Resenha: Forte como a Morte de Otto Leopoldo Winck


A obra "Forte como a Morte" de Otto Leopoldo Winck é uma narrativa complexa e multifacetada que entrelaça três histórias distintas em uma trama. O romance se destaca pela riqueza de suas referências teológicas, filosóficas e literárias, tecendo uma intrincada rede de significados que convida o leitor a uma jornada de reflexão e interpretação. O livro é estruturado de forma não linear, com as três narrativas principais - a de Rosália menina, a de Rosália mãe e a do reencontro do narrador com a personagem Betina - intercaladas em doze partes. Essa estrutura fragmentada, à primeira vista, pode parecer desafiadora, mas revela-se uma escolha narrativa deliberada, que evoca a imagem de uma rosácea, com seus padrões complexos e significados multifacetados.

A narrativa principal acompanha a jovem Rosália Klossosky, uma adolescente que apresenta estigmas semelhantes aos de Cristo, em uma pequena comunidade rural no sul do Brasil. Essa história é permeada por referências à teologia da libertação, à mística cristã e a questões sociais e políticas, como a luta pela reforma agrária. Paralelamente, a narrativa do narrador-padre, que reencontra uma antiga conhecida, Betina, no último Natal, traz à tona reflexões sobre a crise de fé, o papel do sacerdócio e a solidão do indivíduo.

Um dos aspectos mais notáveis da obra é sua abordagem teológica. Winck demonstra profundo conhecimento da tradição cristã, explorando conceitos como a kênosis (esvaziamento divino), a Shekinah (presença divina no mundo) e a relação entre fé, razão e mistério. A narrativa evoca a teologia da libertação, com sua ênfase na opção preferencial pelos pobres e na luta por justiça social, bem como a mística cristã, com suas noções de sofrimento, sacrifício e transcendência.

Além disso, o romance dialoga com a filosofia, especialmente com as ideias de Wittgenstein e Kierkegaard, que questionam a capacidade da linguagem e da razão de apreender plenamente a realidade. Essa abordagem filosófica contribui para a construção de uma narrativa que se recusa a fornecer respostas definitivas, deixando espaço para a ambiguidade e o mistério.

"Forte como a Morte" é uma obra de grande riqueza e complexidade, que desafia o leitor a mergulhar em uma trama intrincada de referências teológicas, filosóficas e literárias. Winck habilmente tece uma narrativa que questiona noções de fé, razão e mistério, convidando o leitor a uma jornada de reflexão e interpretação. Trata-se de um romance que se destaca pela sua abordagem erudita e pela sua capacidade de suscitar profundas indagações sobre a condição humana.

Resenha: Umbandas: uma história do Brasil, de Luiz Antonio Simas

 APRESENTAÇÃO

O historiador Luiz Antonio Simas frequenta terreiros de umbanda desde a mais tenra idade. Balizado pela história do Brasil e amparado pela própria trajetória, Simas elabora aqui um estudo inédito, original, que se propõe a contar a história do país à luz das umbandas — de tão brasileira que é, a umbanda se torna plural. Por isso, já no título deste livro a palavra não vem no singular. A diversidade do país, segundo o autor, se manifesta nas várias umbandas existentes, que se multiplicaram em histórias como a de sua avó, alagoana criada em Pernambuco e que se mudou para o Rio de Janeiro carregando consigo suas crenças e ritos.

RESENHA

O livro "Umbandas: uma história do Brasil", de Luiz Antonio Simas, propõe uma reflexão sobre as umbandas e sua profunda imbricação com a formação histórica e social do Brasil. Dividido em duas partes, a obra transita entre a "poética do encantamento" e a "política do encantamento", explorando as diversas manifestações religiosas afro-brasileiras, seus mitos, ritos e personagens, bem como os processos de cooptação, repressão e legitimação institucional dessas práticas.

Na primeira parte do livro, intitulada "Poéticas do Encantamento", Simas nos apresenta um panorama das raízes ancestrais das umbandas, remetendo-nos às santidades indígenas, aos calundus e danças de tunda, às pajelanças e catimbós, aos cultos aos orixás, caboclos e exus. Essa seção do livro destaca a riqueza e a diversidade das sabenças encantadas que se entrecruzam nas umbandas, enfatizando a noção de que esses cultos constituem um "ecossistema encantado", marcado pela interação entre o visível e o invisível, o humano e a natureza.

Ao explorar os mitos e ritos das santidades indígenas, dos calundus e das danças de tunda, Simas revela a complexidade e a dinamicidade dessas práticas religiosas, que se caracterizam pela fusão de elementos africanos, indígenas e cristãos. A figura do pajé, por exemplo, é apresentada como um xamã que atua como mediador entre o mundo material e os outros mundos espirituais, utilizando-se do poder terapêutico das plantas, do transe e da crença na existência de mundos paralelos.

Da mesma forma, o autor discorre sobre as bolsas de mandinga, os patuás e os ritos de fechamento dos corpos, evidenciando como essas tecnologias de cura e proteção incorporam saberes de diversas origens, numa constante reelaboração e adaptação às realidades locais. Nesse sentido, Simas destaca a noção de que os corpos são suportes de manifestações de encantamentos, sendo ritualmente preparados e transformados para abrigar as conexões entre o visível e o invisível.

Na segunda parte do livro, intitulada "Políticas do Encantamento", Simas aborda os processos de codificação e legitimação das umbandas, com foco no I Congresso Brasileiro de Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941. Nesse contexto, o autor analisa as disputas em torno da definição da origem e da "pureza" da umbanda, contrastando as perspectivas de uma "umbanda branca", mais próxima do espiritismo kardecista e do cristianismo, com a de uma umbanda afro-brasileira, representada pela corrente do omolokô.

Ao explorar essa tensão, Simas revela como o projeto de construção da identidade nacional, marcado pela ideologia da mestiçagem, também se fez presente no campo das umbandas. Enquanto alguns buscavam afastar as práticas afro-brasileiras, em nome de uma suposta "pureza" e "civilidade", outros, como Tancredo da Silva Pinto e a corrente do omolokô, defendiam a valorização das raízes africanas e indígenas da umbanda, contestando os esforços de desafricanização do culto.

Essa seção do livro também aborda a relação entre as umbandas e a repressão e intolerância religiosa enfrentadas pelos cultos afro-brasileiros. Simas destaca como a legislação brasileira, ao mesmo tempo em que aparentemente garantia a liberdade religiosa, criava subterfúgios legais que permitiam a perseguição aos terreiros, enquadrando suas práticas como "curandeirismo" e "perturbação da ordem pública".

Nesse contexto, o autor discorre sobre o embate entre as umbandas e as igrejas neopentecostais, especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, que têm sistematicamente atuado na destruição de terreiros e na demonização das religiosidades afro-brasileiras. Essa disputa pelo "mercado da fé" revela as profundas raízes do racismo estrutural brasileiro, que se manifesta na desqualificação e na aniquilação dos saberes e práticas não brancos.

Ao longo do livro, Luiz Antonio Simas adota uma abordagem multidisciplinar, transitando entre a História, a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia, de modo a compreender as umbandas em sua complexidade e dinamismo. Sua escrita poética e envolvente convida o leitor a mergulhar nesse universo encantado, revelando as sutilezas, contradições e belezas que permeiam as práticas religiosas afro-brasileiras e sua relação com a formação do Brasil.

Ao explorar tanto a "poética do encantamento" quanto a "política do encantamento", Simas nos apresenta uma obra que transcende os limites da mera descrição etnográfica ou histórica. Seu texto é uma convocação à compreensão das umbandas como manifestações vivas de uma "brasilidade forjada nas miudezas da nossa gente", que insistem na beleza espantosa presente em rituais de afirmação da vida, em contraposição à lógica colonial de aniquilação e morte.

Referências

SIMAS, Luiz Antonio. Umbandas: uma história do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

Resenha: Senhor Cão, de Flávio Ilha

A obra "Senhor Cão" do autor Flávio Ilha é uma narrativa complexa e multifacetada que explora temas profundos da condição humana, como a solidão, a busca pela identidade, os conflitos familiares e as consequências das escolhas individuais. Publicado em 2024 pela editora Aboio, o romance se destaca pela sua estrutura fragmentada, pela riqueza de personagens e pela abordagem poética da linguagem.

O romance "Senhor Cão" é composto por nove capítulos, cada um deles com um título que evoca uma temática central da obra. A narrativa é construída de forma não linear, com saltos temporais e espaciais que desafiam o leitor a acompanhar o fluxo de consciência dos personagens. Essa estrutura fragmentada reflete a própria condição existencial dos protagonistas, que se encontram em constante busca por respostas e sentido para suas vidas.

Ao longo da obra, o leitor é apresentado a uma diversidade de personagens, cada um com sua própria história e perspectiva. Destaca-se a figura de Pedro Flávio Póvoa, o protagonista, cuja trajetória é marcada por uma série de escolhas e ações que o levam a um profundo isolamento e conflito interno. Outros personagens, como Dona Leda, Eulália e Quim, também ganham destaque, revelando as complexas dinâmicas familiares e as consequências das ações de Pedro.

A linguagem utilizada por Flávio Ilha em "Senhor Cão" é marcada por uma riqueza poética e metafórica. O autor faz uso de uma prosa lírica e introspectiva, que permite uma imersão profunda nos pensamentos e emoções dos personagens. Essa abordagem estilística contribui para a construção de um ambiente sombrio e introspectivo, refletindo o estado de espírito dos protagonistas.

As temáticas centrais da obra giram em torno da solidão, da busca pela identidade, dos conflitos familiares e das consequências das escolhas individuais. O romance explora a forma como a ausência de figuras paternas e a fragilidade dos laços familiares afetam profundamente a vida dos personagens. Além disso, a obra também aborda questões relacionadas à moralidade, à violência e à culpa.

Análise Crítica

"Senhor Cão" se destaca como uma obra literária de grande complexidade e profundidade. O autor, Flávio Ilha, consegue criar uma narrativa que desafia o leitor a refletir sobre temas universais da condição humana, sem, no entanto, oferecer respostas definitivas. A estrutura fragmentada e a linguagem poética contribuem para uma experiência de leitura imersiva e envolvente.

Um dos aspectos mais notáveis da obra é a forma como Ilha retrata a solidão e a busca pela identidade dos personagens. Pedro Flávio Póvoa, em particular, é um protagonista complexo e multifacetado, cuja trajetória é marcada por uma série de escolhas e ações que o levam a um profundo isolamento. Essa representação da solidão humana é uma das principais forças do romance, ressoando com o leitor de maneira profunda.

Outro aspecto relevante é a abordagem de Ilha em relação aos conflitos familiares. A dinâmica entre os personagens, marcada por ausências, traições e incompreensões, revela a fragilidade dos laços afetivos e as consequências devastadoras que esses conflitos podem ter. Essa representação da família como um espaço de tensão e desafios é uma forte crítica social presente na obra.

Em suma, "Senhor Cão" de Flávio Ilha é uma obra literária de grande riqueza e complexidade. Através de uma narrativa fragmentada e uma linguagem poética, o autor consegue explorar temas universais da condição humana, como a solidão, a busca pela identidade e os conflitos familiares. A obra desafia o leitor a refletir sobre suas próprias escolhas e a forma como elas podem impactar sua vida e a vida daqueles ao seu redor.

Ao final, "Senhor Cão" se destaca como uma contribuição importante para a literatura contemporânea, oferecendo uma perspectiva profunda e emocionante sobre a complexidade da existência humana.

Resenha: Literatura, pão e poesia, de Sérgio Vaz


 APRESENTAÇÃO

A voz das ruas é o guia da instigante literatura de Sérgio Vaz. Suas palavras não fazem concessões com aqueles que procuram nos colocar medo todos os dias, nem com os que promovem a promessa barata de que a felicidade está ao alcance de todos. Com a mente repleta de sonhos e pesadelos, o poeta dispõe à nossa frente todas as faces que capta da realidade cotidiana.

Nesse livro, Vaz joga sua rede no mundo das crônicas, e pesca o que há de esperança e desesperança na vida. Como observador das marés, de nossas tormentas e maremotos, ele mergulha fundo na alma dos invisíveis, dos desterrados, dos sem-nome, dos sem-lugar, dos sem aquilo que um dia foi prometido a todos, mas que acabou sendo apenas permitido a uma pequena parcela da humanidade: a plena cidadania.

RESENHA

Literatura, pão e poesia, do escritor Sérgio Vaz, é uma obra que transcende os limites da simples crônica literária, apresentando-se como um testemunho vivo da efervescência cultural e poética que emerge das periferias brasileiras. Neste livro, Vaz nos convida a adentrar um universo em que a palavra se torna arma de empoderamento e resistência, onde a poesia se ergue como farol iluminando os caminhos de uma comunidade historicamente marginalizada.

Desde o primeiro texto, intitulado "Novos dias", Vaz estabelece o tom combativo e engajado que permeia toda a obra. Nele, o autor interpela o leitor a não abrir mão dos sonhos e da poesia, mas a enfrentá-los com "punhos cerrados" - uma clara alusão à necessidade de uma postura ativa e combativa diante das adversidades. Essa premissa se desdobra ao longo do livro, revelando a literatura como um instrumento de transformação social.

Vaz nos apresenta sua definição da "nova literatura da periferia", destacando sua íntima relação com a grande tradição literária, ao mesmo tempo em que reivindica seu caráter insurgente e subversivo. Essa estratégia de diálogo com o cânone literário se repete em outros textos, como em "A poesia dos deuses inferiores", em que o autor constrói uma espécie de "catálogo" da literatura marginal, evidenciando sua legitimidade e relevância.

Um dos aspectos mais interessantes da obra é a maneira como Vaz articula a dimensão poética e a dimensão geográfica. Textos como "Como nasce um taboanense", "Taboão dos Palmares" e "Taboão, suor e lágrimas" demonstram que o território da periferia não é apenas cenário, mas personagem ativo na construção dessa literatura. Vaz nos apresenta um lugar vivo, pulsante, que se transforma em protagonista, gerando uma fala própria e uma identidade singular.

Essa imbricação entre poesia e espaço físico se estende para uma reflexão sobre a relação entre centro e periferia na cidade de São Paulo, como evidenciado no texto "Mil graus na terra da garoa". Aqui, o autor problematiza as políticas culturais e urbanísticas que tendem a marginalizar as expressões artísticas periféricas, convocando-as a "aranharem os céus da cidade".

Ao longo do livro, Vaz também se debruça sobre figuras emblemáticas da periferia, como o catador de papel Zagatti, o "palhaço da loja de sapatos", e a "fina flor da malandragem" - personagens que encarnam a resiliência e a dignidade de uma comunidade que se recusa a ser subjugada. Essas crônicas revelam uma perspectiva humanizada e empática, distante de julgamentos simplistas.

Destaca-se ainda o "Manifesto da Antropofagia Periférica", uma releitura periférica e atualizada do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Nele, Vaz convoca os artistas a se colocarem a serviço da comunidade, rejeitando a "arte domingueira que defeca em nossa sala" e reivindicando uma produção artística engajada na transformação social.

Em Literatura, pão e poesia, Sérgio Vaz nos apresenta uma poética da periferia que vai muito além da denúncia ou do lamento. Sua escrita é marcada por um profundo compromisso com a dignidade e a emancipação de seu povo, revelando uma literatura que se faz arma de luta e instrumento de empoderamento. Ao entrelaçar a dimensão poética com a dimensão geográfica e social, Vaz nos convida a repensar os caminhos da arte e da cultura no Brasil, desafiando-nos a enxergar a periferia não apenas como objeto, mas como sujeito da história.


Referências


VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.


BRUM, Eliane. Posfácio. In: VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.

Resenha: O negro no mundo dos brancos, de Florestan Fernandes



APRESENTAÇÃO

A década de 1960 ficou assinalada pelo incremento dos estudos sobre o negro brasileiro. Durante muitos anos, analisada em um ou outro livro ou artigo esporádico, a participação do descendente de africano no Brasil começou a ser reavaliada (segundo alguns de maneira um tanto idealizada) por Gilberto Freyre, em Casa- grande & Senzala (1933). Nos anos seguintes, os estudiosos assumiram posições mais realistas, pondo de lado velhos chavões como a inexistência de preconceito racial no país. Buscaram-se enfoques inéditos de abordagem do problema, analisaram-se aspectos ainda não avaliados, sempre amparados em pesquisa de campo e levantamento minucioso de dados. O Negro no Mundo dos Brancos, do professor Florestan Fernandes, reflete essas tendências através de seus quatorze ensaios, centrados na preocupação com a supremacia da "raça branca" e o controle do poder que ela exerce em nossa sociedade, fazendo do Brasil um mundo social modelado pelo branco e para o branco. Estudando a situação do negro e do mulato na sociedade brasileira, vista a partir de São Paulo, Florestan Fernandes levanta os caminhos sinuosos assumidos pelo preconceito, os seus disfarces e o processo de segregação racial, sem agravar ou atenuar o problema. Sua visão é de que o equilíbrio racial na sociedade brasileira "procede do modo pelo qual os dois polos se articulam com um mínimo de fricção", padrão de equilíbrio que é a própria base da desigualdade racial. O livro aborda ainda outros assuntos mais heterogêneos e fortuitos, como o significado das pesquisas sobre relações raciais, a presença do negro "em nosso folclore e nos quadros da religião popular", todos eles se comunicando entre si, ajudando a desvendar a situação real do negro na sociedade brasileira, mas também afirmando as "preocupações morais e políticas" do autor.

RESENHA

A obra "O negro no mundo dos brancos", de autoria do renomado sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, é uma importante contribuição para a compreensão das relações raciais no Brasil. Publicado originalmente em 1972, este livro reúne uma série de ensaios escritos entre 1965 e 1969, com alguns textos elaborados ainda na década de 1940.

O principal objetivo da obra é analisar a situação do negro e do mulato na sociedade brasileira, com ênfase especial na cidade de São Paulo. Essa escolha se justifica pelo fato de São Paulo ter se tornado o principal centro urbano-industrial do país, representando um lócus privilegiado para a observação das transformações sociais e das dinâmicas das relações raciais no contexto da emergência da ordem social competitiva.

Organizada em três partes, a obra aborda diferentes aspectos do "dilema racial brasileiro", desde as raízes históricas da desigualdade racial até as perspectivas futuras de democratização das relações entre brancos, negros e mulatos. Nesta resenha, serão destacados os principais argumentos e contribuições apresentados por Florestan Fernandes em cada uma das seções do livro.

Na primeira parte, intitulada "As barreiras da Cor", Fernandes analisa como a desagregação do regime escravista e a consequente transição para a ordem social competitiva não resultaram em uma efetiva democratização das relações raciais no Brasil. Ao contrário, o autor demonstra que a abolição da escravidão não foi acompanhada de medidas que garantissem a integração do negro e do mulato na nova estrutura social.

Nesse sentido, Fernandes argumenta que a Abolição significou, na prática, uma "última espoliação" do ex-escravo, que se viu desprovido de qualquer amparo ou assistência para enfrentar as exigências do trabalho livre e da economia de mercado. Assim, o negro e o mulato foram "expulsos para a periferia da ordem social competitiva", relegados a ocupações precárias e marginalizados dos principais canais de mobilidade social ascendente.

Essa dinâmica é evidenciada pela análise dos dados censitários, que revelam a persistência da concentração racial da renda, do prestígio social e do poder nas mãos da população branca. Fernandes demonstra, por exemplo, que, em 1950, apenas 2,5% dos empregadores em São Paulo eram negros ou mulatos, apesar de estes representarem 11,16% da população total do estado.

Além disso, o autor identifica a existência de um "preconceito de não ter preconceito" na sociedade brasileira, em que o reconhecimento formal da igualdade racial convive com a manutenção de práticas discriminatórias e de um sistema de relações assimétricas herdado do período escravista. Nesse contexto, a "democracia racial" se revela mais um mito do que uma realidade efetiva.

Na segunda parte, intitulada "O Impasse Racial no Brasil Moderno", Fernandes aprofunda a análise das dinâmicas que perpetuam a desigualdade racial no país, explorando as conexões entre a estrutura da ordem social competitiva e a persistência de padrões tradicionais de relações raciais.

O autor argumenta que a imigração europeia, ao se inserir privilegiadamente no mercado de trabalho urbano-industrial em expansão, contribuiu para a marginalização ainda maior do negro e do mulato, que se viram excluídos das melhores oportunidades econômicas e sociais. Essa situação, somada à falta de preparo desses grupos para as exigências do trabalho livre e da vida nas cidades, levou a uma profunda desorganização social e a uma "desmoralização coletiva" no "meio negro".

Fernandes também analisa os movimentos sociais organizados pela população negra e mulata, especialmente em São Paulo, durante as décadas de 1920 a 1940. Embora esses movimentos tenham representado uma importante tentativa de afirmação da identidade racial e de reivindicação por igualdade, o autor demonstra que eles acabaram sendo neutralizados pela indiferença e pela incompreensão da sociedade inclusiva, incapaz de absorver as demandas por democratização das relações raciais.

Nesse cenário, Fernandes identifica a persistência de um "padrão tradicionalista e assimétrico de relação racial", em que o preconceito e a discriminação continuam a operar, mesmo após a abolição formal da escravidão. Essa situação, por sua vez, acaba por perpetuar a concentração racial da renda, do prestígio social e do poder, comprometendo as possibilidades de uma efetiva democratização das estruturas sociais.

Na terceira e última parte, intitulada "Em Busca da Democracia Racial", Fernandes discute as perspectivas futuras para a superação do "dilema racial brasileiro". O autor reconhece a existência de potencialidades favoráveis à democratização das relações raciais no país, como a gradual inserção do negro e do mulato no sistema de classes e a expansão de uma "classe média de cor".

No entanto, Fernandes também identifica fatores que dificultam essa transição, como a persistência de estruturas sociais arcaicas na esfera das relações raciais e a dificuldade de mobilização coletiva da população negra e mulata, em um contexto marcado pela indiferença e omissão do segmento branco da sociedade.

Nesse sentido, o autor argumenta que a concretização de uma autêntica democracia racial no Brasil depende de uma "ruptura profunda com o passado", exigindo não apenas a transformação das estruturas sociais, mas também uma mudança radical na consciência social e nos valores predominantes na sociedade brasileira. Fernandes defende, assim, a necessidade de políticas públicas e de um engajamento efetivo da sociedade na superação das desigualdades raciais, sob pena de a "democracia racial" permanecer como um mito, sem se concretizar na prática.

A obra "O negro no mundo dos brancos" representa uma contribuição fundamental para a compreensão das relações raciais no Brasil. Ao analisar a situação do negro e do mulato no contexto da transição do regime escravista para a ordem social competitiva, Florestan Fernandes desvenda os mecanismos que perpetuam a desigualdade racial, mesmo após a abolição formal da escravidão.

Sua abordagem sociológica, amparada em uma vasta pesquisa empírica, permite revelar as contradições entre os ideais de igualdade e democracia racial e a realidade concreta de exclusão e marginalização vivenciada pela população negra e mulata. Nesse sentido, o livro se constitui como um importante marco na produção acadêmica sobre as relações raciais no Brasil, contribuindo para a desmistificação da noção de "democracia racial" e apontando caminhos para a sua efetiva construção.

Ao mesmo tempo, a obra de Fernandes suscita reflexões fundamentais sobre o papel da ciência social na compreensão e na transformação da realidade social. Ao desvelar os impasses e as contradições da situação racial brasileira, o autor demonstra a importância de uma postura engajada do cientista social, comprometido não apenas com a produção de conhecimento, mas também com a superação das desigualdades e a construção de uma sociedade mais justa e democrática.


Referências

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

MAIO, Marcos Chor. A história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese de doutorado, IUPERJ, 1997.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Resenha: Pra tudo começar na quinta-feira, de Luiz Antonio Simas e Fábio Fabato



APRESENTAÇÃO

Este é um trabalho com um recorte temático e espacial: ele versa sobre os enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro e os seus criadores. A primeira parte aborda a conexão que existe entre os enredos das agremiações e os respectivos contextos históricos em que foram apresentados. A segunda parte apresenta e analisa a biografia profissional e a contribuição dos maiores carnavalescos, criadores de enredos, para o crescimento e transformação das escolas de samba do Rio de Janeiro desde 1960, quando a influência desses personagens passa a ser decisiva (e polêmica) para os rumos da festa.

RESENHA

O livro "Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos enredos", de Luiz Antonio Simas e Fábio Fabato, apresenta uma profunda e instigante análise sobre a evolução dos enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro ao longo do tempo. Os autores se debruçam sobre essa importante manifestação cultural, explorando suas conexões com os contextos históricos, sociais e políticos em que se inserem.

O trabalho se divide em duas partes principais. Na primeira, os autores abordam a relação entre os enredos das agremiações e os respectivos períodos históricos em que foram apresentados, mostrando como as escolas de samba foram influenciadas em suas escolhas temáticas pela conjuntura de determinados momentos. Ao mesmo tempo, destacam que as escolas, dotadas de notável capacidade de assimilação e transformação, acabam por influenciar essa mesma conjuntura, não sendo meras vítimas passivas do contexto ou condicionadas acriticamente por ele, mas agentes ativas da história, interferindo dinamicamente no tempo e no espaço em que estão inseridas.

Na segunda parte, os autores apresentam e analisam a biografia profissional e a contribuição dos maiores carnavalescos, criadores de enredos, para o crescimento e a transformação das escolas de samba do Rio de Janeiro a partir da década de 1960, quando a influência desses personagens passa a ser decisiva (e polêmica) para os rumos da festa.

Ao longo da obra, Simas e Fabato adotam uma abordagem interdisciplinar, transitando entre a história, a sociologia, a antropologia e os estudos culturais, o que lhes permite uma compreensão ampla e multifacetada do objeto de estudo. Sua escrita é fluida e acessível, evitando o rigor acadêmico excessivo, o que torna a leitura agradável e envolvente.

Um dos aspectos mais relevantes do livro é a forma como os autores lidam com a questão da memória. Eles reconhecem que não há uma memória objetiva, uma vez que a reconstrução de uma experiência sempre pressupõe distintas interpretações e ressignificações do que foi vivido. Dessa maneira, o mundo do samba é apresentado como um espaço ricamente povoado de relatos épicos, mitos e personagens lendários, em que mito e história, realidade e fábula, se entrelaçam constantemente.

Outro ponto forte da obra é a atenção dedicada aos carnavalescos, figuras centrais no desenvolvimento das escolas de samba. Simas e Fabato traçam um panorama histórico da ascensão desses profissionais, destacando sua importância na reconfiguração estética e temática dos desfiles. Ao mesmo tempo, evidenciam as tensões e os conflitos entre esses artistas e o poder público, bem como a maneira como eles negociaram e se adaptaram às demandas impostas pelos patrocinadores e pela indústria do entretenimento.

No que se refere aos enredos, os autores identificam duas tendências principais ao longo do tempo: a dos temas que versam sobre efemérides oficiais e personagens históricos, e a dos enredos que abordam a mitologia e a cultura afro-brasileira. Eles demonstram como essas duas vertentes se relacionam com as conjunturas políticas e sociais de determinados períodos, refletindo tanto os interesses do Estado quanto as reivindicações e a resistência das comunidades marginalizadas.

Além disso, os autores dedicam atenção especial à emergência dos enredos patrocinados nas últimas décadas, explorando as implicações dessa nova realidade para a festa. Eles argumentam que essa tendência tem levado à padronização e à uniformização dos desfiles, com as escolas sendo encaradas como potenciais veículos de propaganda de massas e indução ao consumo.

Em suma, "Pra tudo começar na quinta-feira" se configura como uma obra fundamental para a compreensão do carnaval carioca e de sua importância como manifestação cultural e política. Ao articular de forma brilhante a relação entre os enredos e os contextos históricos, sociais e econômicos, os autores contribuem significativamente para o avanço dos estudos sobre essa celebração tão rica e complexa.

Resenha: História Medieval, de Marcelo Cândido da Silva



APRESENTAÇÃO

A Idade Média abrange um período de cerca de dez séculos, compreendido entre o final da Antiguidade e o início da época moderna. Diferentes formas de expansão, de poder e de sociedade foram forjadas durante esses mil anos. Enquanto os chamados bárbaros conquistavam territórios, o poder da Igreja crescia e o cristianismo se tornava uma ferramenta eficaz de integração (muitas vezes forçada). Outra característica marcante do período é a dominação senhorial: controle econômico, jurídico, político e militar dos camponeses por parte da aristocracia.Nesta obra introdutória, o professor da Universidade de São Paulo Marcelo Cândido da Silva se dedica a apresentar e discutir as principais características desse período, dando ênfase a seus contrastes: a fome, a peste e as guerras se alternando com tempos de paz e prosperidade; o universalismo do papado convivendo com os particularismos senhoriais e com as monarquias em vias de centralização. Com este livro, o leitor tem em mãos uma obra atualizada e palpitante sobre a História Medieval.

RESENHA

O livro "História Medieval" de Marcelo Cândido da Silva é uma obra abrangente e atualizada sobre o período medieval europeu, compreendido entre os séculos V e XV. O autor, professor titular da Universidade de São Paulo e pesquisador renomado na área, apresenta uma análise cuidadosa e equilibrada dos principais temas e debates historiográficos referentes à Idade Média.

Ao longo de seis capítulos, o livro percorre as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais que marcaram essa longa e complexa etapa da história europeia. Longe de uma visão simplista ou determinista, a narrativa de Cândido da Silva demonstra a riqueza e a diversidade dos fenômenos medievais, buscando relativizar interpretações consagradas e incorporar os avanços da pesquisa histórica mais recente.

O primeiro capítulo aborda a transição da Antiguidade Tardia para o período medieval, enfocando o processo de integração dos povos bárbaros no Império Romano e a formação dos reinos bárbaros subsequentes. O autor problematiza a noção de "invasões bárbaras", mostrando como esses grupos, longe de serem meros conquistadores, adaptaram-se e assimilaram diversos elementos da cultura e das instituições romanas.

Cândido da Silva também discute a construção historiográfica da ideia de "germanidade" e de identidades étnicas, destacando como essas categorias foram forjadas principalmente a partir do século XIX, em meio aos nacionalismos europeus. Nesse sentido, a análise das "leis bárbaras" revela a complexidade das relações entre romanos e bárbaros, bem como a gradual consolidação de uma dominação aristocrática sobre o campesinato.

O segundo capítulo é dedicado à emergência e ao apogeu do Senhorio territorial, forma de organização socioeconômica que caracterizou grande parte da Europa Ocidental medieval. O autor examina a estrutura bipartida do Grande Domínio, com sua reserva senhorial e tenências camponesas, bem como a dinâmica de concentração fundiária e de hierarquização social que marcaram os séculos XI-XIII.

Cândido da Silva problematiza o conceito de "Feudalismo", preferindo utilizar o termo "dominação senhorial" para abarcar a complexidade das relações de poder e de exploração que se estabeleceram entre a aristocracia e o campesinato. Nesse contexto, são analisados os processos de espacialização do domínio senhorial, a ascensão da Cavalaria e as tensões entre senhores e comunidades urbanas.

O terceiro capítulo aborda o papel central desempenhado pela Igreja Católica na configuração das sociedades medievais. O autor demonstra como o cristianismo, por meio de suas normas, ritos e instituições, forjou diversos traços fundamentais da Cristandade Ocidental, desde a organização do espaço e do tempo até a legitimação do poder político.

Cândido da Silva também discute a afirmação da autoridade papal, os conflitos entre Papado e Império, bem como a emergência de movimentos considerados heréticos e a construção da "sociedade persecutória" a partir do século XII. Nesse contexto, a Inquisição é analisada como um instrumento de poder da monarquia pontifícia.

O quarto capítulo examina os séculos XIV e XV, período marcado por profundas transformações e crises, como a Grande Fome, a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos. Longe de uma visão catastrófica, o autor demonstra que tais fenômenos não implicaram necessariamente o colapso da economia e da sociedade medievais.

Cândido da Silva destaca a capacidade de resiliência das sociedades europeias, que responderam à depressão demográfica e à instabilidade política com inovações técnicas, comerciais e administrativas. Nesse sentido, a emergência dos Estados modernos e a expansão ultramarina são compreendidas como processos enraizados na dinâmica tardomedieval.

No último capítulo, o livro aborda a construção historiográfica da noção de "Idade Média", analisando os usos políticos, culturais e identitários desse conceito ao longo dos séculos XIX e XX. O autor examina como a imagem do período medieval foi moldada por diferentes correntes interpretativas, desde o Iluminismo até o Romantismo e a Nova História.

Cândido da Silva problematiza a rigidez das periodizações tradicionais, bem como a instrumentalização da Idade Média por parte de movimentos nacionalistas e regimes autoritários. Nesse sentido, a obra demonstra a atualidade e a relevância do debate sobre a Idade Média, que continua a suscitar interpretações diversas e, por vezes, conflitantes.

"História Medieval" de Marcelo Cândido da Silva se destaca pela abordagem abrangente e equilibrada do período, evitando simplificações e incorporando os avanços da pesquisa histórica mais recente. O autor transita com maestria por uma ampla gama de temas, articulando questões políticas, econômicas, sociais e culturais de forma coerente e didática.

A obra se apresenta como leitura obrigatória para estudantes, pesquisadores e interessados no período medieval, oferecendo uma visão atualizada e crítica sobre esse momento fundamental da história europeia. Ao mesmo tempo, o livro contribui para a desconstrução de mitos e estereótipos comumente associados à Idade Média, promovendo uma compreensão mais nuançada e complexa desse fascinante período.

Resenha: A Consulta, de Katharina Volckmer


 APRESENTAÇÃO

No consultório de um certo dr. Seligman, em Londres, uma jovem realiza um procedimento sobre o qual temos apenas pistas. A paciente está de pernas para o alto enquanto narra em detalhes sua vida e seus desejos, em especial as lutas que trava com a própria identidade sexual, de gênero e nacional. Nascida e criada na Alemanha, ela vive na Inglaterra há vários anos, determinada a libertar-se de suas origens familiares e do fardo de pertencer a uma pátria assombrada pelas atrocidades cometidas na guerra. A morte recente do avô e uma herança inesperada, entretanto, deixam claro que não se pode fugir facilmente à própria vergonha, seja ela física, familiar, histórica, pátria, ou todas as opções anteriores. Ou será que pode? Com a ajuda do dr. Seligman, é o que procura descobrir nossa narradora. Nesta espécie de O complexo de Portnoy às avessas, ela confessa ao médico judeu seu fascínio pelas vítimas do Holocausto, ao mesmo tempo em que admite a profundidade das feridas por ele abertas: “nunca estivemos de luto; no máximo, interpretamos uma nova versão de nós mesmos, histericamente não racista sob qualquer perspectiva, e negando qualquer diferença sempre que possível.” Num monólogo que retoma a melhor tradição do romance neurótico, ela nos conduz por uma jornada verborrágica que vai de mães controladoras e fantasias sexuais com Hitler até as propriedades medicinais da cauda do esquilo, passando pela inusitada ideia de que as mudanças anatômicas podem servir de reparação histórica. Hilário e mordaz, implacável e profundamente honesto, A consulta é uma estreia literária audaciosa, que desafia nossas noções do que é fluido e do que é imutável, provocando-nos a pensar sobre as formas de fazer as pazes com os outros e conosco no século 21.

RESENHA

"A Consulta" (2020), o romance de estreia da escritora alemã Katharina Volckmer, apresenta ao leitor uma narrativa fascinante e complexa que se desenrola durante uma sessão de terapia. A protagonista, uma mulher alemã sem nome, relata ao seu terapeuta, o Dr. Seligman, suas experiências de vida marcadas por conflitos identitários, sexualidade reprimida e uma profunda solidão. Ao longo da consulta, a narradora expõe suas memórias, fantasias e obsessões, revelando uma psique tortuosa e multifacetada. 

O enredo de "A Consulta" é essencialmente construído em torno dessa sessão terapêutica, na qual a protagonista compartilha com o Dr. Seligman uma série de relatos autobiográficos, memórias e devaneios. Desde o início, fica claro que a narradora luta com questões profundas relacionadas à sua identidade de gênero, sexualidade e lugar no mundo. Ela revela ter tido sonhos perturbadores nos quais se identifica com a figura de Adolf Hitler, refletindo uma complexa relação com a história alemã e sua própria imagem corporal.

À medida que a narrativa avança, a protagonista aborda temas como seu relacionamento conturbado com os pais, especialmente a mãe, e sua frustração com os padrões de beleza e feminilidade impostos pela sociedade. Ela também relata sua breve, porém intensa, relação com um artista enigmático chamado K., que a levou a explorar sua própria sexualidade de maneiras não convencionais. Esses episódios são narrados de forma não linear, com a narradora transitando livremente entre memórias, fantasias e reflexões sobre sua condição existencial.

Um aspecto notável do enredo é a maneira como a protagonista se posiciona em relação à sua herança alemã e ao legado do Holocausto. Ela expressa uma profunda ambivalência, oscilando entre sentimentos de culpa, repulsa e desejo de redenção. Essa tensão é evidenciada em sua fascinação por um homem judeu imaginário, chamado Shlomo, com quem ela fantasiava ter um relacionamento que a ajudaria a superar o fardo do passado alemão.

Ao longo da consulta, a narradora também revela sua obsessão por um método não convencional de lidar com sua solidão e insatisfação sexual: a aquisição de um robô sexual projetado por um inventor japonês. Essa ideia é explorada de maneira complexa, refletindo suas ansiedades sobre a desumanização e a perversão da sexualidade.

A estrutura do romance é marcada pela alternância entre os relatos da protagonista e os comentários e intervenções do Dr. Seligman. Essa estrutura dialógica cria uma dinâmica intrigante, na qual o leitor é convidado a acompanhar não apenas a narrativa da personagem, mas também as reações e questionamentos do terapeuta.

O estilo narrativo de Volckmer é denso, introspectivo e repleto de divagações filosóficas. A narradora se expressa de maneira eloquente, com uma prosa rica em imagens poéticas e reflexões profundas sobre a condição humana. Sua voz é marcada por um tom confessional, que confere autenticidade e vulnerabilidade à narrativa.

O enredo de "A Consulta" é uma jornada introspectiva e perturbadora, na qual a protagonista confronta seus conflitos identitários, sexualidade reprimida e solidão existencial. Ao longo da sessão terapêutica, a narradora revela camadas complexas de sua psique, desafiando os limites da normalidade e explorando temas universais como a busca pela identidade, a luta contra os padrões sociais e a necessidade de conexão humana. O resultado é um romance profundamente enraizado na experiência humana, que convida o leitor a mergulhar na psique de uma personagem singularmente complexa.

Resenha: História da beleza no Brasil, de Denise Bernuzzi de Sant'Anna



APRESENTAÇÃO

Há séculos, a beleza distingue e desperta invejas. Ela é objeto de desejo, instrumento de poder e moeda de troca em diferentes sociedades. No último século, o corpo transformou-se em algo tão importante, complexo e sensível quanto outrora fora a alma. Esta obra, que combina trabalho rigoroso e linguagem saborosa, mostra o que se faz para buscar a beleza – e como esse conceito muda com o tempo. Desde o garbo e a elegância nos primeiros anos da República até a atual banalização das cirurgias plásticas, História da beleza no Brasil trata das transformações ligadas aos padrões estéticos e aos cuidados com o corpo, mas também do martírio causado pela feiura e da tumultuada luta para driblar o envelhecimento, a solidão e o fracasso.

RESENHA

O livro "História da beleza no Brasil", de Denise Bernuzzi de Sant'Anna, é uma obra abrangente e minuciosa que traça a evolução dos cuidados com a aparência física no Brasil ao longo do século XX. A autora realiza uma análise detalhada das transformações nos padrões estéticos, nas técnicas de embelezamento e nos significados atribuídos à beleza, revelando como essa temática se tornou cada vez mais central na sociedade brasileira.

O livro inicia com uma breve contextualização sobre as expectativas em relação ao futuro do país no início do século XX, contrastando as projeções feitas em 1900 com as realidades contemporâneas. Essa introdução serve como ponto de partida para a autora explorar as mudanças nos cuidados com a aparência física ao longo do período estudado.

Um dos principais eixos do enredo é a gradual banalização e valorização do embelezamento, que deixa de ser um tema secundário e passa a ocupar um espaço central na imprensa, na publicidade e no imaginário social. Denise Sant'Anna demonstra como, ao longo do século, a beleza se transformou em uma preocupação comum a homens e mulheres, de diferentes idades, classes sociais e orientações sexuais, deixando de ser um privilégio de uma elite.

Outro aspecto fundamental do enredo é a análise das técnicas e produtos utilizados para o embelezamento, desde os antigos artifícios caseiros até a emergência de uma indústria cosmética cada vez mais sofisticada. A autora acompanha a evolução dos cuidados com a pele, os cabelos, a maquiagem, as roupas e os acessórios, mostrando como esses elementos foram gradualmente se tornando centrais na construção das identidades.

Ao longo do livro, Denise Sant'Anna também explora as ambiguidades e contradições presentes nesse processo, como a persistência de preconceitos em relação à beleza, a medicalização dos cuidados estéticos e a emergência de novos padrões de beleza que, por vezes, reforçam desigualdades de gênero e raça. Questões como a valorização da magreza, a expansão das cirurgias plásticas e a sexualização dos corpos são analisadas de forma crítica.

Em síntese, "História da beleza no Brasil" é uma obra fundamental para compreender as transformações nos padrões de beleza e nos cuidados com a aparência física no país ao longo do século XX. Através de uma abordagem histórica e interdisciplinar, a autora revela como a busca pela beleza se tornou um fenômeno cada vez mais central, complexo e ambíguo, refletindo ansiedades, desejos e disputas sociais em constante evolução. O livro é uma referência indispensável para estudiosos das áreas de história, sociologia, antropologia e estudos de gênero interessados em compreender as dinâmicas socioculturais em torno da aparência física no Brasil contemporâneo.

Resenha: Stalingrado, de Alexander Werth

APRESENTAÇÃO

Era a batalha do tudo ou nada: se os nazistas conquistassem Stalingrado, provavelmente venceriam a Segunda Guerra Mundial. Acuados, os soviéticos pagaram caro pela resistência encarniçada. Milhares de vidas foram ceifadas no trágico embate. De julho de 1942 até fevereiro do ano seguinte, o mundo acompanhou como pôde o encontro dos dois grandes exércitos. O autor Alexander Werth, um dos pouquíssimos jornalistas estrangeiros a cobrir a frente oriental, teve um olhar privilegiado. Assim que os alemães capitularam, Werth chega a uma Stalingrado ainda traumatizada e nos relata com vivacidade tudo o que observa. Além de ser testemunha ocular, entrevistou oficiais, especialistas militares e teve acesso a documentos originais. Stalingrado continua sendo o livro mais importante publicado sobre uma das mais sangrentas e decisivas batalhas da Segunda Guerra Mundial.

RESENHA

O livro Stalingrado, escrito por Alexander Werth e publicado originalmente em 2012, é uma obra que se destaca pela sua riqueza de detalhes e profundidade de análise sobre um dos episódios mais marcantes da Segunda Guerra Mundial - a Batalha de Stalingrado. Trata-se de uma obra de grande relevância histórica, que nos permite compreender não apenas os aspectos militares desse conflito, mas também as suas implicações políticas, sociais e culturais.

A narrativa se inicia com a descrição da Batalha de Stalingrado como um "ponto nevrálgico" da guerra, uma vez que a sua resolução poderia determinar o curso de todo o conflito. Werth explora de maneira detalhada as duas fases da batalha: a fase defensiva, que durou até 19 de novembro de 1942, e a fase ofensiva, que levou ao cerco das forças alemãs na cidade.

Durante a fase defensiva, Werth destaca a importância da resistência dos soldados soviéticos, que conseguiram adaptar-se às condições de combate em ambiente urbano e explorar as debilidades das forças alemãs. Ele também analisa o papel fundamental desempenhado pelo alto-comando soviético, que soube aproveitar a batalha para preparar a grande ofensiva que resultaria no cerco das tropas alemãs.

Já na fase ofensiva, Werth descreve com riqueza de detalhes as manobras estratégicas realizadas pelos generais soviéticos, bem como a determinação dos soldados em eliminar as forças inimigas cercadas em Stalingrado. Ele também aborda a tentativa fracassada do marechal Von Manstein de romper o cerco, bem como a deterioração das condições de vida dos soldados alemães sitiados na cidade.

Ao longo da obra, Werth enfatiza a importância da Batalha de Stalingrado para o curso da guerra. Ele argumenta que a vitória soviética nessa batalha marcou uma virada decisiva no conflito, pois não apenas eliminou uma das melhores forças da Wehrmacht, como também solapou a iniciativa estratégica dos alemães.

Além disso, Werth destaca o impacto psicológico da vitória soviética, que fortaleceu a confiança do Exército Vermelho e da população civil em relação à capacidade de vencer a guerra. Ele também aponta como a Batalha de Stalingrado elevou o prestígio internacional da União Soviética, transformando-a em um ator de peso no cenário político mundial.

Em suma, a obra de Alexander Werth sobre a Batalha de Stalingrado se destaca por sua abordagem abrangente e minuciosa do tema. Ao combinar uma análise detalhada das operações militares com uma compreensão profunda das implicações políticas, sociais e culturais desse conflito, o autor nos apresenta uma visão ampla e complexa de um dos episódios mais decisivos da Segunda Guerra Mundial.

Sua riqueza de detalhes, aliada à utilização de uma diversidade de fontes primárias e à experiência pessoal do autor, conferem a esta obra um caráter de referência indispensável para aqueles que desejam compreender em profundidade a Batalha de Stalingrado e seu impacto no curso da história.

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