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Resenha: Democracia desprotegida, de Emanuel de Melo Ferreira


APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 estabeleceu princípios democráticos e sociais que moldaram a nação nas últimas décadas. No entanto, ao longo dos anos, esses princípios têm enfrentado uma série de desafios que ameaçam sua integridade e aplicação. A presente obra explora essa questão crucial e apresenta uma análise sobre a erosão do seu caráter social e democrático.

Os eventos do 08 de janeiro de 2023, que incluíram uma tentativa de golpe de Estado e ações violentas contra os três Poderes em Brasília, são tomados como um exemplo dramático dessa erosão democrática. O autor se concentra em investigar o comportamento de juízes e membros do Ministério Público neste contexto, buscando entender em que medida eles têm colaborado com o autoritarismo ou resistido a ele. A pesquisa revela como o autoritarismo tem se desenvolvido, em parte, devido a uma coordenação engajada em torno de princípios antidemocráticos e ao uso do Direito para tais fins, o que resulta em uma proteção inadequada à democracia.

Nas palavras do autor: “As premissas ideológicas desta obra partem da necessidade de lutar pela Constituição de 1988, reconhecendo as graves desigualdades sociais do Brasil, amplificadas por meras análises abstratas tipicamente liberais. Nesse sentido, a busca por uma efetiva democracia social, capaz de concretizar os diversos direitos sociais previstos constitucionalmente, passa por uma rigorosa crítica ao autoritarismo e à exaltação do golpe militar na medida tais práticas amplificam ainda mais a ofensa à isonomia, fomentando violência contra grupos menos favorecidos, como os que sofrem com a violência nas periferias”.

RESENHA

O livro se inicia abordando a erosão do caráter social e democrático da Constituição de 1988 no Brasil, destacando um processo que busca exaltá-la a ditadura militar e promover um projeto autoritário. Esse cenário se intensificou após os eventos de 8 de janeiro de 2023, quando ocorreram tentativas de golpe de Estado em Brasília. O livro mencionado no texto tem como objetivo investigar a postura de juízes e membros do Ministério Público diante do autoritarismo e das práticas não democráticas, analisando como essas instituições podem tanto perpetuar legados da ditadura quanto resistir a eles. A pesquisa para elaboração do livro questiona em que medida os atores da justiça colaboram com o autoritarismo ou se opõem a atos que apologia a ditadura militar. A hipótese é que parte do sistema judiciário atua em consonância com princípios antidemocráticos, utilizando o Direito para proteger deficientemente a democracia. Ao longo da obra, são explorados os legados da ditadura, a negação dos crimes perpetrados durante esse período e o impacto dessas práticas autoritárias nas instituições de controle e no funcionamento do Estado.

Um foco importante é dado ao negacionismo da ditadura militar, que deslegitima o passado e justifica ações autoritárias, como as homenagens a torturadores e a perseguição de opositores. A pesquisa utiliza uma abordagem de estudos de caso para investigar práticas concretas e atende a um critério metodológico que busca compreender as relações entre o sistema de justiça e a proteção da democracia.

O livro segue ressaltando a importância da análise conjunta do Judiciário e do Ministério Público, considerando suas funções na salvaguarda da democracia e na resistência a práticas que ameaçam os direitos humanos, evidenciando um cenário complexo entre o legado autoritário e a luta pela efetivação dos direitos constitucionais no Brasil.

A obra ainda aborda a investigação de práticas autoritárias no sistema de justiça brasileiro, destacando a importância do caso publicamente evidenciado pelo jornal Folha de São Paulo para o desencadeamento de uma pesquisa aprofundada. A análise considera a politização militar e exemplos recentes, como a palestra do General Hamilton Mourão que sugeriu intervenções militares. O foco da pesquisa são os vícios processuais e materiais que indicam uma aceitação da ditadura militar no Judiciário, incluindo a negação de crimes da ditadura e a discricionariedade militar. A argumentação jurídica é explorada como um meio pelo qual legados autoritários se manifestam, ressaltando a necessidade de uma crítica ideológica ao conservadorismo dos juristas. A metodologia da pesquisa reconhece a inevitabilidade da ideologia na neutralidade do pesquisador, buscando uma abordagem que defenda a Constituição de 1988 e combata desigualdades sociais. Os casos analisados, que surgiram após a posse de Jair Bolsonaro, revelam um aumento do autoritarismo e a resistência dentro do sistema de justiça, especialmente em relação ao papel do STF.

O trabalho é estruturado em três capítulos, que resumem os casos e as práticas judiciais relacionadas à ditadura militar, com o objetivo de documentar a resistência constitucional frente ao autoritarismo contemporâneo, caracterizando-o como inconstitucional. Os argumentos abordados pelo sistema de justiça que justificam essa inconstitucionalidade são criticados. A pesquisa se baseia em pensadores como Paulo Bonavides, enfatizando a necessidade de um Direito Constitucional de resistência contra as práticas autoritárias e as políticas neoliberais.

A análise da justiça de transição no Brasil e a negação dos legados da ditadura militar revela um cenário complexo e conflituoso, repleto de tentativas de silenciamento e de reinterpretação de eventos históricos que marcaram a nação. O primeiro capítulo aborda os legados da ditadura, destacando como a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia tem sido pautada pela busca por uma “estabilidade social”, o que, muitas vezes, resulta na minimização da gravidade das violações de direitos humanos. Isso se dá em um contexto onde precedentes internacionais sugerem a necessidade de responsabilização por crimes de lesa-humanidade, um aspecto ignorado em diversas ocasiões.


Os casos emblemáticos como Riocentro, Rubens Paiva, Etienne Romeu e Antonio Torini evidenciam a resistência em reconhecer as atrocidades cometidas durante o regime militar. Além disso, homenagens públicas a figuras ligadas à repressão, como Sebastião “Curió” e a celebração do Golpe Militar, refletem uma tentativa contínua de legitimar ações autoritárias no imaginário social. A captura da Comissão de Anistia e a paralisação do Memorial da Anistia também simbolizam esforços sistemáticos para evitar a responsabilização dos torturadores, culminando em episódios como a censura judicial à Comissão Nacional da Verdade.

No segundo capítulo, as estratégias utilizadas para a conservação do autoritarismo se desdobram em dois eixos principais: processuais e materiais. A manipulação dos precedentes e a deslegitimação da Comissão Nacional da Verdade, bem como a promoção de uma liberdade de expressão que se torna um manto para a politização militar, formam um caldo de cultura que favorece o autoritarismo. A neutralidade ideológica, frequentemente proclamada, revela-se, na prática, como um instrumento de erosão dos direitos constitucionais e da legitimidade democrática.

Por fim, o terceiro capítulo discute a difusão desse autoritarismo à luz da resistência constitucional. Elementos como a figura do “cidadão de bem” e as críticas de juristas como Paulo Bonavides sobre a neutralidade ideológica revelam a transformação da política brasileira em um espaço onde as ideologias se radicalizam, desafiando a democracia. A resistência constitucional não é apenas uma luta por direitos, mas também uma repolitização do debate público, que busca reverter a erosão provocada por interpretações conservadoras e autoritárias. Assim, vemos que a articulação entre a colaboração interinstitucional e as práticas autoritárias resulta em uma verdadeira batalha judicial e social pela manutenção da democracia e pela verdade histórica no Brasil.


O livro, democracia desprotegida, se destaca por sua análise crítica e corajosa acerca das dinâmicas entre o sistema de justiça brasileiro e as práticas autoritárias que ameaçam a democracia. Ao abordar a erosão do caráter social e democrático da Constituição de 1988, especialmente em um momento de crescente tensão política, a obra oferece uma reflexão profunda, enriquecida por uma sólida pesquisa de campo e um acurado trabalho de análise teórica.

Através de uma abordagem metódica que investiga a postura de juízes e membros do Ministério Público, o autor não apenas critica, mas também ilumina as nuances da situação atual, evidenciando tanto os legados da ditadura militar quanto os esforços de resistência que surgem dentro das instituições. A contextualização dos casos emblemáticos traz à tona a importância de reconhecer e confrontar o passado, enquanto desafia a tendência de apagamento e negação das violências históricas.

A escolha por um formato de estudo de casos é particularmente eficaz, permitindo uma exploração detalhada das intersecções entre a legislação, a prática judicial e o contexto político. Ao propor um diálogo entre a teoria e a prática, a obra se torna um instrumento valioso para acadêmicos, juristas e cidadãos comprometidos com a defesa da democracia e dos direitos humanos.

O enfoque no negacionismo e na manipulação legal como formas de perpetuação do autoritarismo revela uma preocupação essencial com a saúde da democracia brasileira. Além disso, a crítica à neutralidade ideológica no sistema de justiça proposta pelo autor é um convite à reflexão sobre a responsabilidade dos operadores do Direito em tempos de crise.

Ao longo dos capítulos, o autor não apenas documenta, mas também propõe uma ação, instigando o leitor a pensar na importância da resistência constitucional. O trabalho termina com uma nota de esperança, enfatizando que a luta pela verdade e pela justiça não é apenas uma tarefa institucional, mas um imperativo moral de toda a sociedade. Assim, a obra se configura como um importante farol para aqueles que desejam compreender e enfrentar os desafios contemporâneos à democracia no Brasil.

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