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Imagem: Estúdio Ghibi |
Em 2001, o mundo foi apresentado a uma das obras-primas do cinema de animação: As Viagens de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi), dirigido por Hayao Miyazaki e produzido pelo Studio Ghibli. Este filme japonês, vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2003 e do Urso de Ouro no Festival de Berlim, não é apenas uma história encantadora sobre uma menina perdida em um mundo mágico, mas uma profunda exploração de temas como identidade, coragem, consumismo e a relação entre humanos e natureza. Com uma bilheteria global de mais de US$ 395 milhões e uma aprovação de 97% no Rotten Tomatoes, As Viagens de Chihiro continua a cativar públicos de todas as idades, sendo um marco cultural que transcende fronteiras. Esta matéria mergulha no enredo do filme, analisando suas camadas narrativas, simbolismos e relevância em 2025, enquanto conecta a história a reflexões sobre o mundo contemporâneo.
O filme começa com Chihiro Ogino, uma menina de 10 anos, em um momento de transição. Mal-humorada e ansiosa, ela está de mudança com os pais para uma nova cidade, deixando para trás amigos e memórias. Durante a viagem, a família se perde e encontra um túnel misterioso em uma área rural. Curiosos, os pais de Chihiro decidem explorá-lo, levando a menina a contragosto. Do outro lado, eles descobrem o que parece ser um parque temático abandonado, com restaurantes repletos de comida. A ganância dos pais, que começam a comer desenfreadamente, desencadeia uma transformação assustadora: eles são transformados em porcos por uma força sobrenatural, deixando Chihiro sozinha em um mundo estranho que ganha vida ao anoitecer.
Esse mundo, como Chihiro logo descobre, é um reino espiritual habitado por kami (espíritos da mitologia xintoísta), monstros e criaturas fantásticas. Desesperada e com medo, ela encontra Haku, um menino misterioso que a ajuda a sobreviver. Haku revela que ela está em uma casa de banhos sobrenatural, gerenciada pela feiticeira Yubaba, onde espíritos vêm para descansar e se purificar. Para evitar desaparecer, Chihiro deve trabalhar para Yubaba, que rouba seu nome e a renomeia como Sen. Assim começa a jornada de Chihiro, uma menina comum forçada a encontrar coragem e inteligência para salvar seus pais e retornar ao mundo humano.
A Estrutura Narrativa
O enredo de As Viagens de Chihiro segue a estrutura clássica da jornada do herói, mas com a sensibilidade única de Miyazaki. Dividido em três atos principais, o filme acompanha a transformação de Chihiro de uma criança mimada e insegura em uma jovem resiliente e empática.
Ato 1: Entrada no Mundo Espiritual
Após a transformação de seus pais, Chihiro enfrenta o choque de estar em um ambiente hostil e desconhecido. A casa de banhos, um lugar opulento e caótico, é um microcosmo da sociedade, com hierarquias rígidas e trabalhadores explorados, como Kamaji, o operador da caldeira, e Lin, uma funcionária sarcástica que se torna aliada de Chihiro. Yubaba, a dona do lugar, é uma figura ambígua: uma feiticeira poderosa que controla seus funcionários roubando seus nomes, simbolizando a perda de identidade em um sistema opressivo. Ao aceitar trabalhar para Yubaba, Chihiro perde seu nome, mas ganha uma chance de sobreviver.
Este ato estabelece o tom mágico e surreal do filme, com a estética vibrante do Studio Ghibli trazendo à vida criaturas como sapos falantes, espíritos de rios e o enigmático Sem-Rosto, uma entidade que se torna central na trama. A trilha sonora de Joe Hisaishi, com sua mistura de melancolia e esperança, amplifica a sensação de estar em um mundo ao mesmo tempo belo e perigoso.
Ato 2: Desafios e Autodescoberta
No segundo ato, Chihiro enfrenta uma série de desafios que testam sua determinação. Ela é designada para tarefas árduas, como limpar banheiras imundas, e precisa lidar com a hostilidade de colegas e clientes, incluindo um “Espírito Fétido” que, na verdade, é um rio poluído buscando purificação. Essa cena, uma das mais memoráveis do filme, reflete a crítica de Miyazaki à destruição ambiental, mostrando como a ganância humana contamina a natureza. A habilidade de Chihiro em tratar o espírito com respeito e cuidado a diferencia dos outros trabalhadores, ganhando o respeito de Yubaba e de seus colegas.
Paralelamente, a relação de Chihiro com Haku se aprofunda. Ele a ajuda em segredo, revelando que já a conheceu no passado, mas também está preso ao controle de Yubaba. A descoberta de que Haku é, na verdade, o espírito de um rio dá a Chihiro uma pista para recuperar sua própria identidade. Enquanto isso, Sem-Rosto, fascinado pela bondade de Chihiro, começa a segui-la, mas sua presença desencadeia o caos quando ele tenta comprar afeto com ouro, expondo a ganância dos trabalhadores da casa de banhos. Chihiro, com sua pureza, é a única capaz de acalmar Sem-Rosto, mostrando que empatia é mais poderosa que bens materiais.
Ato 3: Resolução e Retorno
O clímax do filme ocorre quando Chihiro embarca em uma jornada para salvar Haku, que está mortalmente ferido após roubar um objeto mágico de Zeniba, a irmã gêmea de Yubaba. Viajando de trem por uma paisagem etérea, Chihiro chega à casa de Zeniba, que se revela gentil e a ajuda a entender o valor do amor e da memória. Em um momento crucial, Chihiro lembra que Haku é o espírito do rio Kohaku, onde ela quase se afogou quando criança. Essa revelação liberta Haku do controle de Yubaba, simbolizando a recuperação da identidade de ambos.
De volta à casa de banhos, Chihiro enfrenta um último teste: identificar seus pais entre um grupo de porcos. Com confiança, ela afirma que nenhum deles é seus pais, provando sua intuição e desapego do medo. Yubaba, cumprindo sua promessa, permite que Chihiro e seus pais, agora humanos novamente, retornem ao mundo real. O filme termina com Chihiro olhando para o túnel, pronta para enfrentar sua nova vida com coragem renovada, enquanto a trilha sonora ecoa um tom de esperança e renovação.
As Viagens de Chihiro é rico em simbolismos que elevam a narrativa a um nível universal. O roubo do nome por Yubaba representa a perda de identidade em sociedades consumistas, onde indivíduos são reduzidos a funções. A casa de banhos, com sua opulência e exploração, é uma metáfora para o capitalismo desenfreado, onde trabalhadores são explorados e a ganância prevalece. Sem-Rosto, uma figura ambígua que busca conexão, reflete a solidão e o vazio do consumismo, enquanto a bondade de Chihiro mostra o poder da empatia para curar.
A relação entre humanos e natureza é outro tema central. Miyazaki, conhecido por seu ambientalismo, usa o “Espírito Fétido” e Haku para criticar a poluição e o esquecimento das conexões espirituais com o meio ambiente. A jornada de Chihiro também é uma metáfora para o amadurecimento, mostrando como adversidades podem transformar insegurança em força interior. A espiritualidade xintoísta permeia o filme, com sua visão de que tudo — rios, florestas, até objetos — possui um espírito, incentivando o respeito pela natureza e pelos outros.
Contexto Histórico e Cultural
Lançado em 2001, As Viagens de Chihiro reflete as ansiedades do Japão no início do século XXI. A década de 1990, conhecida como a “Década Perdida”, trouxe estagnação econômica e uma crise de identidade cultural, com o consumismo ocidental desafiando valores tradicionais. Miyazaki, que escreveu o filme pensando em uma menina de 10 anos que ele conhecia, queria criar uma história que inspirasse jovens a encontrar propósito em um mundo materialista. A escolha de ambientar o filme em uma casa de banhos, um símbolo da cultura japonesa, reforça a valorização das tradições frente à modernização desenfreada.
O filme também dialoga com a mitologia xintoísta, que vê o mundo como habitado por espíritos. Elementos como o trem que atravessa um mar inundado e a figura de Zeniba evocam lendas japonesas, enquanto a estética do Studio Ghibli, com seus cenários detalhados e cores vibrantes, dá vida a esse universo. A universalidade da história, no entanto, garantiu seu sucesso global, com o filme sendo exibido em mais de 40 países e traduzido para 30 idiomas.
Em 2025, As Viagens de Chihiro permanece uma obra atemporal, com mensagens que ressoam em um mundo marcado por crises ambientais, desigualdades sociais e desafios à saúde mental. A crítica ao consumismo é especialmente relevante em uma era dominada por compras online e redes sociais, onde a pressão por consumo rápido é constante. Dados da ONU apontam que a indústria têxtil, um símbolo do consumismo, é responsável por 10% das emissões globais de carbono, ecoando as preocupações de Miyazaki com a poluição. No Brasil, o aumento de 15% no mercado de fast fashion em 2024, segundo a Abit, reforça a necessidade de refletir sobre os custos humanos e ambientais do consumo desenfreado.
A jornada de Chihiro também inspira reflexões sobre resiliência em tempos de crise. A pandemia de Covid-19 e conflitos globais recentes, como os deslocamentos em massa no Oriente Médio, destacam a importância de encontrar força interior diante da adversidade. O filme é usado em escolas e workshops no Brasil, como os promovidos pela Japan House São Paulo, para discutir temas como empatia e sustentabilidade com jovens, mostrando seu potencial educativo.
A recente restauração do filme em 4K, lançada em 2024, e sua inclusão em plataformas como Netflix ampliaram seu alcance, com posts no X destacando sua capacidade de emocionar novas gerações. Hashtags como #SpiritedAway e #Miyazaki têm milhões de interações, refletindo o impacto cultural contínuo da obra.
As Viagens de Chihiro é mais do que um filme de animação; é uma jornada que convida o espectador a olhar para dentro de si e para o mundo ao seu redor. A história de Chihiro, com sua coragem e empatia, ressoa em 2025 como um lembrete da importância de preservar nossa identidade, proteger a natureza e valorizar conexões humanas em um mundo cada vez mais materialista. Com sua estética deslumbrante, narrativa envolvente e temas universais, o filme de Hayao Miyazaki continua a iluminar corações e mentes, provando que a magia do cinema pode transformar vidas. Como Chihiro, somos desafiados a enfrentar o desconhecido com bravura, sabendo que, no final, o que realmente importa é o que carregamos em nossos corações.