafios e as complexidades da vida

Resenha: Ossada perpétua, de Anna Kuzminska

"Ossada Perpétua" de Anna Kuzminska é uma obra literária que transcende os limites do gênero, mesclando elementos de ficção, poesia e diários de quarentena. O livro apresenta uma narrativa intricada, explorando temas profundos como luto, isolamento e a relação entre os vivos e os mortos. Através de uma prosa poética e fragmentada, a autora conduz o leitor em uma jornada emocional que desafia as noções convencionais de realidade e existência.

A narrativa de "Ossada Perpétua" é apresentada em uma estrutura não linear, com diferentes camadas que se entrelaçam. O ponto de partida é o sonho da mãe da narradora, que acredita que o pai falecido está sofrendo e precisa ser resgatado de seu local de descanso. Essa premissa desencadeia uma série de eventos que envolvem a família, à medida que eles se reúnem para lidar com a situação inusitada.

Ao longo da obra, o leitor é apresentado a uma série de memórias e reflexões da narradora, que explora sua relação com a mãe e a forma como ela lida com a ausência do pai. Essas lembranças são intercaladas com fragmentos dos diários de quarentena da autora, que oferecem uma perspectiva paralela e contemplativa sobre temas como a morte, a mudança e a busca pela própria identidade.

A estrutura fragmentada do livro reflete a natureza caótica e imprevisível da experiência humana. Cada capítulo ou seção apresenta uma perspectiva única, desafiando o leitor a construir uma compreensão holística da narrativa. Essa abordagem não linear permite que a autora explore a complexidade das emoções e das relações familiares, evitando respostas simplistas ou conclusões definitivas.

Um dos temas centrais de "Ossada Perpétua" é o luto e a forma como ele molda a experiência dos personagens. A ausência do pai é sentida de maneiras distintas por cada membro da família, revelando as diferentes formas pelas quais as pessoas lidam com a perda e a saudade. A narradora, em particular, luta para encontrar um significado na morte do pai e para aceitar a sua partida.

Outro tema proeminente é o isolamento e a dificuldade de se comunicar. Tanto a mãe quanto a narradora parecem estar aprisionadas em seus próprios mundos interiores, incapazes de se conectar plenamente com os outros. O silêncio e a falta de compreensão mútua são apresentados como barreiras que impedem a cura e a reconciliação.

Além disso, a obra explora a relação entre os vivos e os mortos, questionando as noções convencionais sobre a finitude da existência. A crença da mãe de que o pai está sofrendo e precisa ser resgatado desafia as fronteiras entre a vida e a morte, convidando o leitor a refletir sobre a natureza da realidade e a possibilidade de uma conexão transcendental.

A linguagem utilizada em "Ossada Perpétua" é marcada por uma beleza poética e uma profundidade introspectiva. A autora emprega uma prosa lírica e evocativa, com uma riqueza de imagens e metáforas que transportam o leitor para o universo emocional dos personagens.

O estilo fragmentado da narrativa, com alternância entre prosa e poesia, reflete a natureza fragmentada da experiência humana. As seções de diários de quarentena, em particular, oferecem uma perspectiva íntima e confessional, permitindo que o leitor se aproxime dos pensamentos e sentimentos da autora.

"Ossada Perpétua" é uma obra literária de grande complexidade e profundidade. Através de uma narrativa não linear e uma linguagem poética, a autora Anna Kuzminska explora temas universais como luto, isolamento e a relação entre os vivos e os mortos. A estrutura fragmentada do livro desafia o leitor a construir sua própria compreensão da história, convidando-o a refletir sobre a natureza da realidade e a busca pelo significado na vida.

Resenha: História do Café, de Ana Luiza Martins

APRESENTAÇÃO

Este delicioso livro narra a trajetória de aventura e ousadia da mais saborosa e conhecida bebida negra em todo o mundo: o café. Desde sua descoberta, a Coffea arabica traçou novas rotas comerciais, criou espaços de sociabilidades até então inexistentes, estimulou movimentos revolucionários, inspirou a literatura e a música, desafiou monopólios consagrados e tornou-se o elixir do mundo moderno, consolidando as cafeterias como referência de convívio, debate e lazer. Com charme, elegância e bom humor, a historiadora Ana Luiza Martins conta a trajetória do café, das origens como planta exótica no Oriente à transformação em produto de consumo internacional. A autora analisa também como o café no Brasil transformou-se na semente que veio para ficar e marcar a nossa história. Mais do que uma atitude simpática de bom anfitrião, oferecer um café é proporcionar uma das mais prestigiosas formas de convívio social que nos é dado a conhecer. Um simples gole dessa bebida torna você, leitor, parte de uma imensa cadeia de produção, embalada em muita aventura e ousadia. Venha tomar uma xícara com a gente.

RESENHA

A obra "História do Café" de Ana Luiza Martins é um abrangente e detalhado relato sobre a trajetória do café no Brasil, desde suas origens até os tempos atuais. A autora aborda de forma minuciosa as diversas etapas e transformações pelas quais passou a cultura cafeeira, destacando seu papel central no desenvolvimento econômico, social e político do país.

No primeiro capítulo, intitulado "Origens", a autora traça a história da planta do café, sua descoberta na África e posterior disseminação pelo Oriente Médio e Europa. Ela destaca a importância da Arábia, em particular do Iêmen, no cultivo e comercialização inicial do produto, bem como o papel dos árabes na difusão do hábito de consumir a bebida. Martins também analisa a chegada do café ao Brasil, por meio da ação de Francisco de Melo Palheta, e sua lenta, porém gradual, propagação pelas regiões norte e nordeste do país durante o período colonial.

No segundo capítulo, "Império do Café", a autora aborda a ascensão da cultura cafeeira no Brasil, especialmente no século XIX, quando o produto se torna o principal sustentáculo da economia imperial. Ela descreve a expansão geográfica dos cafezais, partindo do Vale do Paraíba fluminense e paulista em direção ao oeste paulista e Minas Gerais. Martins também analisa o papel político e social desempenhado pelos cafeicultores, que se consolidaram como uma poderosa elite oligárquica durante o Império. Nesse contexto, a autora destaca a incorporação do símbolo do café no brasão nacional, em 1822, como forma de legitimar sua importância.

No terceiro capítulo, "República do Café", a autora examina a continuidade da hegemonia cafeeira durante a Primeira República, quando o produto manteve sua posição de destaque na pauta de exportações brasileiras. Martins analisa as diversas intervenções governamentais para a valorização do café, como o Convênio de Taubaté e a atuação do Instituto Brasileiro do Café (IBC), bem como os impactos dessas políticas na economia e sociedade do país. Ela também discute a crise de 1929 e suas consequências dramáticas para a classe cafeicultora.

No quarto e último capítulo, "Goles Finais de uma História", a autora aborda os desdobramentos mais recentes da cultura cafeeira no Brasil, destacando a diversificação da produção, a busca pela qualidade e a introdução de novas tecnologias. Martins também analisa o impacto de políticas governamentais, como o Pró-Álcool, na transformação da paisagem cafeeira paulista, bem como a ascensão de outras regiões produtoras, como o Espírito Santo, Goiás e Bahia. Além disso, ela discute a relevância do café solúvel e as mudanças nos hábitos de consumo da bebida.

Em síntese, a obra de Ana Luiza Martins apresenta uma abordagem ampla e aprofundada sobre a história do café no Brasil, abrangendo desde suas origens até os desafios e transformações mais recentes. A autora demonstra domínio do tema, articulando de forma coesa e coerente os diversos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais que permearam a trajetória dessa importante commodity. A riqueza de detalhes e a diversidade de fontes utilizadas conferem à obra grande valor acadêmico e historiográfico, fazendo dela uma referência indispensável para o estudo da história do café no país.

Resenha: Doenças e Curas: O Brasil nos Primeiros Séculos, de Cristina Gurgel

 

APRESENTAÇÃO

Quais as doenças que afligiam índios e europeus nos primeiros séculos do Brasil? Como os nativos se defendiam de males até então desconhecidos por eles, como gripe e sarampo? A pesquisadora e médica Cristina Gurgel nos mostra um capítulo importante da História do Brasil, o encontro (e desencontro) de duas culturas sob a ótica das doenças e dos males que afetaram seus habitantes.Ao contrário do que se propaga, a autora defende a ideia de que os princípios terapêuticos básicos da medicina indígena e europeia tinham muito em comum. Ambos os povos possuíam uma concepção da doença como uma invasora, sendo, portanto, necessário forçar sua saída do organismo. Para que isso ocorresse, empregavam-se cerimônias e substâncias que diferiram conforme a cultura e a disponibilidade e qualidade de matérias-primas medicamentosas. Valiam-se igualmente de rezas, vomitórios, purgantes e sangrias. Assim, quando ambas as medicinas - europeia e indígena - se uniram, não houve um grande choque cultural, mas uma complementação, que fez surgir a autêntica medicina popular brasileira.Repleto de imagens e boxes explicativos, Doenças e curas é imperdível para quem quer conhecer melhor o início - doloroso - da nossa História.

RESENHA

O livro "Doenças e Curas: O Brasil nos Primeiros Séculos" de Cristina Gurgel é uma obra que se propõe a estudar a história da medicina e das doenças no período colonial brasileiro. A autora parte do pressuposto de que as doenças e as práticas médicas exerceram um papel fundamental na conformação da sociedade colonial, influenciando não apenas os aspectos demográficos, mas também os âmbitos socioeconômico, político e cultural.

Nos primeiros capítulos, Gurgel aborda as teorias sobre as origens dos povos ameríndios e as consequências biológicas do isolamento geográfico desses grupos. A autora discute as evidências arqueológicas e paleoparasitológicas que apontam para a presença de parasitas intestinais nas populações pré-colombianas, bem como a hipótese de que a ausência de animais domésticos tenha sido um fator determinante para a fragilidade imunológica desses povos diante de doenças infectocontagiosas.

Em seguida, Gurgel apresenta um panorama da sociedade indígena brasileira nos séculos XVI e XVII, com ênfase nas práticas médicas e nas enfermidades que acometiam essas populações. A autora destaca a diversidade cultural entre os diferentes grupos, bem como a importância dos pajés e da utilização de recursos da flora nativa no tratamento de doenças. Ademais, são discutidas as possíveis causas da elevada mortalidade indígena frente a epidemias de doenças infecciosas trazidas pelos colonizadores.

O quarto capítulo aborda as consequências da expansão marítima europeia para a saúde das populações envolvidas. Gurgel analisa as precárias condições de higiene e alimentação a bordo das embarcações, bem como a disseminação de doenças infectocontagiosas, como o escorbuto e o tifo, entre os tripulantes. A autora também discute o papel desempenhado pela medicina popular e erudita no tratamento desses males.

Neste capítulo, Gurgel se debruça sobre o choque entre os universos culturais indígena e europeu, com ênfase nos impactos da colonização sobre a saúde e a organização social dos povos nativos. A autora analisa a descrição feita por Pero Vaz de Caminha sobre o primeiro contato entre portugueses e indígenas, bem como o papel desempenhado pelos jesuítas na catequização e na assistência médica aos nativos.

Nos capítulos finais, Gurgel aborda as condições de saúde da população colonial, tanto nas vilas e cidades quanto nos sertões. A autora destaca a precariedade da assistência médica, a atuação de profissionais como boticários, barbeiros e cirurgiões, bem como a importância da medicina popular, que mesclava elementos das tradições indígena, africana e europeia.

Ao final do livro, Gurgel apresenta uma reflexão sobre a importância do estudo das doenças e das práticas médicas para a compreensão da história do Brasil colonial. A autora enfatiza que a medicina, longe de ser um campo neutro e ahistórico, esteve intrinsecamente relacionada aos processos sociais, econômicos e políticos que conformaram a sociedade brasileira nos primeiros séculos de colonização.

"Doenças e Curas: O Brasil nos Primeiros Séculos" é uma obra de grande relevância para o campo da história da medicina e da saúde pública no Brasil. Cristina Gurgel realiza uma abordagem interdisciplinar, articulando conhecimentos das áreas de história, antropologia, arqueologia e ciências da saúde, a fim de compreender as dinâmicas que envolveram as doenças e as práticas médicas no período colonial. A riqueza de fontes primárias e secundárias mobilizadas, bem como a clareza da exposição, tornam este livro uma leitura indispensável para pesquisadores e estudantes interessados na temática.

Resenha: Jornalismo Popular, de Márcia Franz Amaral

 

APRESENTAÇÃO

Jornalismo, para ser popular, precisa ser sensacionalista? Subestimar o leitor tem sido a prática de muitos veículos da mídia, mas este livro mostra a possibilidade e a necessidade de jornais populares de qualidade. Em uma pesquisa cuidadosa que foge das respostas óbvias, a autora discute os principais veículos e esclarece o que se espera de um bom jornalista que atue no meio.Em ampla expansão tanto na imprensa quanto na mídia eletrônica essa área - com redações que publicam matérias exclusivas, dão furos e ganham prêmios - representa um mercado de trabalho expressivo tanto para profissionais experientes quanto para jovens repórteres.

RESENHA

O livro "Jornalismo Popular", de Márcia Franz Amaral, publicado pela Editora Contexto em 2006, apresenta uma abordagem aprofundada e fundamentada sobre um segmento da imprensa que, embora tenha grande relevância no cenário midiático brasileiro, ainda é pouco estudado e compreendido pela academia: os jornais destinados às classes B, C e D.

A autora parte da constatação de que a noção de "sensacionalismo", comumente utilizada para caracterizar esse tipo de imprensa, é insuficiente e carregada de preconceitos. Amaral opta, então, pelo termo "jornalismo popular" por considerar que este melhor abarca as especificidades desse mercado e de seu público-alvo. Nessa perspectiva, o livro se propõe a discutir as estratégias e tendências dessa imprensa, buscando compreendê-la para além dos rótulos e estigmas que normalmente lhe são atribuídos.

Para tanto, a obra apresenta uma contextualização histórica do sensacionalismo na imprensa, desde seus primórdios no século XIX até sua chegada e consolidação no Brasil. Essa revisão bibliográfica permite à autora situar o surgimento e a evolução dos jornais populares em um quadro mais amplo, evidenciando como determinadas práticas e recursos narrativos remontam a matrizes culturais e estéticas consagradas, como o melodrama e o folhetim.

Ao analisar os principais jornais populares brasileiros, como O Dia, Extra e Diário Gaúcho, Amaral identifica as estratégias de aproximação com o leitor, que vão desde a linguagem simples e didática até a concessão de amplo espaço para a voz do público. Destaca-se, nesse sentido, o estudo de caso aprofundado sobre o Diário Gaúcho, que, segundo a autora, leva ao extremo certas características desse segmento, como a predominância de uma matriz dramática e folhetinesca.

Ao longo do texto, a pesquisadora problematiza a dicotomia entre a "imprensa de referência", voltada às classes A e B, e a "imprensa popular", destinada às camadas mais baixas da população. Enquanto a primeira se pauta pelo "interesse público", a segunda prioriza o "interesse do público", adotando enfoques, pautas e linguagens mais próximas da realidade concreta do leitor.

Nesse sentido, o livro apresenta uma reflexão aprofundada sobre as raízes culturais e históricas que embasam as estratégias de popularização da grande imprensa, evidenciando como elas se articulam a lógicas de mercado e a modos de representação do "popular" historicamente construídos.

Ao final, Amaral discute os desafios e possibilidades de um "jornalismo popular de qualidade", que consiga conciliar os interesses comerciais com compromissos éticos e sociais. Nessa perspectiva, a autora aponta caminhos e práticas que poderiam contribuir para a construção de uma imprensa popular mais responsável e comprometida com a formação cidadã de seu público.

Em suma, "Jornalismo Popular" se configura como uma obra de grande relevância para os estudos de jornalismo e comunicação no Brasil, na medida em que se debruça sobre um objeto pouco explorado, porém fundamental para a compreensão do cenário midiático contemporâneo. Trata-se de uma leitura obrigatória para pesquisadores, estudantes e profissionais interessados em refletir criticamente sobre as transformações pelas quais passa a grande imprensa nacional.

O livro aborda o segmento de jornais populares, destinados às classes B, C e D, que buscam se aproximar de camadas mais amplas da população. Esse tipo de imprensa vem se transformando, deixando de lado o sensacionalismo exacerbado para adotar estratégias de aproximação com o leitor por meio da prestação de serviços, do entretenimento e da linguagem mais próxima ao público.

O primeiro capítulo faz uma recuperação histórica do sensacionalismo na imprensa e discute o porquê de usar o termo "jornalismo popular" em vez de "sensacionalista". O segundo capítulo contextualiza o novo momento vivido pelos jornais, revistas e programas de TV voltados ao público popular. 

O terceiro capítulo apresenta uma reflexão sobre as diferenças entre a imprensa de referência, voltada às classes A e B, e a imprensa popular, que prioriza o interesse do público em detrimento do interesse público. O quarto capítulo aprofunda-se no estudo de caso do jornal Diário Gaúcho, que leva ao extremo algumas estratégias de aproximação com o leitor.

O quinto capítulo detalha práticas cotidianas do jornalismo popular, como o conhecimento do leitor, a mudança de pontos de vista, o cuidado com a linguagem e a adequação do projeto gráfico. Também aborda os riscos dessa popularização, como o excesso de dramatização e a prioridade para o interesse do público em detrimento do interesse público. Por fim, apresenta possibilidades de um jornalismo popular de qualidade.

Resenha: Flores da Batalha, de Sérgio Vaz

APRESENTAÇÃO

Flores da batalha, novo livro de Sergio Vaz da Global Editora, com apresentação de Emicida, é uma obra que fala sobre o coletivo – a luta coletiva do homem e da mulher preta, da galera que pega ônibus 5:30 da manhã todo dia para trabalhar, das pessoas que sonham e lutam todos os dias pelos seus ideais, mesmo que sejam negligenciadas pelo sistema.

Atualmente, não existe ninguém melhor para abordar esses temas na literatura contemporânea do que Vaz, também criador da Cooperifa.

Na apresentação, Emicida cita Mário de Andrade , que em 1924 clamou por um “Brasil com alma”, em uma carta para CarlosDrummond de Andrade. “Para isso todo sacrifício é grandioso e sublime”, completa.

Nas paisagens que moldam Flores da Batalha, mais uma vez São Paulo da zona sul.

Vaz achou na rua a oportunidade de se expressar, criando arte que fala com e para as pessoas que cresceram e são moldadas por experiências periféricas.

Dessa forma, a poesia da periferia, galgada pela voz do povo, se torna parte da rotina diária de milhares de brasileiros.

Ao apontar sua caneta para a rotina da periferia, o autor cria mais uma vertente do Brasil com a alma que Mário de Andrade citou, ao mesmo tempo em que faz poesia que, como diz o próprio Emicida , “tira a mordaça da alma” .

Responsável também por Flores de alvenaria, Literatura, pão e poesia e Colecionador de pedras, Sérgio Vaz cresce cada vez mais em território nacional, e soma sua arte com movimentos e eventos como a própria Cooperifa e até mesmo a Perifacon, que leva a cultura pop para os extremos de São Paulo, sempre democratizando o acesso a Literatura.

RESENHA

Flores da Batalha, lançado em 2023, é a mais recente obra poética de Sérgio Vaz, poeta e ativista cultural da periferia de São Paulo. Conhecido por sua atuação na Cooperifa, evento cultural que transformou um bar da zona sul da cidade em um espaço de encontro e difusão da poesia, Vaz consolida neste livro sua voz potente e engajada, que reflete sobre as lutas, dores e resistências do povo brasileiro, especialmente daqueles que vivem à margem da sociedade.

A obra se divide em diversas seções temáticas, perpassando tópicos como a importância da poesia, a denúncia das desigualdades sociais, a busca pela humanização das relações e a celebração da vida, mesmo diante das adversidades. Ao longo de seus poemas em prosa e versos livres, o autor constrói uma narrativa que convida o leitor a refletir sobre sua própria condição e a se engajar na luta por um mundo mais justo e solidário.

Já na apresentação do livro, escrita pelo rapper Emicida, é possível perceber a relevância da obra de Sérgio Vaz para a cultura periférica. Emicida destaca a capacidade do poeta em "transcender as palavras e fazer com que as pessoas entendam de uma vez por todas que a poesia já está na vida cotidiana", evidenciando sua habilidade em transformar o ordinário em extraordinário.

Ao longo do livro, Vaz explora diversos temas que permeiam a realidade das comunidades marginalizadas. Em "Confia no teu corre", por exemplo, o autor exorta o leitor a não se deixar abater pelas incertezas da vida, a perseguir seus sonhos e a manter-se firme em suas convicções, mesmo diante das adversidades. Já em "Vassouras do Tempo", o poema retrata a figura de um gari que, ao ser questionado sobre a sua alegria, responde que está "varrendo o passado", revelando a capacidade de transformar o trabalho árduo em uma forma de resistência e de superação.

A seção "Recado" traz um poema impactante sobre a execução sumária de um jovem morador de rua, evidenciando a violência e a desumanização que assolam as periferias. Nesse contexto, Vaz convida o leitor a refletir sobre a responsabilidade coletiva diante de tais tragédias, questionando o silêncio e a indiferença da sociedade.

"Flores da Batalha" é uma obra que ressalta a relevância da poesia contemporânea, ecoando a luta diária daqueles que permanecem firmes em seus princípios. Sérgio Vaz, um destacado poeta da periferia, comemora três décadas e meia de seu comprometido trabalho de transformação urbana através da arte das palavras. Este título é o segundo da coleção "Flores", que teve seu início com "Flores de Alvenaria", publicado em 2016. Por meio de sua escrita, Vaz oferece mais do que poesia; entrega um verdadeiro alimento espiritual que nutre a esperança e amplifica a voz de indivíduos frequentemente marginalizados.

As obras de Sérgio Vaz exploram de maneira rica e genuína tanto as vitórias quanto os desafios enfrentados na vida cotidiana das comunidades periféricas de São Paulo. O prefácio, assinado por Emicida, expõe como o labor de Vaz tem sido uma fonte de inspiração para muitos, inclusive o próprio Emicida, incentivando uma nova geração a se aventurar pela poesia e pela literatura, e a celebrar a força e a resiliência que permeiam a realidade das periferias.

O autor traça um paralelo entre sua própria trajetória e a do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, explorando a noção de que o crescimento nem sempre significa a perda da capacidade de sonhar e de se maravilhar com o mundo. Esse poema em prosa sugere que, mesmo diante das adversidades da vida adulta, é possível manter viva a chama da imaginação e da esperança.

Ao longo da obra, Vaz também aborda temas como a importância da democratização da literatura, a necessidade de se amar a si mesmo, a crítica à hipocrisia social e a celebração da diversidade e da solidariedade entre os membros da comunidade. Em "Fake News", por exemplo, o poeta desmonta uma série de estereótipos e preconceitos que circundam a periferia, reafirmando a humanidade e a dignidade de seus habitantes.

Destaca-se ainda a seção "Flores da Batalha", na qual o autor utiliza a metáfora da flor que cresce entre os escombros para simbolizar a resiliência e a beleza que podem brotar mesmo nos ambientes mais adversos. Essa imagem poderosa sintetiza a mensagem central do livro, que é a de valorizar a luta diária dos oprimidos e celebrar sua capacidade de transformar a dor em arte e em resistência.

Flores da Batalha se configura como uma obra de grande relevância no contexto da literatura engajada e da poesia periférica brasileira. Através de uma linguagem poética vibrante e de uma perspectiva profundamente enraizada na realidade das comunidades marginalizadas, Sérgio Vaz convida o leitor a refletir sobre as desigualdades sociais, a violência institucionalizada e a importância da solidariedade e da luta coletiva.

Ao retratar as dores, as conquistas e as esperanças do povo brasileiro, especialmente daqueles que vivem à margem da sociedade, o autor reafirma o poder transformador da poesia e sua capacidade de dar voz aos excluídos. Sua obra se destaca pela riqueza de suas reflexões, pela força de suas imagens e pela sua profunda conexão com as lutas e os anseios das periferias.

Assim, Flores da Batalha se apresenta como um importante registro da realidade social brasileira, bem como uma convocação para que cada leitor assuma seu papel na construção de um mundo mais justo e solidário. A leitura deste livro se revela, portanto, como uma experiência transformadora, que nos convida a repensar nossos próprios lugares e a nos engajarmos na construção de uma sociedade mais humana e inclusiva.

Resenha: ❛Projeto Querino, de Tiago Rogero



APRESENTAÇÃO

Depois do sucesso de crítica e público dos podcasts Vidas Negras e Negra Voz, Tiago Rogero se consolidou como um dos principais nomes do jornalismo brasileiro com o projeto Querino, empreitada de fôlego que chega agora em sua terceira fase com a publicação do livro projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil. Baseado no 1619 Project, trabalho da jornalista estadunidense Nikole Hannah-Jones para o The New York Times, Rogero propõe um olhar sobre a história do Brasil a partir da centralidade do povo negro.

Com uma pesquisa minuciosa empreendida por uma equipe de especialistas de peso, o projeto Querino abarca, além do livro, um podcast produzido pela Rádio Novelo em 2022 — vencedor do prêmio Vladimir Herzog em 2023 e um dos mais ouvidos do streaming — e uma série de matérias publicadas na revista piauí no mesmo ano. Mais de quarenta profissionais trabalharam no projeto, que teve também o apoio do Instituto Ibirapitanga.

Agora, o livro conta com material inédito que amplia os oito episódios do podcast — incluindo entrevistas e imagens de figuras negras que foram apagadas dos manuais de história. Com firmeza e afeto, Rogero conduz o leitor pelo caminho da excelência e da dor em direção a uma nova compreensão da presença negra na construção do Brasil. Nesse sentido, o livro resgata a relevância de pessoas sequestradas e escravizadas — e a de seus descendentes —, ao mesmo tempo que denuncia os desdobramentos da diáspora no país de hoje.

Como bem descreve Ynaê Lopes dos Santos no texto de orelha do livro: “O projeto Querino é um banho de chuva. Chuva que molha, encharca, incomoda, nos obrigando a pisar em um chão quase pantanoso. Mas, passado o tempo, ela limpa e até refresca. Os pés seguem encharcados e são eles que pisam firme, abrindo espaço para uma nova escuta”.

De Luiz Gama a Chiquinha Gonzaga e Jorge Ben, passando por dona Laudelina de Campos Melo até chegar na pec das Domésticas, este livro se torna um retrato histórico-jornalístico potente de como o racismo, e também a agência do povo negro, formam o alicerce deste país.

RESENHA

O livro "Projeto Querino", de Tiago Rogero, oferece uma imersão profunda na complexa relação entre o tráfico de escravizados e as políticas coloniais no Brasil, traçando um panorama histórico que conecta figuras proeminentes como o príncipe regente D. João e o rei Adandozan do Daomé, atual Benim. O autor habilmente examina eventos cruciais de 1811, quando D. João recebeu presentes luxuosos e crianças escravizadas do rei africano, situando essa interação no contexto de um intrincado jogo de interesses econômicos e políticos. O temor de Adandozan em relação a um tratado de D. João com o Reino Unido, que visava a gradual abolição do comércio de escravos, revela a luta pela continuidade de um sistema que se tornaria integral à economia brasileira. Ao mesmo tempo, a rivalidade com o rei de Ardra destaca o crescente antagonismo entre reinos africanos, moldando um passado esquecido, mas relevante, na formação do Estado-nação brasileiro.

A análise de Rogero sobre a origem da escravidão e sua transformação no Brasil é particularmente impactante. Ele rastreia a desumanização dos africanos, que começou com a escravidão mercantil no século XV, até a forma brutal que a exploração do trabalho escravo assumiu nos séculos seguintes. A descoberta de que o tráfico de escravizados sempre foi um pilar econômico do Brasil oferece uma nova perspectiva sobre a construção da identidade nacional e a infraestrutura econômica do país.

A obra também se destaca ao trazer à tona a figura de José Bonifácio, um defensor da abolição que enfrentou resistência dos poderosos senhores de escravizados, mas que, sob a sua influência, conseguiu impactar D. Pedro. A narrativa culmina com os eventos políticos de 1821, ao relatar as exigências das Cortes Gerais e a turbulenta intersecção de interesses que conduziram à Independência do Brasil, enfatizando que esse "grito" foi, na verdade, um momento elitista, cercado por poder e privilégios.

O autor também se desdobra sobre o COVI-19 e a participação do ex-presidente da República Jair Bolsonaro em relação à crise sanitária enfrentada pelo Brasil, evocando assim, a morte de milhares de brasileiros.

A presença de Joaquim, o "Rei do Café", como um símbolo da riqueza oriunda da exploração da mão de obra escravizada, traz à tona a crueldade entrelaçada à prosperidade que caracterizou a economia brasileira. A resenha expõe a hipocrisia de uma independência que mantinha a escravidão e perpetuava um sistema de desigualdade raciais e sociais que ecoa até os dias atuais. A análise crítica dos efeitos persistentes da escravidão — refletida em salários desiguais e em postos de trabalho desfavoráveis ocupados pela população negra — evidencia a necessidade de um olhar atento e renovado sobre esses legados históricos ainda presentes na sociedade contemporânea.

Além disso, a crítica à representação da população negra na novela "Sinhá Moça" ilustra como a mídia perpetuou narrativas excludentes e problemáticas, sugerindo uma transição simplista entre trabalho escravo e livre. A resenha revela como essa visão distorcida ainda Nutre a ideia de uma sociedade meliorada pela "branquitude", ignorando as injustiças históricas perpetuadas. A menção à legislação contra o racismo e as violações de direitos humanos após a Abolição sublinha a continuidade da luta pela equidade racial no Brasil.

Por fim, a evocação do "Tratado do Engenho Santana", um documento redigido pelos escravizados em 1789 que reivindicava liberdade e dignidade, não apenas enriquece o texto, mas também atesta o desejo persistente de autonomia e respeito por parte dos oprimidos. "Projeto Querino" se configura, assim, como uma leitura essencial para todos que buscam compreender as raízes e as consequências da escravidão e da desigualdade racial no Brasil, oferecendo uma reflexão crítica e necessária sobre um passado que ainda ressoa no presente e molda o futuro. A obra de Tiago Rogero, portanto, é um convite à reflexão e à ação, enfatizando a urgente necessidade de reconhecimento e reparação das injustiças perpetradas ao longo da história.

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