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Foto: DIVULGAÇÃO |
Ela passava a caminho da escola com seu uniforme perfeitamente engomado e aquele lenço esvoaçante. A pele muito branca e os cabelos escuros realçavam a cor de
seus olhos verdes. Certamente filha de alguém da elite paulistana, embora estivesse sempre desacompanhada. Ela parava na porta do sebo e esticava o dedo indicador
sobre o livro que estivesse no topo da pilha. Joel não sabia dizer se ela estava examinando o título ou a poeira que se acumulava sobre a capa. Não fazia contato visual com ele. Dia após dia, a cena se repetia: ela olhava de longe para as estantes, caixotes e pilhas de livros como se os estivesse vendo pela primeira vez.
Até que um dia a menina encontrou, no topo da pilha de livros, logo na entrada da loja, a primeira edição de Viagem, de Graciliano Ramos, publicada pela editora José
Olympio. Sua atenção foi imediatamente capturada de uma forma que Joel nunca tinha visto. Ela não abriu o volume, não folheou as páginas, não leu a resenha. Seu interesse estava exclusivamente na capa de Portinari, no desenho do avião envolto em rotas sinuosas com pontos azuis e vermelhos indicando as aterrissagens. De fato, não era de se esperar que uma menina de doze anos pudesse se interessar pela viagem do velho Graça à Tchecoslováquia e à URSS no início dos anos 1950. Muito improvável. Mesmo assim, ela pegou o livro e se dirigiu a Joel pela primeira vez.
– Quanto custa? – perguntou, enquanto pegava no bolso duas notas de dez cruzeiros.
– Quarenta e cinco – respondeu Joel.
A menina procurou mais notas no bolso, mas não encontrou. Visivelmente embaraçada, parecia não querer deixar o livro para trás.
– O senhor guarda para mim até amanhã? Pode ficar com estes vinte. Amanhã, eu trago o resto do dinheiro.
Joel olhou para a menina e percebeu que suas mãos tremiam levemente.
– Qual o seu nome? – perguntou ele.
– Mariana.
– Então, Mariana, me chamo Joel. Vamos fazer o seguinte: você leva o livro e me paga amanhã os vinte e cinco cruzeiros que faltam. Eu te espero aqui neste mesmo horário.
A menina instintivamente abraçou o livro, girando a mão que o segurava para junto do corpo. Com a outra mão, estendeu os vinte cruzeiros, agradeceu e partiu. Na porta da livraria, parou, pegou uma caderneta dentro da bolsa a tiracolo e anotou: Pagar vinte e cinco cruzeiros na loja de livros, caminho da escola.
Minibio da autora: Lilian Dias (@lilianrdias), tem 57 anos, nasceu e cresceu na cidade do Rio de Janeiro, mas atualmente vive em Saquarema. No final dos anos 1980, começou a trabalhar como tradutora, e permaneceu nessa ocupação até o início dos anos 2000, quando se tornou livreira. Em seguida, estudou restauração de obras bibliográficas e fez pesquisa de obras raras para descrição em catálogos de leilões. Desde 2015, tem se dedicado à escrita de obras de ficção e sua obra mais recente é “Futuro do Pretérito” (Editora Labrador, 176 págs.)