APRESENTAÇÃO
Publicada originalmente em francês sob o título “Vie et luttes des Sans Terre au sud du Brésil”, a obra é o resultado da imersão que autora por quatro anos no assentamento Santa Maria (Copavi), em Paranacity, no noroeste do Paraná, fundado em 1993.Além de registrar a história de uma das mais bem sucedidas experiências do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Bleil usa a sociologia para analisar a complexidade e os desafios de convivência, produção e resistência na luta pela reforma agrária no Brasil. Com seu trabalho etnográfico a autora revela em detalhes o funcionamento da cooperativa e como são tomadas as decisões políticas e as dificuldades da construção coletiva.Trata-se de leitura fundamental para todas as pessoas que pretendem compreender melhor a história do MST e os valores que o presidem.
RESENHA
A obra "A Construção do Comum", da socióloga Susana Bleil, oferece uma análise profunda e intimista do assentamento Santa Maria, parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), localizado em Paranacity, Paraná. Publicada originalmente em francês, esta obra se destaca por seu enfoque etnográfico, resultado de anos de pesquisa e imersão no cotidiano da cooperativa, estabelecida em 1993. Bleil não apenas documenta a história da Copavi, mas também investiga os dilemas enfrentados por seus membros na busca pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
A autora começa descrevendo a natureza da comunidade, que antes era composta por laços de sangue e casamento, mas que, ao longo do tempo, se transforma. Ela argumenta que, apesar do desaparecimento da comunidade tradicional, a necessidade de recriar um espaço de convivência onde a cooperação e a solidariedade prevaleçam se faz cada vez mais urgente. A proposta central do livro se estrutura em torno da busca por um "comum" – um espaço onde as experiências compartilhadas e as relações humanas possam florescer e construir significados coletivos.
"A Construção do Comum", de Susana Bleil, não é apenas um relato sobre um assentamento rural, mas um convite à reflexão sobre a complexidade das relações humanas em um mundo que tende a fragmentar laços e a promover a individualidade em detrimento da coletividade. A partir da sua análise etnográfica, somos confrontados com a ideia de que o 'comum' é uma construção contínua, que requer esforço, cuidado e compromisso.
A obra ressalta que, ao contrário da visão simplificada de comunidades como meros aglomerados de indivíduos, as comunidades são organismos vivos, pulsantes, onde cada interação tem o potencial de reafirmar ou desmantelar laços de solidariedade. O assentamento Santa Maria mostra que a busca por uma vida coletiva não só é uma necessidade, mas um ato político vital em um cenário global que valoriza cada vez mais a concorrência e a exclusão. O desafio de transformar experiências pessoais em significados coletivos é um reflexo fiel das tensões enfrentadas por aqueles que buscam não apenas a sobrevivência, mas também uma vida digna.
Outro aspecto potente do trabalho de Bleil é a ideia de "família política". Nesse sentido, o assentamento Santa Maria se torna um microcosmo das lutas sociais mais amplas, onde a política se entrelaça com a vida cotidiana e as emoções. A solidariedade não é apenas uma estratégia de resistência, mas uma forma de afetividade que permeia todas as interações. Essa interconexão entre a política e a vida afetiva revela um aspecto crucial das lutas sociais: que as mudanças estruturais não podem ser efetivas sem uma base relacional sólida que una os militantes em torno de uma causa comum. A política, portanto, se transforma em um campo de batalha onde as experiências pessoais se tornam relevantes, e os vínculos formados no seio da comunidade se tornam a verdadeira força motriz de transformação.
Além disso, o livro nos força a reconsiderar o significado de ‘comunidade’ em um tempo de crescente desumanização e desassociação. A transformação narrativa de laços de sangue para laços de solidariedade nos lembra que, em uma sociedade que muitas vezes segmenta e aliena, é na criação de novos vínculos que reside a chave para um futuro mais equitativo. A obra de Bleil se posiciona como uma crítica contundente à desumanização que permeia muitos âmbitos da vida contemporânea, ao mesmo tempo que propõe uma alternativa: a construção de espaços coletivos que valorize a empatia, a compreensão e o apoio mútuo.
Os relatos dos sócios da Copavi revelam a complexidade da vida em comunidade. A obra questiona se os militantes têm espaço para expressar suas discordâncias e como as crises são geridas coletivamente. Nesse contexto, cada experiência pessoal é situada na trama maior da luta pela reforma agrária, destacando valores como fraternidade, inclusão e solidariedade. Bleil não hesita em mostrar os desafios e as tensões que surgem nesse ambiente, enfatizando que a sobrevivência do grupo depende da consciência coletiva de pertença e da confiança mútua entre seus membros.
A narrativa etnográfica de Bleil é enriquecida por seus encontros com os militantes, cujas histórias pessoais e visões de mundo acrescentam profundidade ao entendimento dos processos de construção da comunidade. Momentos de troca e riso, bem como as disputas e tensões, são analisados com rigor e sensibilidade, tornando visíveis as nuances da vida cotidiana no assentamento. Essa abordagem ajuda a moldar a ideia de que a construção do "nós" no coletivo é um trabalho contínuo, que se alimenta de práticas e rituais que promovem a união e o compromisso dos membros.
Bleil também evoca a ideia de uma "família política", onde os laços de solidariedade extrapolam o espaço familiar e se transformam em uma rede de apoio e luta common. O compromisso dos militantes com a causa do MST se entrelaça com suas vidas pessoais, demonstrando que a política e a afetividade não estão desconectadas, mas sim interligadas em múltiplas camadas de significado.
Ao longo da leitura, fica evidente que "A Construção do Comum" é mais do que uma simples crônica da vida em um assentamento: é uma reflexão profunda sobre a necessidade de valores éticos e comunitários numa sociedade que frequentemente ignora a força das relações humanas. A obra fornece uma base fundamental para quem deseja compreender não só a história do MST, mas também os princípios que fundamentam a luta por justiça social e a construção de novos modelos de convivência.
A obra de Susana Bleil é uma contribuição ímpar ao entendimento das dinâmicas sociais e políticas no Brasil contemporâneo, fazendo ecoar a importância do comum em um mundo que cada vez mais se distancia da convivência solidária. Seja para estudantes, militantes, ou qualquer pessoa interessada em questões sociais, "A Construção do Comum" é uma leitura indispensável, capaz de inspirar reflexões sobre a coletividade e a luta por um futuro mais justo.
Ademais, é crucial observar que os desafios enfrentados pela comunidade não são apenas obstáculos, mas oportunidades para crescimento e reconfiguração. A capacidade dos militantes de expressar suas discordâncias e lidar com crises coletivamente revela um dinamismo intrínseco à vida comunitária. Essa ideia de que as tensões não são sinônimos de fracasso, mas partes integrantes de um processo vital, sugere que a solidariedade é, na verdade, uma prática que se refina por meio de conflitos construtivos e diálogos honestos.
Em última análise, "A Construção do Comum" é uma obra que se desdobra em múltiplas camadas de significado. Ela nos desafia a pensar sobre o que realmente significa viver em sociedade e convida a uma reflexão profunda sobre a necessidade de encontrarmos nossos 'comuns' em tempos de crescente individualismo. O ensinamento mais importante que podemos extrair dessa obra é que a luta por um espaço coletivo não é apenas uma aspiracional, mas uma urgência. E, mais importante, que essa luta deve ser alimentada por uma percepção ética de comunidade, onde cada indivíduo, com suas particularidades e experiências, é respeitado, ouvido e integrado na construção de um futuro mais justo e solidário.