Resenha: História da felicidade, de Peter N. Stearns



APRESENTAÇÃO

Ser feliz é algo diferente para cada pessoa, mas também tem sido diferente ao longo da história, em diversas regiões do planeta. Sempre houve a busca por existências felizes, mas o que é considerado felicidade e a forma como as pessoas conseguem configurar suas experiências variam muito e dependem de circunstâncias históricas específicas. Assim, a visão histórica melhora nossa compreensão dessa emoção humana, mesmo para observadores interessados principalmente em padrões contemporâneos. Neste livro veremos como a felicidade é produto das concepções religiosas do passado, do iluminismo, do capitalismo comercial, da imensa indústria do entretenimento moderno, do aconselhamento psicológico, além de todas as possíveis variáveis pessoais, familiares e locais adicionadas à mistura. " A grande revolução, como se acompanha no livro, está na Idade Contemporânea. O aumento da importância da felicidade é um fenômeno dos séculos XVIII e XIX.." - Leandro Karnal "Stearns faz percursos que singularizam o tema da felicidade e o desembaça por meio de explicações que o tornam em determinados períodos mais que evidente.

RESENHA


O livro História da felicidade destaca como fatores como o iluminismo, o capitalismo, a industrialização e as grandes religiões contribuíram para definir o que significa ser feliz em diferentes contextos históricos. Ao abordar temas recorrentes como o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais e o papel da família, Stearns nos convida a refletir sobre as complexidades e nuances da felicidade. Com uma abordagem que combina história, filosofia e psicologia, "História da Felicidade" não apenas ilumina o passado, mas também oferece valiosas lições para o presente, ajudando-nos a compreender de onde vêm nossas ideias atuais sobre felicidade e como podemos buscar uma vida mais plena e satisfatória.

O capítulo "As bases psicológicas" explora a complexidade da felicidade e a dificuldade em defini-la, abordando como psicólogos e a psicologia positiva têm investigado o tema nas últimas décadas. Destaca-se que, embora a disciplina não tenha solucionado todos os mistérios da felicidade, ela oferece parâmetros para compreender suas características principais. Inicialmente, a felicidade foi associada à juventude e baixas aspirações, mas estudos posteriores mostraram que idosos também relatam felicidade, e que pessoas ambiciosas podem ser felizes.

A felicidade é vista como uma emoção básica, expressa universalmente através do sorriso, e desempenha funções importantes, como reforçar comportamentos benéficos e equilibrar emoções negativas. A psicologia distingue entre "satisfação com a vida" e "bem-estar subjetivo", conceitos que ajudam a entender a felicidade em diferentes contextos e ao longo do tempo.

O capítulo aborda debates sobre o papel da genética na predisposição para a felicidade, sugerindo que, embora exista um componente genético, as pessoas podem modificar seu nível de felicidade através de ações e mudanças de perspectiva. Psicólogos também discutem a importância de fatores como saúde, relacionamentos saudáveis, altruísmo e conexão espiritual na promoção da felicidade.

O autor reconhece que a busca excessiva pela felicidade pode ser contraproducente e que as diferenças culturais e sociais influenciam como a felicidade é percebida e vivenciada. A psicologia e a história, juntas, podem oferecer uma compreensão mais abrangente da felicidade, considerando tanto as influências coletivas quanto individuais.

O capítulo "A Era da Agricultura" aborda o surgimento e desenvolvimento das economias agrícolas, que começaram há cerca de 11 mil anos e dominaram a maior parte da população mundial por pelo menos 6 mil anos. Essa era é dividida em vários períodos principais, incluindo o período formativo, o surgimento das primeiras civilizações hidráulicas, o período clássico (aproximadamente de 600 a.C. a 500/600 d.C.), o período pós-clássico e o início do período moderno (1450 a 1750).

Durante o período clássico, importantes sistemas filosóficos emergiram, abordando a definição de felicidade. O capítulo também menciona o impacto das grandes religiões e o desenvolvimento dos entretenimentos populares, especialmente a partir de 300 d.C. até o século XVII. Essa periodização ajuda a entender a história da felicidade, embora não a defina completamente. Os capítulos seguintes exploram essas divisões cronológicas, destacando as transformações culturais e econômicas significativas ao longo da era agrícola.

O capítulo "Os primórdios da sociedade agrícola" explora a transição das sociedades de caçadores-coletores para a agricultura, sugerindo que essa mudança pode ter reduzido o nível de felicidade humana. As sociedades de caçadores-coletores eram relativamente igualitárias, com boa nutrição e menos desigualdade, mas a introdução da agricultura trouxe novas dificuldades, como dietas menos nutritivas, maior carga de trabalho, doenças e desigualdades sociais e de gênero.

A agricultura permitiu maior produção de alimentos e crescimento populacional, mas também gerou desigualdades significativas. Aristocratas e proprietários de terras desfrutavam de privilégios, enquanto a maioria enfrentava condições difíceis. As sociedades agrícolas desenvolveram narrativas de uma Era de Ouro passada, refletindo a percepção de uma deterioração em comparação com a vida anterior.

O capítulo sugere que, embora a agricultura tenha trazido avanços, também introduziu desafios que aumentaram a complexidade da felicidade humana. As sociedades agrícolas tiveram que criar novos modos de vida e conceitos para mitigar as dificuldades e buscar a felicidade, diferenciando-se das experiências mais simples e satisfatórias dos caçadores-coletores.

O capítulo "Dos filósofos: a felicidade no período clássico" explora como as sociedades clássicas, especialmente no Mediterrâneo e na China, desenvolveram filosofias e conceitos em torno da felicidade, refletindo sobre a sua natureza e como alcançá-la. Com o surgimento das primeiras civilizações, surgiram também ideias mais complexas sobre felicidade, influenciadas por condições objetivas e sistemas de valores. 

No Egito antigo, por exemplo, a felicidade era associada à gratidão aos deuses e à continuidade da vida terrena na vida após a morte, enquanto na Mesopotâmia, a visão era mais melancólica e os deuses exigiam obediência. No mundo clássico, debates filosóficos sobre a felicidade foram centrais, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e a razão como caminhos para a verdadeira felicidade, diferenciando-se dos prazeres materiais. Aristóteles, por exemplo, via a felicidade como uma atividade da alma expressando virtude, enquanto os estoicos defendiam a limitação dos desejos.

Na China, o confucionismo enfatizava a harmonia com a ordem natural e a importância das conexões humanas, enquanto o taoísmo valorizava a simplicidade e a sintonia com o universo. Ambas as tradições filosóficas buscavam distinguir o verdadeiro prazer da satisfação superficial, oferecendo uma visão que compensava as dificuldades da vida.

O capítulo também aborda o impacto dessas filosofias, questionando até que ponto influenciaram a experiência real de felicidade e destacando a tensão entre os conceitos filosóficos e as práticas populares de entretenimento. As filosofias clássicas tiveram um impacto duradouro, com o confucionismo moldando a visão chinesa de felicidade e as ideias gregas e romanas sendo reinterpretadas ao longo do tempo, especialmente com a ascensão de novas religiões.

O capítulo "Das grandes religiões: felicidade – e esperança?" analisa como as grandes religiões, surgidas principalmente entre 600 a.C. e 1400 d.C., impactaram as concepções de felicidade. Hinduísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo, embora distintas, compartilham a ideia de que a verdadeira felicidade transcende a existência terrena e está ligada a um plano espiritual ou vida após a morte.

O hinduísmo estabelece uma hierarquia de felicidade, culminando na realização espiritual após sucessivas reencarnações, enquanto o Budismo, fundado por Buda, propõe que a verdadeira felicidade resulta do desapego dos desejos mundanos, alcançando o Nirvana. O Cristianismo enfatiza a vida eterna no céu como a verdadeira felicidade, incentivando a esperança e a moderação dos prazeres terrenos. O Islamismo, semelhante ao Cristianismo, valoriza a vida após a morte, mas reconhece as bênçãos terrenas como dádivas de Deus.

Todas essas religiões ofereceram não apenas um caminho para a felicidade espiritual futura, mas também formas de alcançar satisfação e comunidade na vida presente, através de práticas como meditação, oração e caridade. No entanto, a ênfase na vida após a morte e a crítica aos prazeres mundanos também introduziram um elemento de ansiedade e culpa, especialmente no Cristianismo.

A expansão dessas religiões foi, em parte, uma resposta às instabilidades e desafios dos tempos, oferecendo esperança frente às dificuldades da vida terrestre. Elas continuam a influenciar as visões de felicidade até os dias atuais, destacando a tensão entre a vida material e a busca por um propósito espiritual mais profundo.

O capítulo "Prazeres populares" explora as atividades e diversões que proporcionaram satisfação e possivelmente felicidade nas sociedades agrícolas durante a "era religiosa". Embora não possamos medir a felicidade dessas atividades, elas claramente ofereciam momentos de prazer e alívio das duras rotinas de trabalho e das restrições da vida agrícola.

O trabalho, especialmente para artesãos urbanos, oferecia uma sensação de satisfação e orgulho, enquanto as atividades sexuais, embora limitadas por normas sociais e religiosas, ainda eram buscadas por muitos. A infância, apesar das dificuldades, proporcionava oportunidades de brincadeiras livres e espontâneas, que contrastavam com a supervisão adulta.

As sociedades agrícolas desenvolveram uma variedade de formas de entretenimento, como contação de histórias, jogos, esportes populares e festivais. Os festivais, em particular, eram eventos importantes que uniam comunidades em celebrações coletivas, oferecendo uma pausa vital nas rotinas diárias.

Esses prazeres populares, que frequentemente ocorreram em conjunto com atividades religiosas, mostravam a criatividade das pessoas em buscar diversão e satisfação, apesar das dificuldades da vida agrícola. As opções de entretenimento eram limitadas e esporádicas, mas proporcionavam momentos de felicidade que ajudavam a suportar a monotonia e as dificuldades do dia a dia.

O capítulo "A Revolução da Felicidade, 1700-1900" explora como, nos séculos XVII e XVIII, uma nova abordagem sobre a felicidade emergiu na Europa Ocidental e América do Norte, desafiando as concepções tradicionais e redefinindo expectativas pessoais. Este período, que se estendeu até o século XIX, coincidiu com a transição da Era da Agricultura para o início da sociedade industrial.

Durante esse tempo, debates intensos sobre o significado da felicidade surgiram, e várias tentativas foram feitas para implementar essas novas ideias. A Revolução Industrial trouxe mudanças significativas nos padrões de vida, lazer e vida familiar, complicando ainda mais a adaptação a essas novas expectativas de felicidade.

Embora descrita como uma "revolução", essa transformação foi inicialmente limitada ao Ocidente, com seu impacto global sendo restrito por um tempo considerável. O poder imperial e econômico da Europa durante esse período pode ter retardado a disseminação global dessas novas ideias sobre felicidade.

O capítulo "A Revolução da Felicidade no Ocidente" analisa como, durante os séculos XVIII e XIX, uma mudança significativa nas ideias sobre felicidade ocorreu na Europa Ocidental e na América do Norte. Essa revolução foi marcada pela crença de que os seres humanos podiam controlar seus destinos e que o prazer e o conforto terrenos eram objetivos legítimos. A felicidade passou a ser vista como algo que deveria estar ao alcance de todos, com sociedades bem organizadas ampliando as oportunidades para a satisfação mental e material.

Essa nova abordagem desafiou ideias mais antigas que associavam a felicidade à virtude ou à vida após a morte. O Iluminismo desempenhou um papel crucial ao promover a razão e sugerir que o progresso e a melhoria contínua eram possíveis. A felicidade passou a ser discutida não apenas como um conceito filosófico, mas também como um objetivo social e político, com implicações para a organização da sociedade e das políticas governamentais.

A revolução da felicidade trouxe novos comportamentos, como um aumento no consumismo e uma maior ênfase no prazer individual. O individualismo ganhou destaque, e a busca pela felicidade tornou-se um direito pessoal. Essa transformação também influenciou movimentos sociais e políticos, inspirando protestos populares e revoluções que buscavam a felicidade coletiva através de reformas.

Apesar das críticas e resistências de grupos religiosos e conservadores, as novas ideias sobre felicidade tiveram um impacto duradouro, moldando expectativas e comportamentos que ainda influenciam as sociedades ocidentais modernas. A revolução da felicidade não foi universalmente aceita, mas marcou uma mudança fundamental nas percepções de felicidade e nos objetivos de vida.

O capítulo "A Expansão da Felicidade? As Novas Expectativas Encontram a Sociedade Industrial" analisa como o século XIX viu a continuidade da revolução da felicidade iniciada no século XVIII, enquanto a sociedade enfrentava os desafios e transformações da Revolução Industrial. As ideias de felicidade se expandiram, influenciando práticas culturais e sociais no Ocidente, mas também enfrentaram novos desafios.

O século XIX presenciou a incorporação contínua de ideias iluministas sobre felicidade, destacando o prazer e a satisfação pessoal. No entanto, a industrialização trouxe mudanças significativas na estrutura social, separando família, trabalho e lazer. As famílias começaram a ser vistas como refúgios emocionais, e a felicidade familiar tornou-se um ideal valorizado.

A industrialização também complicou a relação entre trabalho e felicidade, com muitos trabalhadores enfrentando condições difíceis e alienação. No entanto, a crescente atenção ao lazer e ao consumismo abriu novos caminhos para a busca da felicidade. O aumento do tempo de lazer e a disponibilidade de novos produtos e entretenimentos, como parques de diversões e esportes, contribuíram para a satisfação individual e coletiva.

Apesar das novas oportunidades, a felicidade no século XIX foi marcada por desigualdades de classe e gênero, e as expectativas de felicidade nem sempre foram alcançadas. A sociedade industrial trouxe novas tensões, mas também expandiu as possibilidades para a busca da felicidade no contexto moderno.

O capítulo "Mudanças Globais nos Séculos XVIII e XIX" explora como, durante esse período, as ideias ocidentais sobre felicidade não se difundiram globalmente de maneira uniforme. Enquanto o Ocidente passava por transformações culturais e econômicas, muitas regiões mantinham suas tradições religiosas e culturais, com continuidade prevalecendo sobre a mudança.

Na China e no Império Otomano, as tradições existentes, como o confucionismo e as reformas do Tanzimat, continuaram a influenciar as concepções de felicidade, apesar das pressões externas e internas. Na China, a instabilidade econômica e social, agravada pela interferência ocidental, levou à Rebelião Taiping, que misturava valores cristãos e chineses em uma busca por felicidade por meio da obediência coletiva.

O imperialismo europeu trouxe impactos negativos significativos, especialmente na América Latina e na África Subsaariana, onde a colonização e a exploração econômica provocaram sofrimento e uma visão de mundo marcada pela melancolia. Na América Latina, o pensamento iluminista influenciou líderes como Simón Bolívar, que defendiam a felicidade através da independência e do nacionalismo.

Na Rússia e no Japão, as reformas e a industrialização criaram contextos distintos. Na Rússia, a modernização gerou debates entre ocidentalizadores e conservadores, enquanto no Japão, a era Meiji promoveu a industrialização e uma mistura de tradições japonesas com influências ocidentais, sem adotar completamente as ideias ocidentais de felicidade. Apesar de algumas influências ocidentais, muitas regiões mantiveram suas tradições e desenvolveram respostas únicas às pressões externas e internas, resultando em um mosaico complexo de atitudes em relação à felicidade que persistiriam no século XX.

No início do século XXI, a cultura do sorriso se tornou um fenômeno global, impulsionada pelas redes sociais, onde mostrar felicidade em selfies se tornou uma norma. No entanto, não havia uma história única da felicidade globalmente, com abordagens variando entre diferentes regiões, influenciadas por padrões materiais e tradições culturais.

Apesar das diferenças, algumas tendências comuns surgiram, principalmente a influência da cultura de consumo ocidental, que se espalhou com a industrialização e urbanização global. Isso ajudou a desafiar ideias antigas sobre felicidade e começou a formar uma abordagem mais global ou multirregional.

No Ocidente, o compromisso com a felicidade permaneceu forte, mas enfrentou desafios internos e influências de outras culturas. Paralelamente, houve tentativas deliberadas de desenvolver alternativas aos modelos ocidentais de felicidade, como no comunismo e em atualizações de valores tradicionais.

O século passado também foi marcado por divisões cronológicas internas, como as disputas sobre felicidade nas décadas após as guerras mundiais e a Grande Depressão. Após 1945, com o fim da Guerra Fria, algumas dimensões globais da felicidade começaram a emergir, interagindo com tendências regionais.

Com a industrialização se expandindo globalmente, as últimas décadas possibilitam uma avaliação provisória das implicações da industrialização para a felicidade, comparando-as com o advento da sociedade agrícola, embora as conclusões permaneçam complexas e inconclusivas.

O capítulo "Disputa pela Felicidade, 1920-1945" explora as diversas tendências que influenciaram a felicidade durante o período das guerras mundiais e da Grande Depressão. A Primeira Guerra Mundial causou um impacto negativo significativo na felicidade na Europa Ocidental, gerando pessimismo e desespero. Por outro lado, nos Estados Unidos, houve uma continuidade e ampliação dos temas de felicidade, com o desenvolvimento de novas abordagens culturais e de consumo.

O surgimento do fascismo na Europa rejeitou a primazia da felicidade individual, enfatizando o dever e a lealdade ao Estado em vez de prazeres pessoais. Movimentos anticoloniais e nacionalistas, liderados por figuras como Gandhi e Ataturk, promoveram visões alternativas de felicidade, muitas vezes baseadas em tradições culturais e na construção de nações independentes.

Apesar das dificuldades econômicas e sociais, algumas sociedades ocidentais continuaram a buscar o prazer, com a indústria do entretenimento desempenhando um papel importante. Nos Estados Unidos, a felicidade permaneceu um tema central, com inovações como a Disney e a trilha de risadas na mídia, além de esforços para associar felicidade ao trabalho por meio da Psicologia industrial.

O período também viu mudanças significativas na relação com a morte e o luto, com a morte se tornando menos comum e mais distante na experiência cotidiana, resultando em uma redefinição de práticas de luto e uma ênfase em emoções positivas.

A diversidade de abordagens à felicidade nesse período reflete a complexidade global das décadas entre guerras, com diferentes regiões desenvolvendo suas próprias respostas às crises e desafios, muitas vezes em oposição aos modelos ocidentais tradicionais.

O capítulo "Felicidade Comunista" examina como as sociedades comunistas, começando com a União Soviética em 1917, abordaram o conceito de felicidade. Os líderes comunistas enfrentaram o desafio de definir a felicidade de maneira distinta do Ocidente, que associavam ao consumismo e ao individualismo burgueses. Em vez disso, os comunistas procuraram promover a felicidade através do progresso social, igualdade e um ideal de futuro sem classes.

Na União Soviética, a felicidade foi associada ao trabalho árduo e ao progresso coletivo, com ênfase na educação, saúde pública e mobilidade social. Propagandas e programas coletivos, como férias patrocinadas pelo Estado, foram usados para promover um senso de satisfação popular. No entanto, o consumismo individual foi desencorajado, e os produtos disponíveis eram frequentemente de baixa qualidade.

Na China comunista, sob a liderança de Mao Tsé-Tung, a felicidade também foi vinculada ao progresso coletivo e à lealdade ao Partido. A educação e a saúde pública foram ampliadas, mas a ênfase estava na transformação social e cultural, com pouca atenção aos bens materiais. A Revolução Cultural promoveu a ideia de felicidade através do trabalho árduo e do sacrifício coletivo.

Ambos os regimes enfrentaram dificuldades em equilibrar a promoção de uma felicidade distinta com as pressões da industrialização e do consumismo. Após o colapso da União Soviética e as reformas na China, ambos os países viram um aumento no consumismo e um retorno a valores mais individuais. No entanto, ainda enfrentam desafios em definir e promover a felicidade em um contexto pós-comunista, com um legado de abordagens anteriores e novas pressões sociais e econômicas.

O capítulo "Comparando a Felicidade nas Sociedades Contemporâneas" aborda a complexidade de comparar a felicidade entre diferentes países, destacando as dificuldades devido a diferenças culturais e de linguagem. Após a Segunda Guerra Mundial, as características regionais continuaram a influenciar as concepções e níveis de felicidade, mesmo com o aumento dos contatos globais.

Dois grandes projetos de pesquisa foram realizados no final dos anos 1950 e início dos 1960, e novamente nos anos 1970, analisando expectativas e preocupações em vários países. As conclusões mostraram que, embora fatores econômicos fossem importantes, as visões culturais e políticas desempenhavam um papel significativo na formação das expectativas de felicidade. As pesquisas revelaram que as esperanças superavam as preocupações na maioria dos lugares, mas as diferenças culturais influenciavam as visões sobre família e riqueza.

Estudos de caso sobre a Índia e o Japão ilustram essas diferenças. Na Índia, tradições espirituais e o foco na família influenciam as concepções de felicidade, enquanto o consumismo e o entretenimento moderno estão em ascensão. No Japão, o conceito de ikigai, que combina dever e realização pessoal, guia a busca pela felicidade, mas também enfrenta desafios devido à estagnação econômica e mudanças sociais.

O capítulo destaca que a felicidade não se correlaciona diretamente com indicadores econômicos e que as comparações entre países são complexas. No entanto, a análise comparativa é essencial para entender as diferenças regionais e refletir sobre as próprias concepções de felicidade. A globalização continua a promover uma mistura de influências culturais em relação à felicidade.

O capítulo "A Sociedade Ocidental na História Contemporânea: Cada Vez Mais Feliz?" explora se a sociedade ocidental está se tornando mais feliz ao longo do tempo, analisando fatores culturais, econômicos e sociais. A pesquisa de 2015 destacou que pais em sociedades ocidentais, como França, Canadá e Estados Unidos, priorizam a felicidade dos filhos, refletindo um compromisso cultural contínuo com a felicidade.

O capítulo afirma que a revolução da felicidade continua forte no Ocidente, mas também levanta questões e desafios. O consumismo desempenha um papel central, com um aumento significativo na busca por bens materiais e experiências como um caminho para a felicidade. A Disney, a literatura de autoajuda, a publicidade e as happy hours são exemplos de como a cultura ocidental promove a felicidade.

No entanto, novas questões surgem, como o paradoxo de Easterlin, que mostra que o aumento da prosperidade não se traduz necessariamente em maior felicidade. Além disso, a pressão cultural para ser feliz pode tornar a tristeza e a depressão mais difíceis de lidar, afetando a saúde mental.

A psicologia positiva e os programas de bem-estar surgiram como respostas para ajudar indivíduos a encontrar a felicidade duradoura, enfatizando o florescimento humano e a gratidão. Embora esses movimentos tenham ganhado popularidade, eles também enfrentam críticas por serem excessivamente otimistas.

Em resumo, a sociedade ocidental mantém um compromisso forte com a felicidade, mas enfrenta desafios significativos, incluindo as complexidades do consumismo, as expectativas de felicidade e as implicações emocionais dessas dinâmicas.

O capítulo "A Felicidade se Globaliza" explora como a aceleração da globalização no final do século XX e início do XXI influenciou as concepções de felicidade em todo o mundo. Enquanto as diferenças culturais e econômicas persistem, surgiram características globais de felicidade que vão além da simples adoção dos padrões ocidentais por outras sociedades. Esses padrões refletem reações à urbanização, melhorias nos padrões de vida e saúde, e contribuições de outras regiões, como o Sul da Ásia, enriquecendo as discussões globais sobre felicidade.

A globalização trouxe um foco maior na felicidade como meta política, com a ONU estabelecendo o Dia Internacional da Felicidade em 2012. Governos ao redor do mundo, incluindo os Emirados Árabes Unidos e a Nova Zelândia, criaram programas específicos para promover o bem-estar e a felicidade, enquanto iniciativas de bem-estar e psicologia positiva se espalharam globalmente.

O capítulo também discute como o consumismo e as celebrações de boas festas se tornaram fenômenos globais, com o Natal e aniversários sendo comemorados em muitos países. Além disso, práticas culturais de diferentes regiões, como a meditação do Sul da Ásia e o método Konmari do Japão, influenciaram abordagens globais à felicidade.

A Pesquisa Mundial de Valores fornece dados sobre tendências de felicidade ao longo do tempo, mostrando que a maioria dos países viu melhorias nos níveis de felicidade entre 1981 e 2007, embora desafios recentes, como a Grande Recessão e a pandemia de coronavírus, tenham impactado negativamente alguns países. Enquanto o interesse global pela felicidade aumentou e as definições se expandiram, as diferenças culturais e regionais continuam a complicar o quadro, tornando difícil prever o futuro da felicidade global.

O capítulo "Conclusão" aborda a complexidade e a evolução da felicidade ao longo da história, ressaltando que a felicidade tem sido influenciada por fatores como religião, iluminismo, capitalismo e cultura popular. A felicidade é uma emoção que variou em significado e prática dependendo das circunstâncias históricas e culturais.

A história da felicidade é complexa e não segue uma narrativa linear. Diferentes regiões e épocas têm suas próprias abordagens, e a pesquisa sobre o tema ainda é desigualmente distribuída, com um foco desproporcional no Ocidente. A relação entre textos formais sobre felicidade e práticas populares concretas é um desafio recorrente, e a religião desempenha um papel central, mas variado, na definição da felicidade.

Alguns temas recorrentes na história da felicidade incluem o equilíbrio entre hedonismo e satisfação duradoura, as aspirações pessoais, a sorte versus a agência humana, e o papel da família. Esses temas ajudam a organizar comparações e a entender as escolhas feitas por indivíduos e sociedades.

Importantes pontos de inflexão na história da felicidade incluem a transição para a agricultura e civilizações formais, o advento de religiões complexas e a "revolução da felicidade" no Ocidente a partir do século XVIII. A industrialização trouxe novos desafios e oportunidades para a felicidade, com melhorias materiais, mas também novas tensões e expectativas.

O capítulo finaliza ressaltando a fragilidade da felicidade, tanto para indivíduos quanto para sociedades, e a importância de se considerar o bem maior ao buscar a felicidade. A história oferece insights sobre como diferentes abordagens à felicidade evoluíram e quais podem ser seus pontos fortes e limitações.

A obra oferece uma fascinante jornada pela história da felicidade, revelando como essa emoção universal é moldada por contextos históricos e culturais variados. Desde as concepções religiosas até as influências do iluminismo e do capitalismo, o livro traça um panorama enriquecedor sobre as mudanças nas percepções de felicidade ao longo do tempo.

Os capítulos exploram como diferentes eras e regiões definiram a felicidade de maneiras únicas. Na "Era da Agricultura", a transição para sociedades agrícolas trouxe novos desafios, como desigualdades e dificuldades, mas também narrativas de uma Era de Ouro perdida. As filosofias clássicas deram forma a conceitos de felicidade, com os gregos e romanos enfatizando a virtude e os chineses, a harmonia e simplicidade.

O surgimento das grandes religiões introduziu a ideia de felicidade transcendente, ligada a um plano espiritual. Já a "Revolução da Felicidade" nos séculos XVIII e XIX, impulsionada pelo iluminismo, redefiniu a felicidade como um direito humano, inspirando movimentos sociais e políticos.

O livro também aborda como a globalização e a industrialização impactaram as concepções de felicidade, trazendo novos desafios e oportunidades. A era contemporânea vê a felicidade se tornar uma meta política global, com influências de práticas culturais de todo o mundo.

Com uma análise rica e detalhada, a obra destaca a complexidade da felicidade e a importância de considerá-la em contextos históricos e culturais. É uma leitura envolvente que oferece insights sobre como a busca pela felicidade continua a evoluir e a influenciar nossas vidas.

O AUTOR

Peter N. Stearns formou-se em História em Harvard e é professor de História na George Mason University, nos Estados Unidos. Escreveu muito sobre história mundial e sobre o campo cada vez mais importante da História das emoções e ministra disciplinas em ambas as áreas regularmente. Desde cedo se destacou pela atividade docente (trabalhou na Universidade de Chicago, Rutgers, entre outras) e pelo empenho em escrever livros, tanto para especialistas, quanto para um público mais amplo. Foi editor de importantes publicações especializadas nos EUA, como o Journal of Social History. Sua preocupação com a história mundial e seu empenho em mostrar práticas sociais em diferentes culturas orientaram a escrita de importantes livros, como "A infância", "História das relações de gênero", "História da sexualidade" e "História da Felicidade", publicados pela Contexto.


Resenha: Noites cruas, de Jean Soter

Divulgação / Mandawa Estúdio

APRESENTAÇÃO

Expulsa de casa após uma briga com a mãe, Karina conhece a garota de programa Rose em um posto de gasolina na rodovia. Naquela mesma noite, saem com dois caminhoneiros.

Noites Cruas centraliza seu enredo na trajetória errática dessas duas mulheres, com seus sonhos, frustrações e esperanças, e tem como cenário a rua, o bordel, a rodovia.

RESENHA

Em “Noites cruas”, Jean Soter nos mostra que a vida acontece mesmo quando a maioria não está prestando atenção. Focado na trajetória de duas personagens, Karina e Rose, esse romance leva o leitor para a beira da estrada. Mas essa história não é uma road trip divertida de duas amigas universitárias fazendo um mochilão para descobrir o que querem fazer da vida, Karina e Rose são prostitutas que têm seus destinos costurados uma a outra em um banco de posto de gasolina.

“Mulher de vida fácil”, diz a cultura popular para se referir às putas. “Mulher perdida” também. Jean Soter, ao retratar essa face da vida noturna, foge de frases prontas como essas. Lírico, cru, fluido, a obra expõe os riscos vividos no ofício, o efeito do envelhecimento nos rendimentos das mulheres que vivem de programa, a miséria que as ameaça até em tempos de bonança e os laços afetivos possíveis nesse contexto, sem jamais impor julgamentos morais ao leitor.

As ilustrações de Pedro Graça ajudam a compor a atmosfera do livro. Em especial, as imagens que abrem os onze capítulos e tem como característica o fundo escuro, como a noite, e o traço branco que parece ter sido feito de giz em um quadro negro e pode ser apagado a qualquer momento.

Mais do que sobre prostituição, “Noites cruas” é sobre travessia. Suas personagens estão tentando criar meios de seguir em frente. As rodovias que cortam esse romance são as passagens que Karina e Rose encontram para levar a vida adiante. E, nessa lida de tentar sobreviver, elas percorrem cidades nunca nomeadas, se afastam do ponto de partida e também voltam atrás, enquanto reconhecem e também estranham as mudanças promovidas pelo tempo nas paisagens e nelas mesmas.

Thaís Campolina é escritora, mediadora de leitura e especialista em Escrita e Criação pela Unifor. Seu livro de poesia “eu investigo qualquer coisa sem registro” (2021) foi premiado no concurso Poesia InCrível 2021. Sua próxima obra será publicada em breve pela Macabéa Edições.

O AUTOR


Jean Soter é autor das coletâneas de contos A Transferência (2007) e O Vendedor (2018). No momento, trabalha como autônomo no mercado de ações; nos intervalos, lê e escreve literatura. Natural do interior de São Paulo, onde nasceu em 1974, vive no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, desde 2009.

Escritora e roteirista carioca Luiza Conde explora o tempo e a morte por meio do fantástico e do terror em “Relógios partidos”

Comtato / Divulgação / Acervo Pessoal

Rituais longínquos, maldições pregadas na parede e amigos monstruosos. Um ônibus para lugar nenhum, um metrô infinito e uma coleção sanguínea. Esses são cenários que atravessam “Relógios partidos” (Editora Litteralux, 114 páginas), o primeiro livro da roteirista carioca Luiza Conde (@luizacma). Com uma carreira profícua no roteiro, Luiza agora se lança na literatura fantástica com 12 contos sobre o tempo e os principais medos que acometem a humanidade: envelhecer, ficar só, errar, escolher, morrer, viver. 


A obra tem texto de orelha assinado pelo escritor e pesquisador Leonardo Villa-Forte. Dividido em três partes que remetem ao passado (“Tempos que foram”), presente (“Tempos que são”) e futuro (“Tempos que podem ser”), “Relógios partidos” é influenciado pelas obras de autoras que conversam com o insólito e o terror, como Mariana Enriquez, Lygia Fagundes Telles, Silvina Ocampo e Socorro Acioli. 


“O tempo sempre foi uma ideia fascinante para mim, desde pequena. Sempre amei histórias de viagem no tempo, com as suas intrincadas regras de funcionamento e os seus paradoxos”, conta Luiza. Em “Relógios partidos”, o tempo pode ser medido pelas noites passadas em claro desejando um bibelô, os anos lamentando escolhas não feitas, as badaladas defeituosas de um sino, os vagões de um trem, as horas dedicadas a construir uma máquina do tempo ou a duração de uma jornada para um destino desconhecido. “Acho incrível que consigamos dar formas ao futuro, algo que ainda não existe”, explica, justificando a temática escolhida. “E que tenhamos um passado coletivo compartilhado que nos impacta mesmo que não o tenhamos vivido.” 


“Relógios partidos” nasceu de uma oficina de escrita de contos ministrada por Leonardo Villa-Forte. O processo de escrita e reescrita foi atravessado por duras perdas na vida da autora: primeiro o pai, depois a mãe. No livro, a morte aparece como um catalisador de transformações internas e externas nas personagens. “O livro traz uma mensagem de não conformismo, tanto de um ponto de vista individual, de romper com os papéis que somos obrigados a performar socialmente, com o que é esperado de nós; quanto coletivamente de ruptura com o status quo”, define a escritora, frisando que a obra sustenta algo que lhe é muito caro artisticamente. “A ideia de que a arte deve causar algum tipo de incômodo, de desconforto, de deslocamento, porque isso gera reflexão e investigação”, aponta.


Processos de escrita e projetos futuros


Nascida no Rio de Janeiro em 1989, Luiza é formada em Letras — Português e Russo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou no mercado editorial por dez anos. Mas desde cedo soube que queria escrever: “Sempre adorei ler, e já pequena veio essa vontade de contar as histórias que surgiam na minha cabeça. Escrevi meu primeiro livrinho aos 9 anos. Mas foi com 13, depois de ler ‘Crime e Castigo’ [de Fiódor Dostoiévski], que a ideia de ser escritora de fato surgiu”, recorda. Entre os autores que inspiram sua escrita, a autora vai de clássicos, passando pela ficção científica e o realismo mágico latino-americano, citando Machado de Assis, Jorge Luis Borges, William Faulkner, Sylvia Plath, Clarice Lispector, Adolfo Bioy Casares, Ursula K. Le Guin e Isaac Asimov. 


Luiza trocou o mercado editorial pelo audiovisual aos 27 anos, área em que atua até hoje. Como roteirista, trabalhou nas séries “Sem filtro” (Netflix), “Vai que cola” (Multishow) e “Detetives do prédio azul” (Gloob), e é coautora do longa “Jogada ensaiada” (Vitrine Filmes), vencedor do Prêmio Cabíria na categoria Argumento de longa infantojuvenil em 2021. 


O futuro de Luiza Conde está cheio de estreias. Ela também pretende começar a escrever seu primeiro romance, “A Hóspede”, em breve, além de lançar uma nova coletânea de contos fantásticos, dessa vez com a temática dos labirintos. Em 2025, estreia a primeira peça que assina como dramaturga, “Memórias da superfície”, uma sátira sobre influenciadores e a nossa relação com redes sociais.


Confira um trecho do livro (pág. 69):


“Sou capaz de jurar de pés juntos que o monstro que vivia debaixo da minha cama era bastante amigável. Mas na primeira noite em que eu dormi sozinha na casa, sua aparição provocou em mim uma reação bastante insensata, e até (tenho vergonha de admitir agora depois de tantos anos) um pouco ridícula.”


Adquira “Relógios partidos”, de Luiza Conde, no site da Editora Litteralux: https://www.editoralitteralux.com.br/loja/relogios-partidos?utm_source=IGShopping&utm_medium=Social 

Veronica Botelho lança “Inverno”, uma reflexão sobre os relacionamentos que moldam a personalidade a partir de uma família inter-racial

Acervo Pessoal / Divulgação / Comtato

Fruto de uma relação interracial, mas criada unicamente pela parte branca da família, Isabel é uma mulher em busca de sua própria identidade. A piauiense Veronica Botelho (@verobotelho) apresenta Inverno” (e-Galáxia, 178 págs.), seu novo livro de “As Estações”, série não sequencial que começou com o romance “Verão”, publicado em 2023. 


O racismo desde o ambiente familiar é o ponto de partida da história de Isabel. Longe de ser apenas um artifício ficcional, o preconceito em famílias inter-raciais é uma realidade presente em muitas casas brasileiras. A psicóloga social Lia Vainer Schucman, especialista em estudos de branquitude, investiga as tensões entre cor e amor a partir da ideologia do embranquecimento que aponta branco como “melhor” ou superior e determina também a hierarquia do indíviduo negro no ambiente familiar.


Em “Inverno”, Isabel sente na pele essas tensões. Na relação com avó branca, por exemplo, que condiciona o afeto que destina a garota ao “apesar” de sua cor. Mesmo na interação Madalena, mãe amorosa de Isabel, o racismo aparece em pequenos elementos do cotidiano, como a própria defesa da avó racista.


Apesar de ser uma história totalmente independente, “Inverno” se passa no mesmo universo de “Verão”. Rebecca, protagonista do primeiro livro, é personagem também na nova história — a amiga próxima de Isabel desempenha um papel central no processo de autodescoberta e os conflitos resultantes desse relacionamento. 



Comtato / Divulgação / Acervo Pessoal


Uma mulher a procura de si


Isabel cresceu com a família materna em Maceió (AL), em um lar marcado por tensões raciais e silêncios que desvalorizam seu esforço em se encaixar. Criada pela mãe Madalena, sem saber quase nada sobre a origem do pai, a única referência que tem do mesmo é o relato de um abandono paterno, enfatizado constantemente pelo racismo da própria avó.


A personagem inicia sua jornada de autodescoberta a partir da revelação de cartas escritas pelo pai que contradizem a narrativa de sua origem que a acompanha desde o nascimento. A jornada de se aproximar do pai Renato e, principalmente, da tia Clotilde, transforma-se em um mergulho em suas raízes e na descoberta de sua ancestralidade, que foi sempre negada ao viver em um lar predominantemente branco. 


Nesse processo, Isabel se muda para Aracaju (SE) e posteriormente para a Itália, onde, na companhia de Rebecca e outras amigas, busca entender quem realmente é, enquanto lida com a solidão, o peso da expectativa familiar e a descoberta de sua sexualidade. 


Por vezes a solidão é o principal antagonista de Isabel, uma personagem com dificuldade de expressar-se livremente e entender seus próprios sentimentos. Nesse contexto, a personagem se envolve com Regina, uma mulher tão fascinante quanto complicada que interfere diretamente no amadurecimento de Isabel e também nas relações que ela estabelece a partir disso. 


A tensão dos relacionamentos familiares, de amor e amizade estão no centro da história de “Inverno”. Passando por inúmeros episódios onde o afeto se torna uma ferramenta abusiva e limitadora, Isabel precisa entender qual é o seu próprio caminho independente das pessoas que a cercam.


Da psicologia à escrita: conheça Veronica Botelho


Natural de Floriano, no Piauí, Veronica Botelho é licenciada em Psicologia Social e das Organizações pela Universidade de Florença,  e atualmente cursa mestrado em Psicologia e Neurociência da Saúde Mental no King’s College London. Seu primeiro livro de ensaios, “Meias Verdades”, foi publicado em 2016. A autora viveu no Brasil, Costa do Marfim, Inglaterra, Bolívia, Argentina, Espanha, Itália e Catalunha, onde teve experiência na atenção e inclusão de pessoas portadoras de diferentes transtornos mentais, e voluntariado com pessoas  refugiadas. 


Os estudos de Veronica sempre foram direcionados a entender as diferenças, inicialmente com foco no universo acadêmico. “O que escrevia, estudava, tinha um único intuito: como podemos conviver pacificamente aceitando as nossas diferenças”, explica. O primeiro livro da autora, “Meias Verdades” é um compilado de crônicas que refletem sobre o tempo, amor, racismo, xenofobia e ética política.


A autora lembra de sempre ter escrito muito para si mesma. “Minha avó dizia que eu escrevi a minha primeira poesia quando tinha 4 anos”, recorda-se. Ela passou por agendas e diários, chegou a escrever peças de teatro na escola, além de participar de um jornal escolar. Morando fora, o hábito de enviar cartas para família e amigos também compôs sua experiência na escrita.


Desde a escrita de “Verão”, sua primeira incursão pela ficção, Veronica já sabia que faria uma tetralogia. “As histórias se interconectam. São histórias que se encaixam, sem serem sequenciais”, explica, apontando que suas personagens também têm muito em comum com suas próprias experiências. Como Rebecca, protagonista de “Verão”, a autora perdeu o pai na infância. Aborda também sua experiência de imigração, “bilinguismo”, retratada em “Inverno”.


Do Inverno ao florescer de Isabel


Frisando a importância das amizades e das conexões, Veronica acredita que “Inverno” tem como mensagem os relacionamentos que nos moldam e como o passado faz parte da construção do presente. Com seu estilo de escrita intimista e reflexivo, a autora entrega uma narrativa fragmentada que se usa da não linearidade para transitar em diferentes tempos e espaços. 


Como primeiro romance,  a escrita de “Verão” começou quase como uma brincadeira, sugestão do parceiro da autora. “Escrevê-lo foi uma das experiências mais fascinantes da minha vida”, conta Veronica, que chegava a passar sete ou oito horas escrevendo sem parar. “Entrava em estado de flow. Aquele hic et nunc onde os insights surgem, se interconectam, e a arte nasce.”


A autora descreve esse estado como hipnótico e destaca a importância de respirar literatura nesse processo: “Quando não estava escrevendo o livro, estava lendo”. Veronica levou apenas dois meses e meio para escrever “Verão”, durante o inverno na cidade província de Girona na Espanha, parte da comunidade autônoma da Catalunha. A escrita de “Inverno” é uma curiosa resposta ao primeiro livro, que escreveu durante o verão na mesma cidade.


Veronica conta que suas influências são diversas, seja na arte ou nas conversas que escuta dentro de ônibus, bares, etc., em seu dia a dia. Na literatura, reconhece que sua iniciação foi marcada por homens brancos. “Luis Fernando Veríssimo por muitos anos foi o meu maior ídolo. Li praticamente tudo o que ele publicou”, comenta, citando outros nomes de referência, como Nelson Rodrigues e Caio Fernando de Abreu. Mas a autora também pontua a importância de escritoras como Clarice Lispector, Rosamunde Pilcher e Isabel Allende.


Atualmente consumindo bastante literatura contemporânea brasileira, a escritora destaca autores como Giovana Madalosso, Jeovanna Vieira, Carla Madeira, Julia Dantas, Tiago Ferro e Nara Vidal em sua prateleira. A experiência no exterior também marcou sua formação com a descoberta de autoras como Toni Morrison, Maya Angelou e Chimamanda Adichie.



Confira um trecho do livro:

“Naquele instante, Isabel se viu como o piso da sua avó, os tecidos da sua tia, e aquele vaso de Florença: pedaços de muitos lugares, algumas cicatrizes que eram apenas marcas que a tinham feito mais forte, e outras que se abriam em carne viva, como as goteiras do teto da casa de sua mãe.”


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Escritor mineiro Breno Ribeiro retrata em “thriller familiar” as dores da perda de um filho em meio à desigualdade social


Duas famílias distintas. Uma de classe média alta e outra de periferia. Em uma delas, um casal de elite com seus dois filhos, a típica família perfeita para os que veem de fora. Na outra, um casal de periferia que luta para conseguir pagar os medicamentos da mãe de um deles. Este é o ponto de partida do breve romance “cicatriz” (112 págs.), do escritor mineiro Breno Ribeiro, recém-lançado pela Caravana Editorial. 


Atualmente vivendo no Rio de Janeiro, o autor é formado em Letras e professor de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado em Estudos da Linguagem na PUC-Rio e um curso livre de Formação em Roteiro pela Academia Internacional de Cinema do Rio. Breno traz em seu segundo romance uma história que reúne três dos mais imponentes sentimentos humanos: a justiça, a vingança e a culpa. Através da história de poucos mas inesquecíveis personagens, retrata um quadro não incomum em nossa sociedade. 


Estruturada em três partes,“cicatriz” acompanha duas histórias paralelas: de um lado, a família de Júlia e Humberto, com seus filhos Ana Lúcia e Pedro. De classe alta, a família passa por desentendimentos de ordem sociopolítica: o pai, de extrema-direita, não aceita a filha lésbica, enquanto o filho, recém admitido na universidade, passa a ser o foco de atenção do casal. Do outro lado, Pietro e Fabiana são um casal de periferia que esperam um filho enquanto precisam lidar com a doença da mãe de Pietro. Diante da gravidade do caso, Pietro se vê praticando pequenos crimes para conseguir pagar os remédios e a internação da mãe. 


Perante os dilemas éticos que vivem as personagens, “cicatriz” traça um panorama bastante complexo do sistema judiciário brasileiro, em que justiça nem sempre significa reparação dos danos causados e a prisão não é capaz sequer de aplacar os desejos de vingança das classes privilegiadas. Segundo Breno, o senso de justiça sempre esteve presente em sua vida. Certa vez, lendo uma notícia sobre um crime grave cometido contra uma família, o autor se deparou com uma advogada que havia trabalhado no caso se utilizando do conceito de justiça restaurativa. 


“Pensei muito sobre o conceito de justiça restaurativa e em como ele requer certa maturidade das partes envolvidas. Pensei também que, a depender do caso, isso não seria possível, esse perdão, essa quase elevação espiritual do absolver. Então me veio a vontade de escrever sobre isso, sobre essa impossibilidade do perdão e, por outro lado, a fervura da culpa”, completa.


Diante deste cenário que oscila entre sofrimentos, lágrimas, traumas e cicatrizes, Breno apresenta importantes reflexões, como na página 89: “Um mundo melhor não é um mundo sem crime, mãe, isso é uma utopia. Um mundo melhor é um mundo onde as pessoas cometam erros e possam ter a chance de crescer a partir deles. É nisso que eu acredito”.


Do thriller policial para um quase “thriller familiar”: as faces da escrita de Breno Ribeiro


Influenciado por autores clássicos como Machado de Assis, Mary Shelley e Gustave Flaubert, Breno nasceu em Juiz de Fora (MG), cresceu na cidade de Iguaba Grande, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Hoje, com 35 anos, mora no Rio, e leciona Língua Inglesa pela UFRJ. Em 2021, em plena pandemia, lançou seu primeiro romance em formato digital, o thriller policial “O Príncipe de Hugo Porto”.


Em seu segundo romance, “cicatriz”, o autor percebe os passos de amadurecimento em relação à sua carreira e vê a mudança de gênero literário como um motor para sua criatividade. “Esse livro representa um amadurecimento da minha escrita em relação ao meu primeiro romance, talvez pela mudança de gênero. A escrita desse livro me transformou. De certa forma, me permiti arriscar mais literariamente a tocar em pontos que não necessariamente fazem parte da minha experiência de vida”, analisa. A obra é fortemente influenciada pela literatura nacional contemporânea, por nomes como Andrea Del Fuego, Natalia Timerman e Jeferson Tenório, que trazem ambientes mais urbanos para o centro da narrativa.


Após “cicatriz”, o autor já pensa em escrever seu próximo livro, que vai se chamar “Limbo”, que conta a história de um casal que se separa, mas, por questões presentes no capitalismo tardio, são obrigados a morar juntos por um tempo até cada um ir para o seu canto. “O romance narrará os dois meses entre o término e a mudança de casas, quando cada um segue seu rumo”, revela. 



Confira alguns trechos de “Cicatriz”:

Talvez tenha sido na terceira via da favela que encontrou Fabiana – ela, assim, como ele, não se encaixava em nenhum dos estereótipos da comunidade.” (pág. 27)

“Não o abandonou porque sabia que ele era um homem bom: tudo aquilo que porventura a atingia eram os estilhaços do autoflagelo de Pietro.” (pág. 58)

Como no mito grego, Pietro estava eternamente condenado a empurrar sua culpa para o topo da absolvição apenas para vê-la rolar para baixo sempre que ele se distraía. (pág. 68)

“Um mundo melhor não é um mundo sem crime, mãe, isso é uma utopia. Um mundo melhor é um mundo onde as pessoas cometam erros e possam ter a chance de crescer a partir deles. É nisso que eu acredito. (pág. 89)


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